O
documento que pode definir os momentos finais da sua vida
O caso
era o de um paciente com câncer cerebral muito agressivo e que tinha pedido
para receber cuidados em casa, sem ser levado ao hospital.
Quando
ele piorou, os médicos queriam que ele fosse hospitalizado e a esposa teve que
brigar para o desejo do paciente ser respeitado.
"Não
[teve que brigar] judicialmente porque não chegou até lá, mas ela teve de fazer
inúmeras rodadas de reuniões, inclusive ameaçando processar os profissionais se
eles descumprissem a vontade do marido. E o fato de o documento existir e de
estar lavrado em cartório foi determinante para os médicos dizerem 'ok, então
vamos fazer do jeito que ele queria'."
O
documento a que a advogada e bioeticista Luciana Dadalto se refere é um
testamento vital, também conhecido como diretivas antecipadas de vontade.
Segundo
dados do Colégio Notarial do Brasil, desde a pandemia de covid-19, a cada ano,
em média 618 brasileiros vêm registrando documentos desse tipo em cartório para
ter suas vontades respeitadas no que se refere a cuidados de fim de vida. Não
se sabe ao certo, no entanto, quantos testamentos vitais estão sendo escritos
hoje no país, já que não há obrigatoriedade de lavratura.
A BBC
News Brasil conversou com Luciana Dadalto, autora do livro Testamento Vital,
agora em sua sexta edição, e com médicos que atendem pacientes em situações que
envolvem risco de vida para saber mais sobre esse documento.
O que é
testamento vital e quem pode fazer um? É preciso buscar aconselhamento
profissional para se escrever um testamento vital? O que diz esse documento?
Qual é seu peso legal?
A
seguir, você também confere histórias que revelam o tipo de impacto que
documentos desse tipo podem ter nos momentos finais da vida de quem os escreve.
• O que é um testamento vital?
Testamento
vital é um documento por meio do qual uma pessoa lúcida, com capacidade de
tomar decisões, registra suas vontades positivas e negativas — ou seja, o que
quer e o que não quer — no que diz respeito a cuidados de saúde em situações de
irreversibilidade, diz Luciana Dadalto em entrevista à BBC News Brasil.
Além de
atuar como advogada especializada em Direito Médico, Dadalto também aconselha
clientes que querem fazer um testamento vital.
O
testamento vital só passa a valer quando a pessoa perde a capacidade decisória,
explica. Quem faz um documento como esse está pensando na possibilidade de
chegar ao final de sua vida gravemente doente e sem condições de expressar sua
vontade, explica Dadalto.
"Ou
seja, estou diante de uma situação incurável, irreversível, intratável — e a
pessoa não consegue mais se manifestar, então a gente não consegue perguntar
para ela o que ela quer. Por isso, ela toma essas decisões
antecipadamente."
• Qual é o valor legal de um testamento
vital?
No
Brasil, qualquer pessoa maior de 18 anos considerada capaz diante da lei pode
fazer um documento desse tipo. Mas não existe legislação específica sobre
testamentos vitais, diz Dadalto. O que existe é jurisprudência.
Ela
explica: em 2012, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma resolução
dizendo que médicos deveriam respeitar a vontade do paciente em situações como
essa. A resolução também dizia que familiares não podiam desrespeitar essa
vontade.
"Quando
essa resolução foi publicada, um procurador de Justiça ajuizou uma ação dizendo
que o CFM não tinha o poder de fazer lei. Então, tivemos uma decisão judicial
dizendo que o CFM não tinha feito uma lei, mas tinha regulamentado a conduta
ética dos médicos diante desse documento", diz Dadalto.
O
tribunal declarou ainda que o testamento vital estava protegido pela legislação
brasileira, ela prossegue.
"A
decisão também esclareceu que a Constituição Federal fala do direito à
autonomia e fala no fundamento da dignidade da pessoa humana."
Então,
não temos uma lei, mas temos decisões judiciais, diz a advogada.
"Inclusive,
no final do ano passado, quando decidiu sobre um caso de recusa de
hemotransfusão por testemunha de Jeová, o Supremo Tribunal Federal (STF) disse
que esses documentos são legais, são lícitos."
Dadalto
aconselha, no entanto, que para aumentar as chances de que o testamento vital
seja respeitado, o autor ou seu representante deve lavrar o documento em
cartório e cópias devem ser entregues a pessoas de confiança — parentes, amigos
e profissionais.
A
advogada relata um caso de que tomou conhecimento, de uma filha que tinha uma
doença grave e era cuidada domiciliarmente. A paciente tinha feito um
testamento vital explicando que, quando piorasse, não queria ir para a UTI.
Queria ser cuidada em casa. Tinha deixado o documento com a mãe e avisado os
médicos.
"Quando
ela piorou, os médicos pediram o documento para a mãe, mas a mãe se recusou a
entregar."
"Ela
disse: não vou entregar porque quero que vocês levem minha filha para a UTI e
eu sei que se eu entregar esse documento, vocês não vão fazer isso."
