Legados
para a justiça internacional e enfrentamento da violência de gênero nos
conflitos armados
O “massacre”
é lembrado todos os anos em cerimônias e serviços memoriais, servindo de alerta
para o risco de genocídios e limpezas étnicas em conflitos contemporâneos. No
entanto, o negacionismo e as tentativas de minimizar ou reescrever o ocorrido
persistem, especialmente entre setores da liderança sérvia da Bósnia.
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Causas, contextos e consequências históricas, políticas e jurídicas.
A
Guerra da Bósnia (1992-95) foi um dos conflitos mais sangrentos e traumáticos
da Europa após a Segunda Guerra Mundial. Suas causas e consequências são muito
diversas, envolvendo fatores históricos, étnicos, religiosos, políticos e
internacionais, ainda reverberando na sociedade bósnia e em toda a região dos
Bálcãs.
A
origem do conflito (e de outras guerras em Eslovênia, Croácia e Kosovo) remonta
à desintegração da Iugoslávia, uma federação composta por seis repúblicas e com
população de diferentes grupos étnicos e, durante 35 anos, sob a liderança de
Josip Broz Tito. Durante o regime titoísta, as tensões étnicas foram, em grande
parte, suprimidas pela forte autoridade central. No entanto, com a morte de
Tito em 1980 e o enfraquecimento do regime socialista no final da década de
1980, ressurgiram antigos ressentimentos e rivalidades entre os povos que
compunham a federação. O colapso do socialismo no Leste Europeu e o crescimento
do nacionalismo em toda a região serviram como catalisadores para a divisão do
país.
A
Bósnia e Herzegovina era a república mais etnicamente diversa da Iugoslávia,
composta majoritariamente por bósnios muçulmanos (bosniaks), sérvios ortodoxos
e croatas católicos. Também havia minorias judaicas, roma e outras. Com o
avanço dos movimentos separatistas na Croácia e na Eslovênia, a Bósnia e
Herzegovina, sob a liderança de Alija Izetbegović, também passou a buscar sua
independência em relação a Belgrado, realizando um referendo em 1992, boicotado
pela população sérvia local. Os bósnios sérvios, apoiados pelo governo
iugoslavo — então restrito à Sérvia e Montenegro e liderado por Slobodan
Milošević — rejeitaram a independência e iniciaram um movimento armado para
manter e conquistar territórios sob controle sérvio, com o objetivo de
integrá-los à Iugoslávia.
O
nacionalismo exacerbado foi um dos principais motores do conflito. Líderes
políticos de cada grupo étnico exploraram o medo, a desconfiança e as memórias
de antigas disputas, em especial durante a Segunda Guerra Mundial, para
mobilizar suas comunidades. O discurso nacionalista, especialmente entre os
bósnios sérvios, foi usado para justificar diversas práticas de crimes de
guerra e crimes contra a humanidade, visando a expulsar outras populações de
áreas estratégicas. A ausência de uma resposta internacional contundente nos
primeiros anos do conflito, somada ao fracasso das tentativas de mediação
promovidas pela Comunidade Europeia, agravou ainda mais a situação. A imposição
de embargos de armas, por exemplo, acabou prejudicando principalmente os
bósnios, que tinham menos acesso a armamentos do que os sérvios, apoiados
militarmente pela Iugoslávia remanescente e croatas, com maior apoio de outras
nações como a Alemanha e a Áustria.
O
conflito se caracterizou pela grande violência. Entre 1992 e 1995, estima-se
que cerca de 100 mil pessoas tenham morrido, sendo a maioria delas civis. Além
do prolongado cerco de Sarajevo (de abril de 1992 a fevereiro de 1996), o
episódio mais chocante foi o “massacre” de Srebrenica, de 11 a 25 de julho de
1995, quando mais de 8 mil homens e meninos bósnios foram executados por forças
sérvias, em um ato reconhecido internacionalmente como genocídio. Além disso,
milhares de mulheres foram vítimas de estupro sistemático, inclusive em hotéis
e outros edifícios com esse fim específico (rape camps), prática utilizada como
arma de guerra para aterrorizar e desestabilizar comunidades inteiras, além de
promover a limpeza étnica, uma vez que nos Balcãs a linha de descendência é
patrilinear. E, de fato, a prática de limpeza étnica resultou na expulsão
forçada de centenas de milhares de pessoas de suas casas, alterando
drasticamente a composição demográfica de várias regiões de Bósnia e
Herzegovina.
