Fungos
mortais estão se multiplicando — podemos impedir o surgimento de novas ameaças?
As
mudanças climáticas costumam ser associadas a incêndios florestais, enchentes e
danos a construções e à agricultura.
Mas o
aumento das temperaturas também faz com que as doenças fúngicas consigam se
espalhar para partes do planeta que, antes, eram frias demais para a
sobrevivência dos fungos.
Pesquisas
recentes realizadas pela Universidade de Manchester, no Reino Unido, indicam
que um fungo mortal que afeta milhões de pessoas por ano em países mais quentes
logo poderá se propagar pela Europa, com o contínuo aquecimento do planeta.
Trata-se
de uma espécie do gênero Aspergillus que pode causar infecções pulmonares
mortais.
Estima-se
que ele seja responsável pela morte de cerca de 1,8 milhão de pessoas por ano,
em todo o mundo — e a previsão é que ele se propague da África e da América do
Sul em direção ao norte.
O
alerta coincide com a recente série de ficção científica The Last of Us
(2023-2025). A produção, baseada em um jogo de videogame homônimo, mostra um
fungo terrível que altera o cérebro humano e dizima grande parte da população
mundial.
A série
exagera enormemente este risco, mas ainda existem receios muito reais sobre o
aumento das doenças causadas por fungos, segundo a professora de Doenças
Infecciosas Pediátricas Adilia Warris, da Universidade de Exeter, no Reino
Unido.
"As
doenças fúngicas podem variar de enfermidades leves e irritantes, como a
frieira... até infecções possivelmente mortais, que atingem a corrente
sanguínea ou o cérebro, o que pode ser fatal", explica a professora.
Os pés
são um bom abrigo para os fungos devido às rachaduras por onde as células
fúngicas podem invadir a pele. É um ambiente escuro e úmido, especialmente com
o uso de meias e sapatos.
Mas um
tipo diferente de fungo – os patógenos do mofo – representa outro problema
quando aspirado pelos pulmões, especialmente se o nosso sistema imunológico já
estiver debilitado.
Esses
fungos liberam esporos que podem germinar nas "estruturas em forma de
pão" que crescem no tecido pulmonar, causando doenças, segundo Warris.
O outro
grupo importante de fungos já vive dentro de nós: as leveduras. O exemplo mais
conhecido é Candida albicans, que faz parte da flora humana normal.
"Você
encontra esta levedura [em] muitas pessoas saudáveis no [seu] intestino",
prossegue a professora, "e ela simplesmente ajuda a manter a saúde
intestinal, ao lado de uma série de bactérias."
Mas, se
ela entrar na corrente sanguínea porque as defesas imunológicas da pessoa estão
prejudicadas ou no caso de lesões dos órgãos, seja por traumas ou por
procedimentos cirúrgicos, Warris explica que "o paciente irá desenvolver
[algo comparável] ao que as bactérias podem fazer — uma septicemia [infecção
generalizada], que é uma doença grave."
• Tempestade perfeita
Muitos
desses fungos já estão à nossa volta. A questão é por que eles passaram a
representar mais problemas.
A
professora de Microbiologia Clínica Rita Oladele, da Universidade de Lagos, na
Nigéria, afirma que deveríamos nos preocupar mais com as doenças fúngicas,
principalmente depois da pandemia de covid-19.
Ela
explica que, com o aumento das temperaturas, surgiram patógenos emergentes.
E os
avanços médicos, com o consequente aumento da nossa expectativa de vida, também
colaboram para isso. Afinal, existem mais pessoas vivendo por mais tempo com
seu sistema imunológico comprometido.
"Nós
fazemos agora mais transplantes, e de praticamente qualquer órgão",
prossegue a professora.
"Você
tem pacientes com câncer passando por quimioterapia. Tudo o que enfraquece o
sistema imunológico [coloca] os pacientes em risco de infecções fúngicas."
E
pacientes que tomam esteroides por períodos mais longos para combater doenças
também correm o risco de contrair infecções causadas por fungos.
