De
Lacerda, o liberal, ao Gilvan da Federal: Será que a direita brasileira algum
dia foi realmente democrática?
Vejo o
debate na TV, um jovem professor, naquela pressa de última fala, menciona
Carlos Lacerda a fim de contrastar a direita do passado, ciosa da tolerância e
da democracia, com a de hoje, obscurantista e violenta. Receio que essa
confusão involuntária obscureça pontos de contato entre a principal corrente do
liberalismo político-partidário brasileiro no período 1946-1964 e a perigosa
aproximação entre neoliberalismo e neofascismo desencadeada na segunda década
deste século, e que ainda emite sinais de expansão. Mesmo assim, perto de
Carlos Lacerda, o deputado Gilvan Aguiar Costa, Gilvan da Federal, do PL
capixaba, é um esforçado aprendiz.
Complicada
questão de método. Embora se trate das mesmas estruturas de dominação, seis
décadas de história da formação social brasileira e do sistema imperialista
comportam imensa complexidade. Também passo correndo pela questão
teórico-ideológica. Não se trata de descartar em bloco as contribuições do
liberalismo tanto nos seus aspectos intrínsecos quanto pelos desafios que
apresentam a formulações teóricas e intervenções efetivas daqueles que
pretendem transformar o mundo antes que ele acabe. Por outro lado, é sempre bom
lembrar que o Brasil é importante referência acerca das relações entre
liberalismo e formas extremas de opressão de classe. A começar pela curta
distância temporal — três décadas apenas — entre a abolição legal da
escravatura e a criação do Partido Nazista (1919-1920) ou mesmo a implantação
do regime, a partir de 1933.
Relações
perigosas entre liberalismo e opressão sociopolítica receberam importantes e
sofisticadas tematizações com referências, por exemplo, às ideias fora do lugar
e ao autoritarismo instrumental. Na sequência, vieram teses fundamentais acerca
das relações entre Estado e as complexas relações de classes desde o império
escravista moderno, o que passou pelas reconfigurações do sistema imperialista.
Enfim, também merecem destaque os trabalhos que contribuíram, inclusive, para a
dignificação científica do estudo de partidos políticos no Brasil durante a IV
República. Devedor de todas essas importantes contribuições, especialmente da
terceira, limito-me a destacar um aspecto que talvez mereça abordagem mais
detalhada: sob o impacto da reconfiguração do campo imperialista após a Segunda
Guerra Mundial, uma nova determinação da luta ideológica aprofundou as
contradições entre liberalismo e democracia no interior da União Democrática
Nacional, o principal partido liberal-democrata deste país ao longo do período
1946-1964. Referências a personagens individuais ou a órgãos de imprensa
não devem obscurecer a preocupação fundamental com relações sociopolíticas. O
ponto central não é Carlos Lacerda ou Afonso Arinos — dois destacados udenistas
—, mas a extraordinária inserção que tiveram o tempo todo nas relações de
classes, especialmente em múltiplas esferas institucionais, do Parlamento às
Forças Armadas e diversos aparelhos ideológicos. Enfim, referências anedóticas,
inclusive jornalísticas, têm um caráter meramente ilustrativo e citações
bibliográficas precisas serão apresentadas em texto mais longo a ser publicado
em breve.
- O partido dos
candidatos armados
Um dos
aspectos mais inquietantes da IV República brasileira foi a posição proeminente
de militares no principal partido político que se apresentava como a expressão
máxima da liberal-democracia: a UDN. Sim, houve heterogeneidade na dinâmica do
partido ao longo de seus vinte anos de vida. Porém, no fundamental, as posições
hegemônicas no interior da UDN foram elitistas, anti-desenvolvimentistas e
claramente pró-imperialistas.
Houve
quatro eleições presidenciais. Nas três primeiras, os candidatos udenistas
foram, ao mesmo tempo, militares e efetivos dirigentes do partido (Eduardo
Gomes, em 1946 e 1950; Juarez Távora, em 1955). Nas três, eram estreitamente
ligados aos EUA, além de antidesenvolvimentistas; e foram derrotados. Em duas
ocasiões (eleição de Vargas, em 1950; e de Kubitschek, em 1955), os principais
dirigentes udenistas tentaram impedir a existência da principal candidatura
adversária e, diante da derrota nas urnas, tentaram impedir a posse do eleito,
que só se realizou graças, em primeira instância, a um importante aspecto
extra-eleitoral: as relações no interior das Forças Armadas, especialmente no
Exército. Na sequência de duas eleições, liberal-democratas questionaram a
legitimidade do governo com resultados danosos, imediatos e de médio prazo,
inclusive para os chefes do executivo. Um deles, Getúlio Vargas, praticamente
deposto, suicidou-se no exercício do mandato, em 24 de agosto de 1954. Outro,
Juscelino Kubitschek, teve, três anos após governar o país, seu mandato de
senador cassado e seus direitos políticos suspensos pelo regime militar; e
morreu em circunstâncias ainda pouco esclarecidas.
