Financeirização:
Haddad e Galípolo como cativos
A
economia brasileira, historicamente marcada por relações de dependência e
subordinação ao capital externo e às elites internas, aprofundou, nas últimas
décadas, um vínculo estrutural com o poder financeiro. No contexto da
financeirização global e da hegemonia do capital fictício, o Brasil
transformou-se em refém — voluntário e consciente — dos grandes bancos, que
passaram a ditar os rumos da política econômica e a capturar, para si, parcelas
crescentes do fundo público. A lógica do rentismo impõe-se sobre a esfera
produtiva, condicionando o Estado a atuar como garantidor da valorização
financeira e administrador das contradições do capital, em detrimento de
qualquer projeto de desenvolvimento nacional autônomo e inclusivo.
Esse
processo não se dá por acidente ou desvio de rota: ele expressa a forma
contemporânea da dominação de classe sob o capitalismo em crise estrutural. O
Ministério da Fazenda (e o ministro, Fernando Haddad), o Banco Central (e seu
presidente, Gabriel Galípolo), o Tesouro Nacional e os demais aparatos da
política econômica operam como instrumentos da reprodução da financeirização,
assegurando a rentabilidade dos grandes conglomerados financeiros por meio de
juros elevados, emissão sistemática de dívida pública e mecanismos diversos de
transferência de recursos do orçamento público para o setor privado. A economia
nacional, assim, se submete ao imperativo de remunerar o capital ocioso, ao
custo do arrocho social, do esvaziamento do investimento produtivo e da erosão
das bases materiais da cidadania. Portanto, Haddad e Galípolo são apenas
cativos.
Ao
submeter-se ao cativeiro do grande capital financeiro como prioridade de
Estado, a economia brasileira naturaliza a sua condição de colônia dos próprios
bancos que aqui operam. Essa realidade, marcada por desigualdade crescente,
desindustrialização e precarização do trabalho, exige uma análise crítica. Este
pequeno texto demonstra os mecanismos que sustentam essa dominação financeira,
examinando o papel do Estado, do banco central e das políticas econômicas na
reprodução do capital fictício e suas consequências sociais, políticas e
econômicas para o país.
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O papel do Estado e do Banco Central
A
crítica da economia política jamais ignorou o papel do Estado na sustentação
das condições de acumulação do capital. Contudo, na fase financeirizada do
capitalismo, marcada pela hegemonia do capital fictício, o Estado assume uma
função estratégica de garantidor da valorização financeira, mesmo em contextos
de colapso produtivo. Essa atuação estatal — longe de se contrapor ao capital —
revela-se como momento necessário da reprodução do capital fictício,
funcionando como suporte de sua legitimidade, solvência e expansão.
Ao
contrário das formulações liberais, que apresentam o Estado como árbitro neutro
ou agente ineficiente, a crítica aqui reconhece que o Estado, especialmente por
meio dos bancos centrais e da política fiscal, opera como gestor das
contradições do capital, sobretudo quando este se torna incapaz de se valorizar
por vias produtivas. As políticas monetárias e financeiras do Estado não são
autônomas: elas expressam o imperativo sistêmico de garantir a rentabilidade do
capital fictício, sob pena de desencadear crises generalizadas.
Assim,
em A mundialização do capital, o crítico francês François Chesnais, identifica
que, desde os anos 1980, os Estados passaram a atuar de forma sistemática para
preservar o capital fictício, criando instrumentos de monetização da dívida
pública, intervindo diretamente nos mercados e promovendo ciclos de valorização
artificial de ativos. Também, o grego Costas Lapavitsas em Lucro sem produção
(2021), mostra que os bancos centrais se tornaram verdadeiros “bombeiros do
capital financeiro”, intervindo não para corrigir desequilíbrios sociais, mas
para assegurar liquidez, solvência e confiança nos mercados — mesmo ao custo de
cortes sociais e arrocho salarial. Salienta ainda que o Estado se converteu em
gestor da valorização fictícia, com seus bancos centrais funcionando como
“garantidores de última instância da rentabilidade dos mercados”.