Oladele
destaca que existe uma disparidade "significativa" entre o Norte e o
Sul Global em relação à capacidade de diagnosticar e administrar adequadamente
os pacientes com graves infecções fúngicas ou que correm o risco de
contraí-las.
Não se
trata apenas dos locais onde a disponibilidade de diagnósticos é preocupante,
mas também da disponibilidade e acessibilidade dos medicamentos antifúngicos.
A
professora explica que as infecções causadas por fungos certamente apresentam
maior incidência em clima mais quente, especialmente em locais onde há muito
mais pessoas infectadas com o HIV, que prejudica o sistema imunológico.
E,
"apesar da maior incidência desta doença no Sul Global, ela irá também
levar à migração, já que as pessoas buscarão atendimento melhor em outros
locais", ela acrescenta.
• A influência das mudanças climáticas
Arturo
Casadevall é professor de Microbiologia Molecular e Imunologia da Escola
Bloomberg de Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos.
Ele
afirma que, com o aquecimento global, as doenças fúngicas irão se propagar para
locais onde, até agora, elas não foram encontradas.
"Sabemos
que a vida se adapta, a vida sobrevive, mas o receio é que, à medida que o
mundo se aquece, muitos dos fungos causadores de doenças (por exemplo, em
plantas e insetos, que são organismos que vivem à temperatura ambiente)
conseguirão sobreviver em temperaturas mais altas", explica ele.
"E,
se isso acontecer, observaremos doenças fúngicas atualmente desconhecidas pela
medicina."
Além
disso, "a umidade é um fator importante para os fungos... Os fungos
precisam de muita água e se multiplicam em ambientes com alto teor de
umidade."
Mas as
condições secas também afetam a proliferação dos fungos, segundo Casadevall.
"Temos
um fungo nos Estados Unidos, por exemplo, que causa uma doença conhecida como
coccidioides immitis. Ele é encontrado no deserto, no sudoeste do país."
"Mas,
à medida que os desertos dos Estados Unidos se expandem, o habitat deste
organismo também aumenta."
"Por
isso, acho que a umidade será uma variável importante e, como sabemos, ela
sofre grande influência da temperatura do ar – e [ambas] serão afetadas pelas
mudanças climáticas."
A
equipe do professor Casadevall vem conduzindo pesquisas em Baltimore, no Estado
americano de Maryland. É lá que fica sediada a Universidade Johns Hopkins.
Examinando
diferentes áreas da cidade, eles tentam criar modelos que indiquem as
alterações da área de incidência das doenças fúngicas. O estudo concluiu que os
fungos da cidade já começaram a se adaptar ao novo clima, o que provavelmente
está acontecendo em todo o mundo.
"Estamos
tentando compreender como isso acontece", afirma o professor.
"Um
bairro mais fresco é aquele em que, por exemplo, existem muitas árvores e
grama, enquanto os bairros mais quentes são aqueles onde há poucas árvores e
muito concreto. E as diferenças de temperatura podem ser significativas, de 4
ºC ou 5 ºC."
• Nossos corpos estão ficando mais frios
Existe
outra mudança de temperatura importante acontecendo, dentro do nosso corpo.
No
passado, o corpo humano era quente demais para o desenvolvimento adequado dos
fungos. Mas, nas últimas décadas, ele passou a ser mais frio.
"Estamos
muito bem protegidos contra os fungos porque temos um sistema imunológico
desenvolvido", pontua Casadevall.
"Temos
uma espinha dorsal e todos os animais com espinha dorsal possuem sistemas
imunológicos avançados. Mas também temos alta temperatura, basicamente de 37ºC.
O nosso corpo é tão quente que afasta a maioria das espécies de fungos."
"É
por isso que, quando as pessoas contraem doenças fúngicas, elas ocorrem na
pele, como as doenças das unhas", explica o professor. "É uma área
[do corpo] mais fresca."
Mas
Casadevall destaca que o nosso corpo tem hoje, em média, temperatura 1ºC mais
baixa do que 100 anos atrás. E isso altera a nossa suscetibilidade às doenças
fúngicas.