Durante
todas as quatro eleições, os candidatos udenistas foram apoiados, em nome da
democracia liberal, pelos grandes meios de comunicação brasileiros, apoio
também dedicado ao golpe de 1964 que, em aparente paradoxo, extinguiu esta
democracia liberal (restrita). E, com algumas rusgas do principal deles,
esses grandes meios apoiaram a ditadura
militar.
No quarto e último pleito, com um candidato de ocasião, Jânio Quadros, a UDN
venceu. Durante a IV República, foi a primeira vez em que — pasme-se! — na
inexistência de contestação ao processo, um civil em final de mandato (no caso,
JK) transferiu o cargo, em ambiente político da maior tranquilidade, ao
sucessor igualmente civil e vitorioso nas urnas. Aparentemente estavam dadas as
condições para que o novo governo fosse o da consolidação — e, quem sabe,
aprofundamento — da democracia liberal no Brasil. Todavia, sete meses depois, o
mandato desembocou em tamanha crise que o país ficou à beira de uma guerra
civil. O presidente, às turras com a UDN, comunicou sua renúncia aos ministros
militares, os quais, por sua vez, vetaram a posse do vice, herdeiro político de
Getúlio Vargas. Atualizou-se, em novos termos, a crise de meados da década
anterior.
O
vice-presidente, João Goulart, foi empossado, mas graças à mudança do sistema
de governo, o que implicou restrições à capacidade diretiva do Executivo e,
portanto, grande vitória para os golpistas. Estes, anistiados, ganharam, a
exemplo do ocorrido no início dos anos JK, uma espécie de bolsa-recuperação
para tentarem outra vez. Em razão de um amplo acordo, o parlamentarismo foi
revertido via plebiscito, mas, 14 meses depois, veio o golpe militar cuja
principal base político-partidária era a UDN. O jovem João Goulart foi um
medalhista discreto. Político estritamente institucional, de índole pacífica e
fama de conciliador, permanece o recordista em acidentes políticos com
militares indisciplinados: seis vezes em dez anos. Ministro do Trabalho, foi
alvejado, juntamente com o ministro da Guerra, pelo Memorial dos Coronéis, sendo destituído em 22 de fevereiro
de 1954 (e o maior atingido foi Getúlio Vargas); sua chapa em parceria com JK
foi vetada, mas resistiu; a vitória eleitoral de ambos foi questionada,
salvando-se graças ao “golpe da legalidade”; em agosto de 1961, vetaram sua
posse na Presidência da República; em setembro, impuseram o Parlamentarismo; o
sexto atropelo em uma década foi o golpe de 1964. Morreu no exílio aos 57 anos
de idade.
Em
cerca de 19 anos, o único presidente eleito com a legenda da UDN deu no que
deu. E mesmo o vice de Getúlio Vargas, Café Filho, praticamente fugiu do cargo,
recolhendo-se a um hospital. No tempo restante, todos os presidentes eleitos
(vices inclusos) foram filiados a dois partidos criados por Getúlio Vargas, o
PSD e o PTB. Finda a sua complicada relação com esta democracia de segurança
nacional, a UDN, assim como os demais partidos políticos da IV República, foi
ingloriamente extinta por meio do Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de
1965. Foram 19 anos de integração nacional sob diversos aspectos. Houve grande
explosão em múltiplos aspectos da cultura, como na música, arquitetura,
urbanismo, literatura e no futebol: em quatro copas do mundo, dois primeiros
lugares e um até hoje amaldiçoado vice. Rolava aquela convicção de que o Brasil
tinha de ser o melhor em tudo, até em concurso de miss; e que, onde analfabetos
(40% da população adulta) não podiam votar e o partido comunista era proscrito,
tínhamos a melhor democracia do mundo.
Porém,
mesmo cerceado por restrições eleitorais, sindicais (só organizações urbanas e
integradas ao aparelho estatal), étnico-raciais e de gênero, as lutas se
expandiram: greves gerais (inclusive políticas) operárias e de classe média; a
popularmente vitoriosa campanha da legalidade, que derrotou um golpe militar;
expansão do movimento estudantil, que passou para a esquerda; Ligas Camponesas:
Comando Geral dos Trabalhadores. O conjunto das frações burguesas e amplos
segmentos da classe média reagiram e, com o apoio decidido dos EUA, veio o
golpe.