O papel
do Estado manifesta-se, sobretudo, em três frentes:
Emissão de dívida pública para sustentar
os mercados, gerar ativos seguros e atrair capital excedente;
Política monetária expansionista, com
baixas taxas de juros e programas de compra de ativos (quantitative easing);
Resgates financeiros de grandes bancos e
empresas (aqueles considerados “too big to fail”, em bom português, grandes
demais para falir), socializando os prejuízos e privatizando os lucros.
Essas
políticas configuram o que David Harvey, em O novo imperialismo, chama de
acumulação por despossessão estatal: o Estado, longe de proteger a sociedade,
converte-se em instrumento de canalização de valor da esfera pública para a
financeira, aprofundando a desigualdade e legitimando a hegemonia do capital
fictício.
Um
exemplo real do que dizem esses autores foi o colapso do sistema financeiro em
2008, quando o Federal Reserve (EUA) e o Banco Central Europeu (BCE) injetaram
trilhões de dólares e euros no sistema bancário por meio de linhas de crédito
emergenciais, recompra de ativos podres e redução histórica das taxas de juros.
Os Estados assumiram as perdas privadas para impedir o colapso do sistema
financeiro. Ao mesmo tempo, impuseram políticas de austeridade aos setores
populares, cortando serviços públicos e precarizando direitos. O Estado agiu,
portanto, como agente da reprodução do capital fictício, confirmando sua função
de classe.
Em
paralelo, no Brasil, o Banco Central atua como o principal garantidor da
rentabilidade do capital financeiro por meio da gestão da dívida pública e da
política de juros. A remuneração dos títulos da dívida, mesmo em contextos de
estagnação econômica, assegura rendimentos elevados para rentistas e
instituições financeiras. Programas como o “quantitative easing” à brasileira —
via injeção de liquidez no mercado bancário e swap cambial — representam formas
pelas quais o Estado atua para preservar o valor dos ativos fictícios, mesmo à
custa da compressão do gasto social e da subordinação do orçamento público aos
interesses do capital.
Dessa
maneira, como modus operandi, o Estado e seus aparatos monetários não apenas
toleram o capital fictício: eles o produzem, legitimam e expandem. A autonomia
do capital financeiro exige uma mediação estatal permanente, que transforma os
governos em garantidores da ficção valorizadora dos mercados. Assim, o capital
fictício revela sua essência política: ele não se sustenta sem coerção, sem
legislação, sem suporte fiscal — isto é, sem que o Estado atue como expressão
institucional da dominação de classe sob forma financeira. Ou seja, o cativeiro
de Haddad e Galípolo é método, não voluntarismo.
Essa
lógica estrutural se expressa com clareza em episódios recentes da política
econômica brasileira. A tentativa frustrada de Fernando Haddad de manter a
taxação do IOF (Imposto Sobre Operações Financeiras) sobre operações cambiais,
prontamente derrubada pelo Congresso Nacional, exemplifica de forma aguda o
grau de captura institucional da política econômica pela lógica do capital
financeiro. A medida, que visava ampliar a arrecadação e introduzir algum nível
de regulação sobre os fluxos de capital especulativo, foi repelida com rapidez
por parlamentares alinhados aos interesses do mercado, revelando a baixa
autonomia do Executivo frente ao poder do rentismo.
Essa
submissão se torna ainda mais evidente quando se observa a atuação de Gabriel
Galípolo no Banco Central. Apesar de um quadro macroeconômico aparentemente
favorável — com o desemprego em queda, a inflação de alimentos sob controle, o
PIB em crescimento e a taxa de câmbio relativamente estável —, o Comitê de
Política Monetária (Copom) decidiu, na última reunião, elevar a taxa Selic para
15% ao ano. Tal movimento, descolado das necessidades reais da economia
brasileira, atende exclusivamente às pressões dos mercados financeiros e à
necessidade de assegurar altos retornos aos detentores de títulos públicos.
