Como
foi a vida de Raul Seixas na Bahia?
Raul,
muito além de ser o tudo e o nada, era baiano. E muito baiano. Apesar da
influência norte-americana desde cedo, que o fez falar inglês fluentemente aos
nove anos, nunca escondeu seu baianês que o carregou durante toda sua vida.
Assim como ocorreu com a turma da tropicália, a Bahia também deu régua e
compasso ao Maluco Beleza que completaria 80 anos este ano.
“Seu
inglês era fluente e natural e, a nossos ouvidos, soava perfeitamente
americano. Quando voltava para o português, ele parecia fazer questão de
exagerar nas marcas de baianidade: em seus discos e em suas apresentações ao
vivo, tudo o que não era americano era baiano”, escreveu Caetano Veloso, em seu
livro Verdade Tropical.
Alguns
fãs de Raulzito, principalmente os mais conservadores, podem estar se tremendo
em começar o texto logo com uma frase do ‘rival’ de Raulzito numa Salvador que
pulsava Bossa e Rock. Mas, convenhamos. É, sem dúvida, uma boa explicação para
saber quem foi a Mosca na Sopa nos tempos de Salvador, no início, no fim e no
meio.
Quem
foi o menino que misturava baianidade e um inglês fluente, que começou a ouvir
Elvis, exalava rebeldia pelas ruas da capital e começou sua carreira sob o
olhar de uma santa? Digo que é impossível saber, mas tentaremos. Afinal, como
diria o próprio Raul, “A necessidade de ter uma resposta nos leva a dois
caminhos: à loucura ou à crença em algo criado para justificar o que não é para
ser justificado”. E quem somos nós para contrariá-lo?
• O início
Veraneio
em Dias D’Ávila, família de classe média e uma criança genuinamente da Cidade
Baixa de Salvador. Este era o cenário da infância e parte da adolescência de
Raulzito e seu irmão quase quatro anos mais novo, Plínio. “Raul é um artista
seminal, enigmático e popular. Boa parte de seus mistérios podem ser elucidados
através do entendimento dessa infância e adolescência. Raul não foi um menino
da Pituba, nem do Itaigara. Raul e Plínio conheceram o mundo na Boa Viagem, no
Monte Serrat”, conta Edvard Passos, criador do musical “Aventuras do Maluco
Beleza”, que narra as aventuras dos irmãos Seixas na infância.
Para
ser bem exato, Raul morava na Rua Rio Itapicuru, número 17, onde atualmente
funciona uma loja maçônica. Os pais de Raul, o engenheiro Raul Varella Seixas e
a dona de casa Maria Eugênia Santos, casaram na Igreja do Bonfim e já moravam
na Cidade Baixa no nascimento do artista baiano. “Ao contrário do que pensam,
Raul não morou na Avenida 7”, disse o jornalista José Pacheco, uma referência
quando o assunto é Raul em Salvador.
Na
verdade, quem morou na Avenida 7 foi sua avó e, de fato, Raul nasceu e ficou no
período puerpério da mãe no local. Na infância também frequentava a casa, onde
também funcionava uma oficina de geladeira do seu tio, Lulu Geladeira, também
famoso piloto de corrida automobilística que acontecia na Avenida Centenário.
Em uma geladeira dessa, Raul se escondeu e Plininho o trancou lá, mas esqueceu
o irmão dentro. Por pouco não tínhamos
um Maluco Beleza pra contar.
Depois
de Monte Serrat, a família foi morar no Canela, enquanto as obras do
apartamento que compraram na Graça, no Edifício Nossa Senhora das Graças, não
foram concluídas. No prédio, até hoje tem uma placa indicando que Raul morou
lá, entre 1961 e 67. Nas férias escolares, era quase um ritual: todos iam para
casa de veraneio, em Dias D’Ávila.
Raulzito
estudou no Colégio São Bento e no Marista. Não se sabe ao certo em que lugar
foi, mas ele repetiu algumas vezes de ano. “Eu era um fracasso na escola [...]
Repeti cinco vezes a segunda série do ginásio [...], eu ficava o dia todo
ouvindo os discos novos de rock”, relatou o próprio Raul, no livro de Sylvio
Passos, ‘Raul Seixas por ele mesmo’.
Na
verdade, ele ‘só’ perdeu três vezes, mas colecionou histórias curiosas, como
quando convenceu seu irmão Plínio a roubar boletins em branco no São Bento,
onde eles preenchiam as notas e mostravam aos pais. “Passamos de ano em casa e
perdemos o ano lá na escola de verdade! Mas tivemos um Natal maravilhoso…”,
lembra Plínio, irmão de Raul. Os pais só descobriram a tramoia quando foram
matricular os meninos no ano seguinte.