A
destruição material também foi imensa. Cidades históricas como Sarajevo e
Mostar sofreram longos cercos, bombardeios e ataques a infraestrutura civil,
incluindo hospitais, pontes, escolas e mercados. Monumentos culturais e
religiosos, como mesquitas, igrejas e bibliotecas, foram deliberadamente
destruídos, numa tentativa de apagar a presença histórica de grupos rivais.
Estima-se que cerca de 2 milhões de pessoas tenham sido deslocadas, tornando-se
refugiadas dentro e fora do país. Muitas delas nunca conseguiram retornar às
suas casas, e, até hoje há comunidades inteiras vivendo no exílio ou em
condições bastante precárias.
Diante
da escalada da violência e da pressão internacional, a ONU e a OTAN terminaram
por intervir, primeiro com missões de paz e, posteriormente, diante do
“massacre” de Srebrenica, com bombardeios a posições sérvias para forçar o fim
das hostilidades. A assinatura do Acordo de Dayton, em 14 de dezembro de 1995,
pôs fim ao conflito, estabelecendo uma nova composição política para a Bósnia e
Herzegovina. O país foi dividido em duas entidades autônomas: a Federação da
Bósnia e Herzegovina (de maioria bosniak e croata) e a República Sérvia
(Republika Srpska), ligadas por um governo central frágil e de estrutura
complexa. Embora o acordo tenha garantido o fim imediato da violência, ele
institucionalizou as divisões étnicas, dificultando a construção de uma identidade
bósnia unificada e a reconciliação entre os grupos.
As
consequências da guerra são sentidas até hoje. O trauma psicológico é profundo,
com altas taxas de depressão e estresse pós-traumático entre sobreviventes e
suas famílias.
A
economia do país foi devastada, com altos índices de desemprego e pobreza, além
de uma infraestrutura ainda em reconstrução. O sistema político criado pelo
Acordo de Dayton é frequentemente criticado por ser liderado por estrangeiros,
ineficiente e perpetuar as divisões étnicas, dificultando a governabilidade do
país.
Além
disso, a busca por justiça, interacional ou internamente, continua sendo um
desafio. O Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (ICTY) foi criado
para julgar crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio cometidos
durante o conflito. Diversos líderes políticos e militares foram condenados,
com destaque para Radovan Karadžić, líder civil dos bósnios sérvios e Ratko
Mladić, seu comandante militar, responsáveis pelo cerco de Sarajevo e pelo
massacre de Srebrenica. No entanto, muitos dos criminosos nunca foram julgados
e a reconciliação entre as comunidades permanece incompleta, com episódios
recorrentes de negação do genocídio e glorificação de criminosos de guerra. O
caso também foi julgado como sendo um genocídio na Corte Internacional de
Justiça (CIJ).
O
episódio também trouxe à tona o fracasso das forças de paz da ONU, formada
principalmente por um batalhão neerlandês de capacetes azuis, que não
conseguiram proteger a população de Srebrenica, especialmente por falta de
mandato e armamento para tanto, gerando duras e justas críticas à atuação da
comunidade internacional e impulsionando debates sobre a necessidade de
reformas nas operações de paz e sobre o conceito de responsabilidade de
proteger civis (R2P) em zonas de conflito.
Culturalmente,
Srebrenica tornou-se um símbolo da brutalidade da Guerra da Bósnia e do
fracasso internacional em impedir atrocidades em massa. O “massacre” é lembrado
todos os anos em cerimônias e serviços memoriais, servindo de alerta para o
risco de genocídios e limpezas étnicas em conflitos contemporâneos. No entanto,
o negacionismo e as tentativas de minimizar ou reescrever o ocorrido persistem,
especialmente entre setores da liderança sérvia da Bósnia, liderada por Milorad
Dodik, dificultando a reconciliação e perpetuando tensões étnicas.
Em
resumo, as consequências do “massacre” de Srebrenica vão muito além da perda de
vidas humanas. Envolvem sofrimento prolongado, desafios à justiça, impacto na
política internacional (ajudando a derrubar um primeiro-ministro neerlandês) e
dificuldades para a reconciliação e a convivência pacífica na Bósnia e
Herzegovina, tornando o episódio um lembrete doloroso da importância de
prevenir genocídios e promover a memória, a justiça e a paz.
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A Guerra da Bósnia e o Legado do Tribunal Criminal Internacional Para a ex-
Iugoslávia (ICTY) no Combate à Violência Sexual e de Gênero Relacionada a
Conflitos (VSRC).
