sexta-feira, 11 de julho de 2025

Legados para a justiça internacional e enfrentamento da violência de gênero nos conflitos armados

O “massacre” é lembrado todos os anos em cerimônias e serviços memoriais, servindo de alerta para o risco de genocídios e limpezas étnicas em conflitos contemporâneos. No entanto, o negacionismo e as tentativas de minimizar ou reescrever o ocorrido persistem, especialmente entre setores da liderança sérvia da Bósnia.

<><> Causas, contextos e consequências históricas, políticas e jurídicas.

A Guerra da Bósnia (1992-95) foi um dos conflitos mais sangrentos e traumáticos da Europa após a Segunda Guerra Mundial. Suas causas e consequências são muito diversas, envolvendo fatores históricos, étnicos, religiosos, políticos e internacionais, ainda reverberando na sociedade bósnia e em toda a região dos Bálcãs.

A origem do conflito (e de outras guerras em Eslovênia, Croácia e Kosovo) remonta à desintegração da Iugoslávia, uma federação composta por seis repúblicas e com população de diferentes grupos étnicos e, durante 35 anos, sob a liderança de Josip Broz Tito. Durante o regime titoísta, as tensões étnicas foram, em grande parte, suprimidas pela forte autoridade central. No entanto, com a morte de Tito em 1980 e o enfraquecimento do regime socialista no final da década de 1980, ressurgiram antigos ressentimentos e rivalidades entre os povos que compunham a federação. O colapso do socialismo no Leste Europeu e o crescimento do nacionalismo em toda a região serviram como catalisadores para a divisão do país.

A Bósnia e Herzegovina era a república mais etnicamente diversa da Iugoslávia, composta majoritariamente por bósnios muçulmanos (bosniaks), sérvios ortodoxos e croatas católicos. Também havia minorias judaicas, roma e outras. Com o avanço dos movimentos separatistas na Croácia e na Eslovênia, a Bósnia e Herzegovina, sob a liderança de Alija Izetbegović, também passou a buscar sua independência em relação a Belgrado, realizando um referendo em 1992, boicotado pela população sérvia local. Os bósnios sérvios, apoiados pelo governo iugoslavo — então restrito à Sérvia e Montenegro e liderado por Slobodan Milošević — rejeitaram a independência e iniciaram um movimento armado para manter e conquistar territórios sob controle sérvio, com o objetivo de integrá-los à Iugoslávia.

O nacionalismo exacerbado foi um dos principais motores do conflito. Líderes políticos de cada grupo étnico exploraram o medo, a desconfiança e as memórias de antigas disputas, em especial durante a Segunda Guerra Mundial, para mobilizar suas comunidades. O discurso nacionalista, especialmente entre os bósnios sérvios, foi usado para justificar diversas práticas de crimes de guerra e crimes contra a humanidade, visando a expulsar outras populações de áreas estratégicas. A ausência de uma resposta internacional contundente nos primeiros anos do conflito, somada ao fracasso das tentativas de mediação promovidas pela Comunidade Europeia, agravou ainda mais a situação. A imposição de embargos de armas, por exemplo, acabou prejudicando principalmente os bósnios, que tinham menos acesso a armamentos do que os sérvios, apoiados militarmente pela Iugoslávia remanescente e croatas, com maior apoio de outras nações como a Alemanha e a Áustria.

O conflito se caracterizou pela grande violência. Entre 1992 e 1995, estima-se que cerca de 100 mil pessoas tenham morrido, sendo a maioria delas civis. Além do prolongado cerco de Sarajevo (de abril de 1992 a fevereiro de 1996), o episódio mais chocante foi o “massacre” de Srebrenica, de 11 a 25 de julho de 1995, quando mais de 8 mil homens e meninos bósnios foram executados por forças sérvias, em um ato reconhecido internacionalmente como genocídio. Além disso, milhares de mulheres foram vítimas de estupro sistemático, inclusive em hotéis e outros edifícios com esse fim específico (rape camps), prática utilizada como arma de guerra para aterrorizar e desestabilizar comunidades inteiras, além de promover a limpeza étnica, uma vez que nos Balcãs a linha de descendência é patrilinear. E, de fato, a prática de limpeza étnica resultou na expulsão forçada de centenas de milhares de pessoas de suas casas, alterando drasticamente a composição demográfica de várias regiões de Bósnia e Herzegovina.