"A
medicina moderna curou muitas doenças [infecciosas] e, como vivemos em um
ambiente mais limpo, nossos níveis de inflamação diminuíram. Por isso, nossas
temperaturas também caíram", segundo ele.
Ou
seja, a nossa temperatura corporal, em média, é mais baixa do que um século
atrás, pois hoje sofremos muito menos infecções que acionam o nosso sistema
imunológico.
E,
paralelamente, o mundo está ficando mais quente.
• O combate
Como podemos
nos proteger?
A
classe de medicamentos antifúngicos mais usados hoje é a dos azóis. Eles
funcionam interferindo no funcionamento e no crescimento das células fúngicas.
Os
azóis são empregados para tratar diversas infecções causadas por fungos e
também são amplamente usados na agricultura para proteger a produção.
O
problema é que o uso excessivo dessas substâncias está contribuindo para
selecionar fungos cada vez mais resistentes a elas.
"Observamos
o surgimento de resistência a estes compostos com muita rapidez", explica
o professor de Doenças Fúngicas Michael Bromley, da Universidade de Manchester,
no Reino Unido.
"E
o motivo por que eles parecem desenvolver resistência é a presença de
fungicidas no meio ambiente, devido ao uso dessas substâncias em produtos de
proteção agrícola, para impedir que patógenos fúngicos infectem as
plantas."
Por
isso, o uso disseminado de azóis na agricultura passou a ser considerado a
causa de grande parte da resistência clínica dos fungos.
O fungo
Aspergillus é conhecido pelo seu impacto sobre a deterioração e decomposição de
alimentos. Ele vive no solo e nas pilhas de compostagem.
Bromley
afirma que cerca de 10 mil toneladas de azóis fungicidas são pulverizadas na
agricultura todos os anos, na União Europeia.
A
pulverização de grandes quantidades de fungicidas fez com que os organismos
desenvolvessem a capacidade de enfrentar esses produtos. E, como estes azóis
são similares aos empregados para o tratamento de doenças fúngicas em seres
humanos, os hospitais também passaram a enfrentar a resistência dos fungos.
• Qual é a solução?
Bromley
destaca que algumas pessoas exigem a proibição do uso de fungicidas de azol na
produção agrícola.
Mas
essa medida reduziria o rendimento das safras e, por consequência, a produção
de gêneros alimentícios. Por isso, o professor pesquisa tratamentos
alternativos.
Ele
conta que teve algum sucesso no desenvolvimento de novos compostos que alteram
o DNA das células fúngicas, que acabam morrendo.
Existe
também uma outra técnica, que utiliza fosmanogepix — um agente antifúngico
inovador, eficaz contra mofos e leveduras.
Ele
funciona de forma diferente dos outros tratamentos, desestabilizando os ganchos
empregados pelas células fúngicas para movimentar as proteínas necessárias para
sua sobrevivência.
Bromley
afirma que estas drogas ficarão disponíveis nos próximos anos. E existe ainda
outra razão para termos otimismo.
A
aspergilose é uma das doenças fúngicas mais mortais para os seres humanos. Ela
é transmitida à temperatura corporal.
Estima-se
que, anualmente, a aspergilose cause centenas de milhares de mortes em todo o
mundo. Mas ela apresenta uma limitação importante.
"Em
doenças causadas por Aspergillus, não observamos a transmissão de um paciente
para outro", segundo Bromley. "É muito raro. O que parece acontecer é
que elas chegam a nós pelo ambiente."
"Isso
significa que, se pudermos interromper o surgimento de resistência no meio
ambiente, existe uma real esperança de que algumas dessas drogas que estamos
desenvolvendo possa ficar conosco por muito tempo."
A
crescente população mundial faz com que seja necessário usar fungicidas para
proteger a produção agrícola. E este uso indiscriminado fez com que os fungos
aprendessem como evitar os tratamentos.
Por
isso, precisamos de novos tratamentos — e alguns deles já começam a ser
vislumbrados. A questão é se conseguiremos desenvolvê-los com a rapidez
necessária.
Fonte:
Serviço Mundial da BBC

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