O grau
e a intensidade da violência que traumatizaram os Balcãs, a Europa e o mundo
durante as guerras que conduziram ao fim da antiga Iugoslávia na década de 90
do século XX não poderiam permanecer impunes, visão estabelecida e concretizada
desde os julgamentos de Nuremberg (1945) e de Tokyo (1946).
Assim,
em 25 de maio de 1993 foi aprovada a Resolução nº 827/1993, pelo Conselho de
Segurança das Nações Unidas com o escopo de estabelecer um tribunal
internacional ad hoc para julgar os responsáveis por graves violações do
direito internacional humanitário cometidas no território da ex-Iugoslávia
desde 1991, com sede na cidade Haia, nos Países Baixos.
Para o
Direito Penal Internacional, foram diversas as contribuições e os avanços
efetivados pelas interpretações e decisões do ICTY e que hoje compõem relevante
patrimônio jurídico disponível para a defesa dos direitos humanos e combate à
impunidade pelo cometimento dos crimes internacionais, especialmente os crimes
de guerra, crimes contra a humanidade e crime de genocídio, todos
comprovadamente praticados em distintas situações nas guerras balcânicas dos
anos 90, inclusive na Bósnia e Herzegovina, há exatos trinta anos.
Não
foram poucos os avanços ou o fortalecimento de alguns aspectos verificados para
a Justiça internacional. Assim, podemos exemplificar alguns, como: a) a
responsabilização de superiores hierárquicos, sejam civis ou militares, pelos
crimes internacionais praticados por seus subordinados e que, afinal, confirma
um dos sete princípios sedimentados a partir dos julgamentos de Nuremberg
(Čelebići, 1998); b) reconhecimento de que os crimes contra as leis e costumes
de guerra podem ser reconhecidos também quando cometidos em conflitos
não-internacionais (Duško Tadić, 1997); reconhecimento de prática de crime de
genocídio no massacre de Srebrenica, que completa trinta anos em 2025 (Radislav
Krstić, 2001); reconhecimento de que o estupro e a escravidão sexual podem ser
executados como crimes de guerra e crimes contra a humanidade (Mucić, 1998;
Furundžija, 2000; Kunarac, 2002, dentre outros).
Em
relação à temática da violência sexual e de gênero em conflitos armados, as
decisões do ICTY sedimentaram entendimentos fundamentais para o combate à
impunidade de tais crimes, caracterizados por extrema crueldade, ainda
cometidos atualmente, infelizmente, como demonstram os crimes sexuais cometidos
nos conflitos atualmente em curso.
Podem,
assim, ser mencionas importantes contribuições na seara do enfrentamento à
Gender Based Violence in Armed Conflicts estabelecidas pelas interpretações do
ICTY, tais como:
1. Reconhecimento da escravidão sexual como
crime contra a humanidade e da violência sexual sistematizada cometida durante
os conflitos como perseguição de gênero (Prosecutor v. Dragoljub Kunarac,
Radomir Kovač e Zoran Vuković, 2001);
2. Decisão no sentido de que o estupro é uma
forma de tortura, bem como que comandantes podem ser responsabilizados por
violência sexual cometida por subordinados (Prosecutor v. Anto Furundžija,
1998);
3. Definição do estupro sistematizado em
campos de concentração/detenção (rape camps) como forma de tortura e violação
do direito internacional humanitário. Além disso, a decisão confirmou a
responsabilidade dos superiores hierárquicos e comandantes (Prosecutor v.
Zejnil Delalić, Zdravko Mucić, Hazim Delić e Esad Landžo – Čelebići Case,
1998);
4. Considerou crimes contra a humanidade as
perseguições com base em gênero cometidas por meio de abusos sistemáticos
contra mulheres em campo de detenção
Muitos
outros casos e seus avanços poderiam ser mencionados. Trinta anos depois, os
ecos dos conflitos armados balcânicos da década de 90 ainda se fazem escutar,
seja pela fragilidade da pax alcançada na região; pelos legados do ICTY para a
Justiça internacional ou, ainda, pela dor silenciosa dos sobreviventes e dos
familiares que perderam seus entes queridos.
Que as
lições do passado, que parece, não foram ainda compreendidas, iluminem a razão
das nações, seus governantes e de seus povos.
Não há
presente que não tenha sido pavimentado pelo passado, especialmente em relação
às guerras e às suas sementes cultivadas para o futuro.
Fonte:
Por Flávio de Leão Bastos Pereira, no Le Monde

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