A destruição material também foi imensa. Cidades históricas como Sarajevo e Mostar sofreram longos cercos, bombardeios e ataques a infraestrutura civil, incluindo hospitais, pontes, escolas e mercados. Monumentos culturais e religiosos, como mesquitas, igrejas e bibliotecas, foram deliberadamente destruídos, numa tentativa de apagar a presença histórica de grupos rivais. Estima-se que cerca de 2 milhões de pessoas tenham sido deslocadas, tornando-se refugiadas dentro e fora do país. Muitas delas nunca conseguiram retornar às suas casas, e, até hoje há comunidades inteiras vivendo no exílio ou em condições bastante precárias.

Diante da escalada da violência e da pressão internacional, a ONU e a OTAN terminaram por intervir, primeiro com missões de paz e, posteriormente, diante do “massacre” de Srebrenica, com bombardeios a posições sérvias para forçar o fim das hostilidades. A assinatura do Acordo de Dayton, em 14 de dezembro de 1995, pôs fim ao conflito, estabelecendo uma nova composição política para a Bósnia e Herzegovina. O país foi dividido em duas entidades autônomas: a Federação da Bósnia e Herzegovina (de maioria bosniak e croata) e a República Sérvia (Republika Srpska), ligadas por um governo central frágil e de estrutura complexa. Embora o acordo tenha garantido o fim imediato da violência, ele institucionalizou as divisões étnicas, dificultando a construção de uma identidade bósnia unificada e a reconciliação entre os grupos.

As consequências da guerra são sentidas até hoje. O trauma psicológico é profundo, com altas taxas de depressão e estresse pós-traumático entre sobreviventes e suas famílias. 

A economia do país foi devastada, com altos índices de desemprego e pobreza, além de uma infraestrutura ainda em reconstrução. O sistema político criado pelo Acordo de Dayton é frequentemente criticado por ser liderado por estrangeiros, ineficiente e perpetuar as divisões étnicas, dificultando a governabilidade do país.

Além disso, a busca por justiça, interacional ou internamente, continua sendo um desafio. O Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (ICTY) foi criado para julgar crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio cometidos durante o conflito. Diversos líderes políticos e militares foram condenados, com destaque para Radovan Karadžić, líder civil dos bósnios sérvios e Ratko Mladić, seu comandante militar, responsáveis pelo cerco de Sarajevo e pelo massacre de Srebrenica. No entanto, muitos dos criminosos nunca foram julgados e a reconciliação entre as comunidades permanece incompleta, com episódios recorrentes de negação do genocídio e glorificação de criminosos de guerra. O caso também foi julgado como sendo um genocídio na Corte Internacional de Justiça (CIJ).

O episódio também trouxe à tona o fracasso das forças de paz da ONU, formada principalmente por um batalhão neerlandês de capacetes azuis, que não conseguiram proteger a população de Srebrenica, especialmente por falta de mandato e armamento para tanto, gerando duras e justas críticas à atuação da comunidade internacional e impulsionando debates sobre a necessidade de reformas nas operações de paz e sobre o conceito de responsabilidade de proteger civis (R2P) em zonas de conflito.

Culturalmente, Srebrenica tornou-se um símbolo da brutalidade da Guerra da Bósnia e do fracasso internacional em impedir atrocidades em massa. O “massacre” é lembrado todos os anos em cerimônias e serviços memoriais, servindo de alerta para o risco de genocídios e limpezas étnicas em conflitos contemporâneos. No entanto, o negacionismo e as tentativas de minimizar ou reescrever o ocorrido persistem, especialmente entre setores da liderança sérvia da Bósnia, liderada por Milorad Dodik, dificultando a reconciliação e perpetuando tensões étnicas.

Em resumo, as consequências do “massacre” de Srebrenica vão muito além da perda de vidas humanas. Envolvem sofrimento prolongado, desafios à justiça, impacto na política internacional (ajudando a derrubar um primeiro-ministro neerlandês) e dificuldades para a reconciliação e a convivência pacífica na Bósnia e Herzegovina, tornando o episódio um lembrete doloroso da importância de prevenir genocídios e promover a memória, a justiça e a paz.

<><> A Guerra da Bósnia e o Legado do Tribunal Criminal Internacional Para a ex- Iugoslávia (ICTY) no Combate à Violência Sexual e de Gênero Relacionada a Conflitos (VSRC).