- Promessas de um
novo mundo
Nos
idos de 1946, a IV República brasileira iniciou-se em meio às mudanças cruciais
das relações de forças no plano internacional, então marcadas pelos processos
de configuração de uma nova hegemonia no campo imperialista, a expansão de um
bloco liderado pela URSS e o extraordinário desencadear das lutas de libertação
nacional, algumas de caráter socialista, casos da Revolução Chinesa, da Guerra
da Coreia e das lutas na então chamada Indochina. Em meio a esse
processo, os EUA possuíam pujança econômica, insuperável capacidade de
intervenção político-militar e fortíssima e sedutora presença ideológica que só
agora — neste perigoso adentrar do século XXI — emite fortes sinais de fadiga:
representavam o país democrático, com economia industrial dinâmica e capaz de
acolher a todos que valorizam a liberdade e as oportunidades de trabalhar,
adquirir casa própria, automóvel e aquela parafernália de eletrodomésticos que
bastava apertar os botões para se chegar às portas do paraíso.
Em meio
à saraivada de interpelações acerca de um mundo novo, as acolhidas pelo mais
importante núcleo dirigente da UDN eram claras: as do mundo livre sob a forte
liderança econômica e política dos EUA, adesão compartilhada por todos os
grandes órgãos de imprensa brasileiros e por importante parcela da cúpula das
Forças Armadas, especialmente a partir da criação, em 1949, da Escola Superior
de Guerra.
O
problema é que, como explicou Antonio Gramsci em um texto maravilhoso,
americanismo e fordismo não se criam por decreto, mas em meio a importantes
mudanças nas relações sociais. E, no contexto brasileiro em tempos de
Guerra Fria, o PSD e o PTB, ambos criados pelo “arcaico” varguismo, estavam
mais propensos a políticas desenvolvimentistas do que a moderna UDN. Esta e a
grande imprensa liberal, ao mesmo tempo em que glorificavam a sociedade
estadunidense, viam-se às voltas com um forte bloqueio ideológico sobre os
meios — especialmente políticas estatais fortemente industrializantes — que
possibilitassem a transição para o capitalismo industrial, mesmo que
dependente. Bloqueio que se manifestava na relação com as classes populares e
induzia complicados deslocamentos no plano das práticas e do discurso político.
Esse
era um terreno fértil para referências, em novos termos, à corrupção e ao
despreparo, com derivações para determinismos étnico-raciais — o que não
excluiu a Lei Afonso Arinos — e/ou climáticos. No fundo, apontavam uma suposta
incapacidade dos dominados de fazerem escolhas políticas, a começar pelas
eleições, com o mínimo de discernimento. A fábula da mortadela que faz o pobre
mudar de opinião tem precedentes ilustres. Se isso faz sentido, o que
atualmente se chama de política do ódio é também fortemente determinado por
relações sociais — no caso em questão, com uma particularidade a meu ver pouco
abordada —, constitutivas do próprio tipo de dependência. Nos tempos da UDN,
situações-limite de ideologias que se contorcem diante de bloqueios (no caso, o
padrão de dependência) a mudanças sociais cujos resultados aquelas próprias
ideologias apresentam genericamente como virtuosas. E tudo isso anunciado pela
explosão da cultura de massas, inclusive o rádio e um cinema popular que, até
ao mostrar extermínio de indígenas, encantava corações pelo mundo afora e
Brasil adentro.
Passemos
a alguns exemplos.
- A democracia dos
homens de bem
Ao
saber da disposição de Getúlio Vargas para se candidatar a presidente em 1950,
Carlos Lacerda publicou uma célebre agenda de sucessivas ilegalidades: “Getúlio
não será candidato; se for, não se elegerá; caso se eleja, não tomará posse;
empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”
(Advertência necessária; Tribuna da Imprensa, 01/06/1950). Em
agosto do mesmo ano, a ira de Carlos Lacerda recaiu sobre Getúlio Vargas e
também no povo que se deixava empestear pelas palavras fétidas do caudilho, à
maneira do que ocorre com a tuberculose e a sífilis. Daí a sábia conclusão: “É
uma doença social, o varguismo” (Lacerda, T.I. n.
194,12-13/08/1950). Eleito com “apenas” 47,83% dos votos contra 29,66% de
Juarez Távora e 21,49% de Cristiano Machado, Getúlio Vargas não teve a posse
questionada apenas pelo destramelado Carlos Lacerda. Importantes jornais e
ilustres juristas da UDN, como Afonso Arinos, foram ágeis em espremer a
Constituição para fazer jorrar a regra de maioria absoluta.