Esses
exemplos não são desvios pontuais, mas expressões sintomáticas da engrenagem
estruturante da financeirização. Ambos os episódios, recentes e simbólicos,
demonstram que Haddad e Galípolo, ainda que eventualmente portadores de boas
intenções ou sensibilidade social, estão estruturalmente amarrados a um
arcabouço de dominação financeira que transforma a política econômica em mera
engrenagem da reprodução do capital fictício. Sua atuação não é fruto de
vontade própria ou erro técnico, mas da função que ocupam no aparelho de Estado
financeirizado: são gestores cativos de um modelo cujo objetivo não é o
desenvolvimento, mas a rentabilidade do capital. Seu cativeiro, portanto, não é
acidental — é estrutural.
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Consequências sociais e políticas da financeirização
A
hegemonia do capital fictício, longe de ser um fenômeno restrito à alta finança
ou às decisões técnicas dos bancos centrais, transforma profundamente as
estruturas sociais, os padrões de vida, a organização do trabalho e a
subjetividade contemporânea. A financeirização penetra nos tecidos mais íntimos
da vida social, impondo uma lógica de valorização abstrata sobre os direitos
sociais, o tempo cotidiano, a moradia, a saúde e até mesmo os afetos.
Ao
contrário da promessa liberal de democratização do capital via crédito,
investimentos e acesso ao mercado financeiro, a realidade da financeirização
revela-se como nova forma de espoliação, disciplinamento e precarização,
sobretudo para os trabalhadores, populações racializadas, mulheres e periferias
urbanas. O capital fictício se alimenta da instabilidade e da insegurança — que
são, paradoxalmente, condições de sua reprodução.
Lapavitsas
denomina esse fenômeno “financeirização da vida cotidiana”. Assim, o capital
não apenas organiza a produção, mas subordina a reprodução social aos
mecanismos de valorização financeira. Habitação, educação, saúde e
aposentadoria tornam-se ativos financeiros, convertendo cidadãos em devedores,
famílias em unidades de risco e trabalhadores em investidores precários.
Segundo o autor, o capital fictício impõe uma forma de dominação abstrata, em
que o futuro das pessoas é capturado por dívidas e promessas de valorização que
as submetem ao império dos mercados.
Um
exemplo é endividamento estrutural das famílias. Nos últimos 30 anos, o acesso
ao crédito passou a substituir políticas públicas de proteção social. No
Brasil, o financiamento estudantil, os cartões de crédito, os empréstimos
consignados e os financiamentos imobiliários transformaram o direito à
educação, moradia e consumo em dívida futura. As famílias tornam-se dependentes
de instituições financeiras e vivem sob o peso de compromissos de longo prazo,
frequentemente impagáveis. O endividamento converte-se em mecanismo de controle
social, disciplinando comportamentos, consumos e projetos de vida. A promessa
de mobilidade social é trocada pela servidão ao capital financeiro.
Ademais,
nas grandes cidades brasileiras, o capital fictício se materializa nas
transformações urbanas que expulsam populações pobres em favor da valorização
dos ativos imobiliários. Fundos de investimento, incorporadoras e bancos
utilizam a lógica financeira para gerir o solo urbano: bairros são
“revitalizados”, aluguéis sobem, populações são removidas. A cidade se torna um
ativo e o direito à moradia converte-se em objeto de valorização financeira. Em
São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza, por exemplo, a financeirização da terra
e da moradia é acompanhada por um aumento da desigualdade espacial, por
conflitos fundiários e por repressão estatal às resistências populares.
Desse
modo, as consequências políticas da financeirização são igualmente profundas. A
ascensão do capital fictício coincide com o esvaziamento das formas
tradicionais da democracia representativa, a captura das instituições por
interesses financeiros e a deslegitimação dos mecanismos de deliberação
coletiva. O Banco central ganhou autonomia e se tornou ator não eleito com
poder decisório sobre a vida de milhões. Ao mesmo tempo, movimentos sociais são
desmobilizados pela fragmentação, pelo endividamento e pela difusão de uma
cultura de responsabilização individual.
A
financeirização da sociedade, portanto, não é apenas um processo econômico:
trata-se de uma forma de dominação estrutural, que articula violência
simbólica, disciplinamento moral, tecnocracia e captura da subjetividade. O
capital fictício exige que os indivíduos vivam como algoritmos de risco —
constantemente calculando, investindo, endividando-se, economizando —, enquanto
o capital real se retrai e a esfera pública se dissolve.