"Os
médicos não tinham como provar que essa era a vontade da paciente", diz
Dadalto.
"Mas
acho importante dizer que, mesmo nos Estados Unidos, país que inventou esse
documento, onde temos lei desde a década de 1990, existem casos de
descumprimento. Não é a lei que vai mudar isso ou zerar esse risco."
• Preciso de um profissional para escrever
meu testamento vital?
No
Brasil, não há regras sobre como devem ser feitos os testamentos vitais,
explica Luciana Dadalto.
"Como
a gente não tem lei, o advogado ajuda a dar segurança jurídica para esse
documento. Mas se a pessoa tiver de fazer uma escolha financeira — digamos,
onde vou gastar dinheiro? —, eu entendo que o auxílio de um profissional de
saúde é indispensável. Porque esse é um documento técnico. Como vou recusar ou
aceitar uma traqueostomia se não sei o que isso é?"
O
médico paliativista Rodolfo Morais, que atende na Santa Casa e no Hospital do
Câncer em Franca, interior de São Paulo, é um profissional de saúde que
rotineiramente aconselha pacientes sobre testamentos vitais.
Paliativistas
são médicos que atendem pacientes com doenças graves e que colocam a vida em
risco.
O que
ele aconselha a alguém que deseja fazer um testamento vital?
"A
gente precisa ser neutro nessas horas para não influenciar as decisões da
pessoa", diz Morais em entrevista à BBC News Brasil.
Morais
explica que suas recomendações médicas vão depender dos princípios e valores do
paciente e daquilo que é possível ser feito no caso dele.
"Se
uma pessoa traz como valor 'eu quero viver, mesmo com sequelas, quero viver o
máximo possível, mesmo que isso me custe um certo grau de sofrimento', nesse
caso, minha recomendação é que você não exclua (do seu testamento vital), por
exemplo, a intubação, porque pode ser um procedimento que faça sentido para
você."
"Isso
é importante para aquela pessoa, é um valor dela, é um respeito", diz o
médico.
"Agora,
se for o contrário, e a pessoa disser, eu não quero viver de forma alguma em
estado de dependência, acamada, minha recomendação para essa pessoa vai ser,
vou citar um exemplo: vamos tirar a possibilidade de nutrição enteral
[administrada diretamente no trato gastrointestinal por meio de sonda] se você
estiver em estado vegetativo."
O
médico observa, no entanto, que quando os pacientes têm a oportunidade de
planejar seu futuro, de pensar sobre isso, a maioria prefere um fim de vida
mais natural, com prioridade no conforto.
"Aliás,
esse é o medo mais comum, que leva muitas pessoas a fazer o testamento vital: o
medo do sofrimento, o medo de ter a sua vida prolongada, sem nenhum sentido, ou
levando a uma situação de sequelas."
Morais
lista medidas e tratamentos que pacientes com esse perfil costumam vetar no seu
testamento vital: "A reanimação cardiopulmonar, por exemplo. E,
principalmente, o prolongamento artificial da vida através de máquinas.
Ventilação mecânica, hemodiálise, especialmente em situações de terminalidade,
porque a terminalidade por si só já é uma definição de um fim de vida. Então,
quando a gente vai na contramão disso, a tendência é aumentar o sofrimento
mantendo o mesmo desfecho."
"O
testamento vital é a representação da autonomia, da autodeterminação da pessoa.
Então, ela tem esse direito", diz Morais.
Mas ele
faz uma ressalva: "Desde que aquilo que ela escolha como caminho seja algo
ético e dentro das normas do nosso país. Uma pessoa não pode colocar no
testamento vital que quer a eutanásia porque isso é crime no nosso país. Quer
dizer, ela pode pôr, mas não vai ter validade."
• 'Alívio, respaldo e segurança' para o
médico
Rodolfo
Morais confessa que sente grande alívio quando o informam de que um paciente em
estado grave tem um testamento vital.
"Nesse
caso, sei que vou poder ter acesso aos valores da pessoa, o que ela considerou
tolerável ou inaceitável para ela."
"Isso
traz um alívio, um respaldo. Outra palavra que eu usaria é segurança em estar
fazendo aquilo que o paciente quer. Porque, de acordo com a resolução do CFM
que fala de testamento vital, a vontade do paciente tem que prevalecer."
A
médica intensivista e paliativista Sabrina Correa da Costa Ribeiro, que se
define como uma ativista pelos direitos dos pacientes, também se diz aliviada
ao saber que um paciente em situação crítica tem um testamento vital.
"O
que está naquele documento vai me dar informações sobre quem é aquela pessoa e
o que é importante para ela. Isso vai orientar a minha conduta na situação que
eu estiver enfrentando", diz Ribeiro, que é professora de Medicina
Intensiva na Universidade Federal do Ceará e atende nos hospitais Geral de
Fortaleza e Multiclínico, à BBC News Brasil.
• Como a vontade expressa de um paciente
pode impactar o desfecho de sua vida?
