A
esperança Mamdani e o que o Terceiro Mundo ensina
A surpreendente
vitória de Zohan Kwame Mamdani na disputa interna do Partido Democrata da
cidade de Nova Iorque lança, em um primeiro momento, uma questão falsa: o que
Nova Iorque teria a nos ensinar? Na verdade, o que temos aqui é o
inverso disso: o que o mundo pobre, explorado e periférico – e a massa de
imigrantes vindos de lá – ensinou à grande metrópole dos Estados Unidos?
Mamdani
nasceu em Uganda, na África, tendo emigrado para os Estados Unidos na infância,
mas é filho de pais de origem indiana de diferentes regiões – e religiões: seu
pai é o acadêmico anticolonial Mahmood
Mamdani, um muçulmano gujarati que morou décadas em Uganda, e sua
mãe é a cineasta Mira Nair, uma hindu de origem
punjab radicada nos Estados Unidos. Seus pais se uniram num amor que desafia os
conflitos religiosos da Índia.
A
biografia impressionante e cosmopolita de Mamdani ajuda a explicar as razões
dele ser um opositor vocal de figuras como Narendra Modi, o premiê de extrema
direita da Índia – um nacionalista hindu e perseguidor de muçulmanos, que vem
do mesmo estado de Gujarat de onde se origina sua família paterna – ou o
inefável Benjamin Netanyahu, que dispensa maiores apresentações no atual
contexto de genocídio palestino.
E não
há, também, meias palavras nos discursos de Mamdani para o futuro de Nova
Iorque: congelamento de aluguéis, tarifa zero para o ônibus, creches universais
e aumento de impostos para os mais ricos – um programa de bem-estar para uma
sociedade cada vez mais excludente e à beira de um colapso social, com
uma debandada
populacional em
tempo real enquanto um em cada quatro
nova-iorquinos está na pobreza.
Quarta
cidade mais populosa das Américas, Nova Iorque só é menor hoje que São Paulo,
Lima e Cidade do México. Seu território relativamente pequeno – isto é, aquilo
que não inclui seus rios – é cerca de metade da área do município de São Paulo,
o que explica seu adensamento impressionante e, por tabela, uma especulação
imobiliária de dar inveja, que inclusive forjou a fortuna de famílias como a de
Donald Trump.
Esse
episódio da História não é um conto de fadas sobre um salvador do Norte, mas de
como Mamdani encarna, na cidade-mundo da banda rica do planeta, as vozes
trabalhadoras vindas do que, antigamente, se chamava Terceiro Mundo –
e que hoje está em apuros, ainda mais em tempos de Donald Trump, quase um gêmeo
maligno seu no teatro histórico. Mamdani triunfará? É o enigma que trataremos
adiante.
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Nova Iorque capital do neoliberalismo global
Opequeno
Zohan Kwame Mamdani ganhou um nome do meio em homenagem ao libertador de Gana,
Kwame Nkrumah. Não era de esperar nada muito diferente de seus pais, ambos da
elite intelectual de esquerda de origem indiana, cujo périplo pelo mundo de
língua inglesa é comum a pessoas de variadas classes sociais e religiões do
subcontinente indiano, outrora colônia – e joia da coroa – britânica.
A Nova
Iorque em que o pequeno Zohan e seus pais aportaram nos anos 1990 era a
fantástica, opulenta e desafiadora metrópole que não apenas era o maior – e
principal – centro urbano americano como, ainda, representava a cultura da
globalização nascente. Depois de um declínio social nos anos 1970 aos 1980, a
cidade é reconstruída sob um marco de um dos mais impressionantes processos de
gentrificação já vistos no mundo.
Historicamente
dominada por democratas mais progressistas do que a média dos Estados Unidos,
mesmo quando o partido ainda congregava alas de direita racista no Sul do país,
Nova Iorque passou por uma insólita hegemonia republicana entre 1994 e 2013: os
dois governos de Rudy Giuliani, antes da reinvenção como trumpista, e os três
de Michael Bloomberg, hoje fora do partido, foram a projeção de um
neoliberalismo de direita clean.
Ainda
que os nova-iorquinos continuassem votando nos democratas no plano nacional e
estadual, e os republicanos se tornassem cada vez mais conservadores pelo país,
os longos governos de Giuliani e Bloomberg – que atravessam a infância de
Mamdani – moldaram uma Nova Iorque símbolo e fetiche do neoliberalismo
triunfante, que sofreu uma remodelação muito profunda, mesmo para os seus
padrões dinâmicos.
Nos
anos 1990, Nova Iorque viu uma explosão de
rotatividade migratória. De um lado, houve a chegada em massa de imigrantes do
mundo inteiro, seja de acadêmicos, artistas ou empreendedores, mas, na grande
maioria das vezes, eram trabalhadores pobres destinados a ser mão-de-obra
barata para o setor de serviços – enquanto muitos dos seus habitantes originais
migraram para outras partes dos Estados Unidos.
Os
efeitos das duas décadas republicanas acentuaram sua brutal desigualdade
social, muitas vezes racializada. Como aponta Adam Tooze, a desigualdade de
Nova Iorque segue crescendo e é gigante, sendo a maior entre as grandes cidades
americanas – ela , inclusive, chega a ser maior do que a média brasileira. Se
Nova Iorque plasmou o projeto globalista como nenhuma outra cidade no mundo,
isso inclui também sua crise metabólica.