Apesar
de não gostar da forma engessada da escola, Raulzito devorava os livros da
biblioteca do pai, que tinha de filosofia a contos clássicos, como Don Quixote.
De sua mãe, consumia música popular, como Luiz Gonzaga, antes mesmo de ter o
primeiro contato com o rock norte-americano. Tanto que o próprio Raul dizia que
não via diferença entre Elvis e Gonzagão. “Tinham a mesma malícia para cantar”,
disse Raul, em entrevista a Pedro Bial, em 1983.
Os
primeiros amigos de infância deram o primeiro passo para Raul ser o pai do rock
brasileiro. Seus primeiros amiguinhos eram filhos de americanos que trabalhavam
no consulado próximo a sua casa, já no Canela. Foi aí que ele conheceu Elvis,
sua principal referência. Ainda criança, já falava inglês fluentemente e chegou
a fundar o primeiro fã clube do cantor no país. Chegou a descer o farrapo em um
amigo na escola, que criticou Presley na sua frente. Essa referência ele levou
até o fim. No seu leito de morte, foi encontrada uma imagem de Elvis.
• O fim
Em
1976, Raul Seixas lançou um álbum que eternizou a música ‘Eu Nasci há 10 mil
anos atrás’, uma canção que pode ser confundida com a imortalidade. Contudo,
naquele mesmo disco, inclusive na primeira faixa, ele cantava ‘Canto para minha
morte’: “A morte, surda, caminha ao meu lado e eu não sei em que esquina ela
vai me beijar…”, dizia a letra. Falar do fim de Raulzito não pode ser tão raso
quanto resumir sua vida ao álcool e às drogas. Sim, foi um fator que contribuiu
para ele morrer aos 44 anos. Contudo, para a vida e obra de um gênio, até a
morte precisa de um significado mais complexo.
“Foi
bom para Raul morrer cedo. Ele não gostava de ser velho, não. Imitou Elvis
Presley em tudo, até na morte", repetia dona Eugênia, em suas diversas
entrevistas após a morte de seu filho, Raul Seixas. Muito mais digno, diga-se
de passagem. Elvis foi a referência de Raulzito no seu estilo rebelde de astro
do rock. Raul morreu aos 44 anos, Elvis, aos 42.
Do seu
nascimento até sua partida para o Rio de Janeiro, a Bahia se tornou refúgio e
férias para Raulzito. Segundo o cantor e compositor Sylvio Passos, Seixas
sempre falava da sua cidade natal. Já fazendo sucesso, chegou a tirar férias em
Dias D’Ávila, acampando na cidade com amigos e familiares.
“Raul
saiu da Bahia porque não tinha oportunidade para um músico como ele. Mas ele
sempre amou suas raízes, sempre citou a saudade que tinha de sua infância, dos
amigos e da família. Sempre que podia, ia para Salvador ou Dias D’Ávila”,
lembra Passos, amigo de Raulzito até sua morte. O cantor baiano inclusive deu
todo seu acervo para Sylvio, fundador do primeiro Fã clube de Raul.
Sempre
que visitava Salvador, Sylvio ficava na casa onde Raul morou na Graça. “Dona
Eugênia era maravilhosa. Sempre que vinha, ela fazia questão de me colocar para
dormir no quarto que era de Raul”, lembra Passos. É o mesmo quarto que, quando
criança, Raul esboçou uma frase que virou música anos mais tarde: “Eu prefiro
ser essa metamorfose ambulante”.
A morte
de Raul, em agosto de 1989, só fez mostrar o quanto ele era querido, mesmo não
sendo demonstrado isso nos últimos anos de sua vida. No primeiro momento, muita
gente queria que ele fosse enterrado em São Paulo. Ele, inclusive, chegou a ser
velado na capital paulista, com muita comoção, confusão e música cantada pelos
fãs, que fizeram protesto e só liberaram o caixão depois que ele fosse
conduzido num carro de bombeiros, algo que não estava na programação. Foi neste
clima que Raul foi levado para Salvador, a primeira e última morada do ídolo.
O
enterro de Raul Seixas, no Jardim da Saudade, foi tão intenso quanto a própria
vida do Maluco Beleza. Um palco de uma comoção coletiva, como lembrou Marcelo
Nova em seu livro ‘Marcelo Nova – O Galope do Tempo’. Ele lembra que estava na
capela, quando os fãs invadiram o local e pegaram o caixão. “Eles queriam levar
Raul para passear, fumar maconha… Eles gritavam “Raul não morreu, ele está
vivo! Vamos levá-lo pra tomar uma”, lembra.