Passemos
ao quarto item do programa lacerdista: impedir Getúlio Vargas de governar. Sim,
especialmente a partir de 1952, a situação de Getúlio Vargas ficou infernal, e
a queda ocorreu em 1954. Mesmo assim, para quem apoia, inclusive por
razões táticas e/ou estratégicas, o capitalismo industrial (dependente), com
todas as relações de dominação e exploração que isso implica, as realizações
foram impressionantes: o CNPq foi criado quinze dias antes de sua posse e
estreitamente ligado por ele, Vargas, a uma importantíssima política de
desenvolvimento científico-tecnológico; CAPES; BNDE (o S veio depois); recusa
de enviar militares brasileiros para a Guerra da Coreia; criação da Petrobrás
em tempos do império das Sete Irmãs, e no ano em que se iniciou o longo
suplício do primeiro-ministro iraniano Mossadegh; novas e sólidas bases para a
industrialização dependente, com destaque para os fundamentos do parque
automobilístico; dois aumentos do salário mínimo, o primeiro dos quais, em
1951, após uma “seca” de oito anos (o segundo já foi mencionado). E greves
operárias.
Ao
contrário do que Carlos Lacerda afirmava, os discursos de Getúlio Vargas para
os trabalhadores, nos anos 1950, eram cultos e politizados, cheios de
referências a políticas econômicas e a relações sociais, e nada tinham de
comunistas. Como vimos, regime, partido e governo possuíam fortes diferenças em
relação à social-democracia europeia na época: incorporação dos sindicatos ao
aparelho estatal; interdição legal, desde 1947, do partido comunista; proibição
dos sindicatos de trabalhadores do campo e de central sindical nacional. Até em
razão do ascenso das lutas dos trabalhadores e de sucessivas derrotas
nacionalistas, inclusive no plano militar, o cerco a Getúlio Vargas tornou-se
infernal a partir de 1952 e chegou ao clímax com a tentativa de assassinato de
Carlos Lacerda, em 5 de agosto de 1954, quando foi morto um major da
Aeronáutica que, juntamente com outros oficiais, fazia parte da segurança
pessoal do udenista. Este foi o ponto de partida para se exigir a destituição
de Getúlio Vargas sem qualquer procedimento jurídico formal.
Em 24
de agosto de 1954, o editorial de O Estado de S. Paulo, “Em torno
da renúncia”, lamentou a existência, nas Forças Armadas, dos que, em nome da
Constituição, eram contrários ao afastamento de Getúlio Vargas, pois seu
mandato havia se tornado “incompatível com o interesse nacional”. E alertou
para o perigo de que, na continuidade do governo, correriam todos os militares
e civis, jornais e estações de rádio que tivessem exigido a renúncia do
presidente. Ao lado do editorial, na sessão “Momento Político”, estava a
matéria intitulada “Unânimes a Marinha e a Aeronáutica pela renúncia”. Esse
golpe foi conclamado com base em interpretação do interesse nacional por um
órgão de imprensa institucionalista que esteve ao lado de quem já havia perdido
duas eleições presidenciais (1945 e 1950) e, no ano seguinte, 1955, perderia
outra. Órgão que também foi contra a posse de João Goulart em 1961, contra quem
desde então passou a conspirar e colheu os louros da vitória em 1964. A
diferença em relação ao golpe de 2016, que depôs Dilma Rousseff, é que durante
a IV República as ligações eram feitas diretamente com militares,
secundarizando-se o apelo formal ao judiciário ou ao parlamento.
Linha
de abordagem idêntica foi seguida pela destramelada Tribuna da Imprensa que,
em 23 de agosto de 1954, véspera do suicídio de Getúlio Vargas, lançou a
manchete em letras garrafais: “Decisão unânime: renúncia de Vargas”; e abaixo,
em letras menores: “Os brigadeiros reunidos”. Decisão? Com qual autoridade
institucional? Até fazia sentido, pois estava a pleno vapor o inquérito aberto
na “República do Galeão”. No mesmo número da Tribuna da Imprensa,
“Greve na Marinha e na Aeronáutica se Vargas ficar mais de 48 horas”. No dia
seguinte, “Suicidou-se Getúlio Vargas”. E a senha do golpe: “Primeiras
declarações do presidente Café Filho: pacificar os ânimos para um governo de
união nacional”.