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A hegemonia do Partido Democrata e sua crise visceral exposta
No
início dos anos 2010, o giro radical à direita do Partido Republicano, em
âmbito nacional, inviabilizou o partido localmente. Nem a cúpula republicana
nacional se satisfazia mesmo com figuras como Bloomberg, nem os nova-iorquinos
desejavam eleger alguém ligado aos republicanos. Isso abriu espaço para a
vitória do ex-esquerdista radical, e depois homem do establishment democrata,
Bill De Blasio em 2013.
Sim, De
Blasio representou alguma inflexão progressista, mas muito longe de ser o
suficiente para lidar com os problemas de Nova Iorque nos seus oito anos de
governo – depois de eleições com baixo quórum e quase nenhuma polarização. Mas
a coisa piora com a eleição do ex-policial negro Eric Adams em 2021 pelos
democratas, o que representa um recuo à direita do Partido na cidade e
turbulências inimagináveis.
Se
Adams era o homem ideal para a cúpula democrata e seu liberalismo militante,
uma vez que é parte de uma minoria racial e sempre esteve muito longe da
esquerda, certamente ela não poderia imaginar a quantidade de confusões e
trapalhadas que ele se envolveria: desde estar envolvido em crimes
federais,
com o possível recebimento de suborno do governo turco, até sua conversão
silenciosa ao trumpismo para se livrar das mesmas acusações.
Sem
qualquer chance nas primárias democratas, Adams se retirou e vai disputar como
independente, e agora terá o apoio de Trump – que, por
sinal, agiu para que o Departamento de Justiça voltasse atrás nas
acusações contra
ele, afinal, nos Estados Unidos o equivalente ao Ministério da Justiça no
Brasil, bisonhamente, acumula também as funções de Ministério Público da União
e Advocacia-Geral da União.
Mas o
episódio Adams não ensinou nada à cúpula democrata: ela ressuscitou como
pré-candidato Andrew Cuomo, um ex-governador do estado de Nova Iorque que, até
ontem, estava liquidado na vida pública por ter renunciado em razão de denúncias de assédio
sexual em 2021.
Com muito dinheiro no bolso, Cuomo captou 16 milhões de dólares só para
disputar as primárias, isto é, 16 vezes mais do que Mamdani.
Mas
nada disso impediu que Mamdani vencesse as
primárias com
56% ao final dos três turnos protocolares da votação – o que realmente importa,
o primeiro turno, registrou uma vitória de Mamdani contra Cuomo e outros nove
candidatos, onde ele teve 43,5% contra 36,5% do segundo colocado, o que o
fez já ser reconhecido como vitorioso. Mas a euforia da vitória se segue à
reação pós-primárias dos altos democratas.
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O desafio não termina aí, são eleições completamente anormais
Se
fossem eleições normais, e Mamdani um inofensivo candidato de centro-esquerda,
sua vitória nas primárias democratas já fariam dele, quase automaticamente, o
novo prefeito de Nova Iorque. Não, os nova-iorquinos não irão votar no Partido
Republicano, mesmo que seu candidato, o excêntrico Curtis Sliwa ironicamente
não seja trumpista. Na verdade, o perigo mora ao lado: Adams é candidato e
Cuomo pode se lançar também como independente.
A
partir daí, as pesquisas se mostram nebulosas e truncadas, ao mesmo tempo em
que a máscara de democratas do establishment cai e eles se mostram tão, ou mais
preocupados, do que o próprio Trump em relação ao fenômeno Mamdani – embora
sejam eles, e não Trump, que possam derrotar Mamdani se Cuomo realmente for
candidato, apesar da derrota nas prévias.
Enquanto
isso, a governadora de Nova Iorque, a democrata Kathy Hochul, reforça essa
cisão interna, inclusive acirrando a campanha de pânico moral contra os impostos que Mamdani
planeja estabelecer sobre os ultrarricos – o que se coaduna com o discurso dos
republicanos de que os nova-iorquinos irão se mudar para a Flórida por causa
disso, como se eles já não estivessem indo embora pela falta de programas
sociais que estanquem o alto custo de vida.
Ou
seja, a possibilidade de Cuomo surgir efetivamente como candidato parece uma
ameaça e uma tentativa de domesticar Mamdani, uma figura política que já
perturba o status quo por ser muçulmano e defender a Palestina, só que mais
ainda por ter angariado a simpatia da comunidade judaica de Nova Iorque –
despertando temores profundos no movimento sionista e seu poderoso lobby.
Vencer
essa eleição significa encarar paradoxos como Mamdani ter vencido entre os
brancos, mas perdido entre o
eleitorado negro –
mesmo que tenha tido um bom desempenho entre
jovens eleitores negros. É de se notar que lideranças negras, sobretudo líderes
religiosos, ajudaram a direita democrata a fazer uma campanha de pânico moral
contra Mamdani que funcionou relativamente entre eleitores negros mais velhos.
Mamdani
tem a força de seu discurso, um carisma insuperável e um método que lhe fez
vencer, nas primárias, um oponente poderoso. Ele é a voz da multidão que faz
Nova Iorque funcionar quotidianamente, dentro e fora dos limites da cidade,
inclusive como a classe trabalhadora mundial cuja exploração sustenta o Império
Americano, principalmente aquele do Terceiro Mundo – que é revolucionário como
um dia foi o Terceiro Estado.
Fonte: Por
Hugo Albuquerque, em The Jacobin Brasil

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