Foi
justamente neste enterro que surgiu o eterno “Toca Raul”, que incomodou Lobão.
“Estava no enterro, todos chorando, quando um cara passou gritando “Toca Raul,
Toca Raul!. A frase acabou eternizada”, lembra Sylvio Passos. Até hoje a morada
atual de Raulzito é visitada por fãs.
• E o meio
Ainda
pré-adolescente, para não dizer uma criança precoce, Raul já tinha uma banda
chamada Relâmpagos do Rock. E foi com esta banda de moleques que ele negociou
sua primeira exibição, com uma freira baixinha que administrava o Cine Roma,
Irmã Dulce. Na fase intermediária de Raul em Salvador, é difícil até enumerar
os locais importantes na vida e carreira do ídolo. Contudo, foi no local onde
hoje é o santuário da santa baiana, o templo do rock baiano na época, que
Raulzito pegou gosto em cantar.
“Ninguém
sabia o que era rock. Eu tocava e me atirava no chão, imitando o Little
Richard, como via nos filmes americanos. E sempre notava que as primeiras filas
ficavam vazias. É que as mães pensavam que eu estava tendo um ataque de
epilepsia”, contou Raul, em sua entrevista para a revista Bizz, em 1987.
Raul
praticamente apresentou o rock aos baianos. Ele, pela sua amizade com
norte-americanos que moravam na capital, ouvia os sucessos do estilo musical
antes de qualquer soteropolitano. Este privilégio também moldou seu estilo de
se vestir, com gola alta, chiclete na boca e uma rebeldia no melhor estilo
James Dean e Elvis Presley.
Inclusive
o cinema também foi crucial para determinar o caminho roqueiro do Maluco
Beleza. Foi no recém inaugurado Cine Guarani, outro lugar crucial na vida dele,
que Raul assistiu, pela primeira vez, o filme rebelde ‘No Balanço das Horas’.
“Eu me lembro, foi uma loucura para mim. A gente quebrou o cinema todo”,
relatou Raul. Curiosamente, quem criou o Guarani foi um cara chamado Manoel
Barradas, ex-presidente do Vitória que dá nome ao estádio rubro-negro.
Naquela
altura, Raul já fazia sucesso na capital com a banda Raulzito e seus Panteras,
mas também travavam verdadeiras batalhas com outro estilo musical, a bossa
nova, encabeçada por Caetano Veloso, Gil e cia. Na época, eles eram
praticamente inimigos vedados, como uma guerra fria da música baiana. De um
lado, o Teatro Vila Velha intelectualizada com a ideia de nacionalismo que
escutava a turma que viria a fundar a Tropicália, contra o Cine Roma (de
Dulce), com o rock tido na época como alienado e consumido pela camada mais
pobre e operária de Salvador.
Com uma
linguagem que não cabe nos dias de hoje, Raul sempre lembrou em suas
entrevistas que, para curtir rock na época, só era possível em locais em que
empregadas domésticas, operários e garis frequentavam e já curtiam o rock de
Raulzito e seus Panteras, no Cine Roma, enquanto a massa intelectual estava
ouvindo Caetano. “A empregada lá de casa era minha fã. Chegou uma vez para a
minha mãe e disse que tinha dançado comigo. Minha mãe quase morreu… Caetano era
meu inimigo. Depois, tudo passou, acabou a besteira com a Tropicália”, lembra
Raul, que já fazia sucesso, cantava na Rádio Sociedade e abria shows de pessoas
notórias da época, como Roberto Carlos e Jerry Adriani.
Neste
período, Raul se apaixonou pela norte-americana Edith Wisner, que morava em
Salvador. O pai, protestante, não permitiu que a filha namorasse um músico
rebelde e sem futuro. O que Raul fez? Passou em Direito, na Ufba. Cursou até o
tempo do pai aceitar e ele se casar com Edith.
Caiu
fora da universidade e seguiu seu rumo, a convite de Jerry Adriani, para o Rio
de Janeiro de forma definitiva, deixando sua terra natal apenas na lembrança,
mas referência eterna. "Essa identidade territorial é definidora da
genética criativa de Raul", conclui Edvard Passos. Da Cidade Baixa ao Cine
Roma, de Irmã Dulce ao rock, Raul saiu de Salvador, mas Salvador nunca saiu
dele. Toca Raul!
Fonte:
Por Moyses Suzart, no Correio

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