Poucos
dias antes, Getúlio Vargas foi procurado pelo general Juarez Távora, de quem
recusou a “sugestão” de que renunciasse, o que abriria espaço para a “união
nacional”. O mesmo Juarez Távora, comandante da Escola Superior de Guerra que,
na sequência, teve dois cargos no governo Café Filho, mantinha estreitas
relações com os EUA, seria derrotado nas eleições presidenciais pela dupla
Kubitschek-Goulart e, logo em seguida, juntamente com próceres da UDN,
questionou o processo de votação. A interpelação direta às Forças Armadas
não significava ausência de grandes juristas nesse embate, especialmente como
parlamentares. Afonso Arinos, ativo líder da minoria na Câmara dos Deputados,
fez eruditos comentários sobre o caráter da crise e defendeu o afastamento de
Vargas, contra quem pronunciou dois célebres discursos: em 9 de agosto de 1954,
quando respondeu ao proferido pelo presidente Vargas em Belo Horizonte; e em 13
de agosto de 1954, sobre o atentado contra Carlos Lacerda. Como o próprio
Arinos observou, este último pronunciamento teve enorme repercussão e foi
considerado o “discurso que derrubou o governo”.
Apesar
da explícita satisfação de Afonso Arinos com seus discursos, considero difícil
identificar, nos dois citados, qualquer teorização sobre política em geral ou
mesmo políticas estatais que não ultrapassem o tema da corrupção e dos
arbítrios que atribuiu a Getúlio Vargas, sempre vinculados a características
pessoais e não poucas vezes por meio de referências a ancestralidades
gauchescas, eventualmente cotejadas com a mineiridade do orador. Seu curto
necrológio de Getúlio Vargas se encerrou com o chamado à união nacional que,
aliás, constituía o lema unificador da oposição em torno do afastamento do
presidente da República. Aliás, o discurso de 13 de agosto foi noticiado, no
dia seguinte, em matéria da Tribuna da Imprensa cujo título
replicou a desqualficação bombástica, feita pelo orador, do governo de Getúlio
Vargas como “estuário de lama e estuário de sangue”.
- Ódio e política
Carlos
Lacerda não era fascista, mas um liberal profundamente antipopular, o que, aliás,
ilustra a obviedade de que existem diferenciadas expressões do ódio na
política. O século XX foi fértil em confluências entre liberalismo e fascismo,
o que também ocorre com algumas de suas vertentes neste preocupante adentrar do
XXI. Com a agravante de que, em boa parte do chamado Ocidente, a estrela-guia
ideológica da chamada sociedade industrial, democrática e aberta a todos os que
querem trabalhar e viver bem perde seu encantamento.
As
novas tecnologias de informação, até pouco tempo atrás consideradas pontes
seguras para a liberdade e a autonomia, funcionam como fortes bloqueios às
lutas dos trabalhadores e trabalhadoras, a começar pelo interior da principal
formação social imperialista em crise de hegemonia. Nas formações sociais
dominadas pelo modo de produção capitalista, Big Techs potencializam a
mobilidade setorial e espacial dos capitais; são meios extremamente eficazes de
se acelerar e intensificar os processos de financeirização e oligopolização;
têm servido de suporte para o fortíssimo controle, a quase qualquer distância
espacial e dimensão da vida, sobre os trabalhadores e trabalhadoras. Resultado:
mais do que as chamadas reestruturações produtivas (capitalistas) anteriores, a
atual semeia a desesperança, terreno fértil para o fascismo. Há algum tempo já
se fala de imperialismo de plataforma e, agora surge, ainda com pitadas de
otimismo, a expressão “capitalismo de vigilância”.
Nesta
longa crise do sistema imperialista hegemonizado pelos EUA, a tendência aponta
para a acumulação capitalista sob regimes fascistizantes e sobre os trilhos de
tresloucada financeirização. Depois de tanto se falar em totalitarismo, é a
primeira vez na história da humanidade em que se compra, se vende, se paga,
recebe e até se assiste a genocídios em tempo real, sem sair da cama ou do
banheiro. E — dizem os entendidos — sob o permanente cuidado dos algoritmos.
Nem precisava, mas os controladores dessa parafernália — até pouco tempo,
revolucionários! — são todos umbilicalmente ligados aos Estados imperialistas
(mais diretamente ao estadunidense) e agora, já com os primeiros rachas, ao
presidente de lá.
Cresce
a importância de se detectar quais correntes do liberalismo partidário se
voltarão para a defesa e o aprofundamento da democracia e de direitos sociais.
Também neste caso, o conhecimento histórico pode ser rico em referências.
Fonte:
Por Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida, no Blog da Boitempo

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