O grau e a intensidade da violência que traumatizaram os Balcãs, a Europa e o mundo durante as guerras que conduziram ao fim da antiga Iugoslávia na década de 90 do século XX não poderiam permanecer impunes, visão estabelecida e concretizada desde os julgamentos de Nuremberg (1945) e de Tokyo (1946).

Assim, em 25 de maio de 1993 foi aprovada a Resolução nº 827/1993, pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas com o escopo de estabelecer um tribunal internacional ad hoc para julgar os responsáveis por graves violações do direito internacional humanitário cometidas no território da ex-Iugoslávia desde 1991, com sede na cidade Haia, nos Países Baixos.

Para o Direito Penal Internacional, foram diversas as contribuições e os avanços efetivados pelas interpretações e decisões do ICTY e que hoje compõem relevante patrimônio jurídico disponível para a defesa dos direitos humanos e combate à impunidade pelo cometimento dos crimes internacionais, especialmente os crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crime de genocídio, todos comprovadamente praticados em distintas situações nas guerras balcânicas dos anos 90, inclusive na Bósnia e Herzegovina, há exatos trinta anos.

Não foram poucos os avanços ou o fortalecimento de alguns aspectos verificados para a Justiça internacional. Assim, podemos exemplificar alguns, como: a) a responsabilização de superiores hierárquicos, sejam civis ou militares, pelos crimes internacionais praticados por seus subordinados e que, afinal, confirma um dos sete princípios sedimentados a partir dos julgamentos de Nuremberg (Čelebići, 1998); b) reconhecimento de que os crimes contra as leis e costumes de guerra podem ser reconhecidos também quando cometidos em conflitos não-internacionais (Duško Tadić, 1997); reconhecimento de prática de crime de genocídio no massacre de Srebrenica, que completa trinta anos em 2025 (Radislav Krstić, 2001); reconhecimento de que o estupro e a escravidão sexual podem ser executados como crimes de guerra e crimes contra a humanidade (Mucić, 1998; Furundžija, 2000; Kunarac, 2002, dentre outros).

Em relação à temática da violência sexual e de gênero em conflitos armados, as decisões do ICTY sedimentaram entendimentos fundamentais para o combate à impunidade de tais crimes, caracterizados por extrema crueldade, ainda cometidos atualmente, infelizmente, como demonstram os crimes sexuais cometidos nos conflitos atualmente em curso.

Podem, assim, ser mencionas importantes contribuições na seara do enfrentamento à Gender Based Violence in Armed Conflicts estabelecidas pelas interpretações do ICTY, tais como:

1.       Reconhecimento da escravidão sexual como crime contra a humanidade e da violência sexual sistematizada cometida durante os conflitos como perseguição de gênero (Prosecutor v. Dragoljub Kunarac, Radomir Kovač e Zoran Vuković, 2001);

2.       Decisão no sentido de que o estupro é uma forma de tortura, bem como que comandantes podem ser responsabilizados por violência sexual cometida por subordinados (Prosecutor v. Anto Furundžija, 1998);

3.       Definição do estupro sistematizado em campos de concentração/detenção (rape camps) como forma de tortura e violação do direito internacional humanitário. Além disso, a decisão confirmou a responsabilidade dos superiores hierárquicos e comandantes (Prosecutor v. Zejnil Delalić, Zdravko Mucić, Hazim Delić e Esad Landžo – Čelebići Case, 1998);

4.       Considerou crimes contra a humanidade as perseguições com base em gênero cometidas por meio de abusos sistemáticos contra mulheres em campo de detenção

Muitos outros casos e seus avanços poderiam ser mencionados. Trinta anos depois, os ecos dos conflitos armados balcânicos da década de 90 ainda se fazem escutar, seja pela fragilidade da pax alcançada na região; pelos legados do ICTY para a Justiça internacional ou, ainda, pela dor silenciosa dos sobreviventes e dos familiares que perderam seus entes queridos.

Que as lições do passado, que parece, não foram ainda compreendidas, iluminem a razão das nações, seus governantes e de seus povos.

Não há presente que não tenha sido pavimentado pelo passado, especialmente em relação às guerras e às suas sementes cultivadas para o futuro.

 

Fonte: Por Flávio de Leão Bastos Pereira, no Le Monde 

 

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