A
crítica feita aqui à financeirização revela que, sob a aparência de
modernidade, eficiência e inovação, o capital fictício apropria-se da
reprodução social como nova fronteira da acumulação, expropriando tempo,
direitos e futuro. Suas consequências são a intensificação da desigualdade, o
aprofundamento das formas de dominação e a degradação das bases materiais da
cidadania. A superação dessa lógica exige, antes de tudo, o desvelamento de seu
conteúdo ideológico e a recomposição de formas coletivas de resistência e
imaginação política.
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Conclusão
A
financeirização não é uma anomalia ou um desvio da lógica do capitalismo: ele é
o desdobramento necessário da forma-valor em sua busca desesperada por
autovalorização em contextos de crise estrutural. Ao converter expectativas
futuras em ativos presentes, o capital fictício permite ao sistema capitalista
adiar a realização de suas contradições fundamentais, postergando, mas não
suprimindo, os limites da acumulação real. A financeirização da vida social, a
hipertrofia dos mercados financeiros e a captura do Estado por interesses
rentistas revelam que a financeirização tornou-se a forma hegemônica de
reprodução do capital em sua fase de declínio histórico.
O
capital, para se valorizar, depende da extração de mais-valor — isto é, do
trabalho vivo. No entanto, à medida que essa base produtiva se estreita, o
capital busca compensações no campo da circulação, do crédito e da especulação.
O capital fictício emerge como tentativa de romper os limites objetivos da
produção com formas simbólicas de valorização. Essa fuga para frente, no
entanto, tem um custo: instabilidade permanente, crises recorrentes,
endividamento estrutural, precarização do trabalho e esvaziamento das formas
democráticas de mediação. Sendo assim, a financeirização é a máscara temporária
da crise permanente dos sistemas produtivos. Sua expansão é a revelação de um
sistema que não consegue mais se reproduzir por suas próprias bases.
O que
está em jogo, portanto, não é apenas uma forma específica de capital, mas o
futuro da própria civilização sob a hegemonia do valor abstrato. A
financeirização não apenas submete o trabalho e os bens comuns à lógica de
mercado; ela redefine o horizonte histórico da vida, impondo um tempo de curto
prazo, um regime de valorização imediata e um modelo subjetivo baseado no
risco, na dívida e na meritocracia.
A
financeirização, ao tornar-se dominante, expõe o esgotamento da forma social
capitalista como totalidade histórica. Ele revela que o capital, ao tentar se
autonomizar de sua base real — o trabalho —, transforma-se em simulacro, em
fetiche autorreferente, cuja instabilidade ameaça não apenas a economia, mas a
própria reprodução da vida.
A
superação da financeirização, contudo, não virá de sua implosão interna, mas da
construção consciente de alternativas políticas, econômicas e civilizatórias,
da construção de um novo projeto nacional de desenvolvimento da sociedade que
rompa com a ditadura do valor e do mercado financeiro. Isso implica retomar o
controle social sobre a moeda e o crédito, como propuseram experiências como a
auditoria cidadã da dívida no Equador e as iniciativas de bancos públicos de
desenvolvimento voltados ao financiamento da economia real, como ocorre na
China. Significa também promover políticas fiscais redistributivas, controle do
movimento de capitais, taxação das grandes fortunas e das operações
financeiras, além de uma reestruturação profunda do sistema bancário, orientada
para o financiamento da produção e da reprodução social, e não da especulação.
No plano social, a construção de alternativas exige o fortalecimento dos
movimentos populares, a rearticulação das formas coletivas de resistência e a
invenção de novos espaços institucionais para a deliberação democrática e o
planejamento econômico, sob controle dos trabalhadores e da sociedade civil
organizada.
Em
síntese, enfrentar a financeirização implica uma ruptura civilizatória: a
afirmação de um horizonte baseado na centralidade do trabalho, na preservação
dos bens comuns e na soberania popular sobre os destinos econômicos e sociais.
Como afirmou Marx, a emancipação do trabalho é a condição para a emancipação da
humanidade — e essa emancipação exige o desmonte radical da ditadura do valor.
Fonte:
Por Roberto César Cunha, no Blog da Boitempo

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