Pergunto
a Ribeiro se ela se lembra de algum caso em que um testamento vital teve papel
importante nos momentos finais da vida de um paciente.
"De
testamento vital, não especificamente, mas de uma vontade expressa pelo
paciente, e registrada em prontuário médico, me lembro de uma situação muito
marcante", responde a médica.
O caso
aconteceu no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de São Paulo
(FMUSP). Um paciente chegara ao pronto socorro com uma parada
cardiorrespiratória. Ele tinha um cateter de diálise.
Pacientes
que fazem diálise tendem a acumular potássio, o que poderia ter causado a
parada cardiorrespiratória, explica Ribeiro. E, baseados nessa suposição, os
médicos reanimaram, entubaram e medicaram o paciente.
"Então,
ele estava com dois suportes à vida. O respirador e essa medicação que estava
controlando a pressão arterial dele", recorda Ribeiro. "Aí, a família
chegou."
A
médica conta que a equipe acolheu a família e explicou o que tinha acontecido.
"E
a família disse que ele tinha expressado o desejo de não ser reanimado, de não
ir para a UTI, de não ser submetido a suporte artificial."
"Porque
ele já estava tendo outros comprometimentos além da doença renal, ele tinha
diabetes, tinha cegueira, tinha outras complicações e ele não desejava ser
mantido vivo de forma artificial."
Ribeiro
relembra o dilema vivido pela equipe.
"E
agora?"
"Então,
verificamos essa informação. Revimos o prontuário dele e havia esse registro.
Tínhamos desrespeitado (a vontade do paciente) sem conhecimento."
"A
gente retirou o suporte, a gente retirou a medicação, o paciente ficou em
cuidados de sintomas e faleceu algumas horas depois, acompanhado pela
família."
Ou
seja, não se tratava de um testamento vital propriamente dito, prossegue
Ribeiro.
"Mas
havia uma documentação em um prontuário recuperado de uma internação anterior,
sim", diz. "O prontuário é um documento médico válido."
Sabrina
Ribeiro fala de uma outra ocasião, em que ajudou um paciente que não queria ter
sua vida prolongada artificialmente a documentar seus desejos em prontuário.
"Dei
uma cópia para ele quando ele teve alta, para que ele tomasse depois as
providências. Porque ele não morreu, ele melhorou", recorda a médica.
"E
essa é uma coisa também, as pessoas têm muito tabu de falar sobre a morte. Elas
acham que, porque se preocupam com o que pode acontecer, vão morrer. Mas o
testamento vital não mata ninguém."
Ribeiro
reconhece, por outro lado, que falar sobre esse assunto não é para todo mundo.
Muitos delegam essas decisões, ela diz.
"Tem
gente que prefere 'não, doutora, não precisa conversar comigo. Minha filha é
que sabe de tudo isso'. Então, esse cuidado, essa conversa sobre esse momento
do processo de finitude, tudo isso tem que ser feito de uma forma muito
delicada e individualizada."
"A
morte é um fato", reflete Ribeiro. "E a minha missão é fazer com que
ela seja o mais digna e com o maior significado possível para aquela
pessoa."
"E
onde é que entra o testamento vital nisso tudo?", a médica pergunta.
"Sei
de um testamento vital muito bonito, de uma paciente com câncer de mama, a
Frida."
Sabrina
Ribeiro está falando de Elfriede Galera, que morreu em 2019 aos 64 anos de
idade. Ela fazia campanha pela humanização do tratamento do câncer e ficou
conhecida, entre outras coisas, por publicar seu testamento vital na internet.
• O testamento vital de Frida
Em seu
testamento vital, Frida escreve, entre outras coisas, que não quer
procedimentos invasivos "quando já não tenho mais cura".
Mas diz
que talvez precise de oxigênio porque tem "pavor da falta de ar".
Ela
pede: "Caso necessário, peço pela sedação, sou sensível à dor. Não me
alimentem. Quando meus órgãos já não estiverem mais no seu pleno funcionamento,
isso só vai me fazer sofrer mais."
Mas
Frida não fala apenas de procedimentos médicos.
"Deixem
todos me visitarem para que eles possam se despedir. Não me deixem só,
precisarei de todos até o último suspiro."
Velejadora,
ela pede para ser cremada e suas cinzas jogadas no mar em uma caixa de madeira
maciça para não poluir o ambiente.
"Convidem
todos para a cerimônia, principalmente os amigos velejadores e amantes do mar.
Permito que joguem ao mar somente pétalas de rosas (de qualquer cor)."
E
escolhe a trilha sonora: a Sinfonia n.º 5 de Ludwig van Beethoven.
A
cerimônia de despedida no mar, disse Jadyr Galera, viúvo de Frida, à BBC News
Brasil, ainda está por vir.
A
morte, quando finalmente chega, traz sofrimento, comenta Sabrina Ribeiro. Mas
também pode ser uma oportunidade. "De se conseguir honrar, na morte, a
vida inteira que a pessoa teve."
Fonte:
BBC News Brasil

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