Como
a Embraer virou referência na aviação — e qual será o impacto de tarifas de
Trump
Desde o
anúncio do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de que produtos do
Brasil exportados para o mercado americano serão submetidos a taxação adicional
de 50% a partir de 1º de agosto, um dos focos tem sido o possível impacto da
medida na Embraer.
A
fabricante de aviões é a principal exportadora de bens de alto valor agregado
do Brasil e tem nos Estados Unidos seu mercado mais importante.
Na
terça-feira (15/07), em entrevista coletiva para comentar o possível impacto
das tarifas, o CEO da Embraer, Francisco Gomes Neto, lembrou que a empresa está
presente nos EUA há mais de 45 anos e sustenta quase 3 mil empregos no país.
"As
exportações para clientes nos Estados Unidos representam 45% nos jatos
comerciais e 70% nos jatos executivos", ressaltou Gomes Neto.
Gomes
Neto também afirmou, segundo o jornal britânico de negócios Financial Times
publicou no domingo (20/7), que as tarifas devem adicionar US$ 9 milhões (cerca
de R$ 50 milhões) ao preço de cada aeronave para seus clientes.
A
Embraer tem forte presença no mercado de aviação regional dos EUA, onde muitas
rotas domésticas curtas são servidas por aeronaves de menor porte.
De
acordo com a empresa brasileira, cerca de um terço dos voos regionais em
grandes aeroportos daquele país são operados com aviões da Embraer.
Em meio
às incertezas que cercam o anúncio de Trump, ainda é cedo para entender em
detalhes como a empresa será afetada.
Mas a
preocupação gerada nos últimos dias chama a atenção para a trajetória da
Embraer e como ela se tornou referência na indústria aeroespacial.
"Há
todo um contexto por trás, envolvendo o que a Embraer pode fornecer para o
mercado americano que outras empresas não podem. A Embraer hoje atua quase
sozinha nesse mercado nos EUA. Por isso ficou tão dominante", diz à BBC
News Brasil o economista Gustavo Cruz, estrategista-chefe da RB Investimentos.
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Nascimento e primeiros modelos
A
Embraer é hoje a terceira maior fabricante de jatos comerciais do mundo, atrás
da Boeing e da Airbus, e líder mundial no segmento de aeronaves até 150
assentos.
Com
sede em São José dos Campos (SP), fabrica aviões militares, comerciais,
executivos e agrícolas. De acordo com a empresa, em toda a sua história já
produziu e entregou mais de 9 mil aeronaves para mais de 100 países.
A
empresa foi fundada em 1969, com o apoio do governo brasileiro, após décadas de
esforços privados e governamentais para desenvolver uma indústria aeronáutica
competitiva no Brasil.
Além de
criar um setor industrial de alta tecnologia, havia o objetivo de facilitar a
conexão de diferentes partes do país.
As
origens da então chamada Empresa Brasileira de Aeronáutica estão ligadas ao
Centro Técnico Aeroespacial (CTA) e ao Instituto Tecnológico de Aeronáutica
(ITA).
Foram
técnicos formados pelo instituto que, em 1965, começaram a trabalhar em um
projeto liderado pelo engenheiro aeronáutico e então major da Força Aérea
Brasileira (FAB) Ozires Silva.
O
projeto envolvia um avião bimotor turboélice com capacidade para cerca de 20
passageiros. Um protótipo da aeronave, batizada de Bandeirante, fez seu
primeiro voo em 1968.
O
Bandeirante tinha entre suas vantagens a capacidade de operar em pistas curtas
e não pavimentadas, chegando a aeroportos menores, que não tinham estrutura
para receber jatos de grande porte. Assim, poderia conectar regiões mais
isoladas, impulsionando a aviação regional e a integração do país.
Foi
nesse contexto que, em 19 de agosto de 1969, nasceu a Embraer, criada para a
produção em série do Bandeirante — inicialmente desenvolvido pelo CTA — e tendo
Ozires Silva como presidente.
A
partir de 1970 e ao longo daquela década, outras aeronaves desenvolvidas pela
empresa ganharam destaque, entre elas o monomotor EMB-200 Ipanema, para
pulverização agrícola.
Também
são desse período o EMB-326 Xavante, primeiro avião a jato produzido no Brasil,
fabricado sob licença da companhia italiana Aermacchi e usado no treinamento de
pilotos militares; e o EMB-121 Xingu, primeiro turboélice pressurizado
fabricado pela empresa para uso executivo.
A
década de 1980 foi marcada por saltos tecnológicos e uma crescente presença
internacional. O Bandeirante passou a ser vendido para vários países e entrou
no mercado norte-americano.
Entre
outros modelos de destaque lançados nessa época estão o EMB 120 Brasília, com
capacidade para 30 passageiros; o EMB 312 Tucano, para a área de defesa e
treinamento militar; e o AMX, caça subsônico produzido em parceria
ítalo-brasileira.
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Altos e baixos
Ao
longo de sua trajetória, a Embraer enfrentou altos e baixos. A empresa quase
chegou à falência em meio à crise financeira do final da década de 1980.
"Um
período mais intenso de turbulência financeira marcou o início da década de
1990 e levou à privatização da Embraer em dezembro de 1994", lembrou a
empresa no ano passado, ao comemorar seus 55 anos.
A
Embraer foi privatizada no fim do governo do presidente Itamar Franco, depois
de um longo processo, por R$ 154,1 milhões (em valores da época).
O
acordo de privatização garantiu ao governo brasileiro a chamada golden share,
ação preferencial que dá direito a veto a decisões estratégicas, como a
transferência de controle acionário — e que permanece em vigor.
Entre
os projetos que impulsionaram a recuperação após a reestruturação está o do
ERJ-145, jato comercial para até 50 passageiros, além de outros modelos da
mesma família.
Também
teve papel importante o programa de E-jets de aviões comerciais, focado no
segmento de 70 a 120 assentos.
No
início dos anos 2000, a Embraer estava entre os maiores exportadores do Brasil.
A
empresa diz que a expansão global "acompanhou uma estratégia de
diversificação" e destaca a criação da divisão de aviação executiva — com
o lançamento dos jatos da família Legacy 600/650, Phenom 100, Phenom 300,
Lineage 1000, e Legacy 450/500, além do EMB-314 Super Tucano na área de defesa.
O
processo de internacionalização ganhou força a partir de 2010, incluindo
atividades industriais nos EUA, em Portugal e no México. Também nessa década,
foram lançados produtos como os E-Jets de segunda geração, os jatos executivos
Praetor 500 e Praetor 600 e o C-390.
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Boeing e pandemia
Em
2018, foi anunciada a aprovação dos termos de uma parceria entre a Embraer e a
gigante americana Boeing. Pelo acordo, seria criada uma nova empresa de aviação
comercial, com participação de 80% da Boeing e 20% da Embraer.
A
americana pagaria US$ 4,2 bilhões (cerca de R$ 16,4 bilhões na época) pela
compra. Com a parceria, a Boeing ganharia vantagens no segmento de aeronaves de
médio e pequeno porte, para voos regionais, no qual a Embraer é líder.
No
entanto, em abril de 2020, a Boeing anunciou que rescindiu o acordo "após
a Embraer não ter atendido as condições necessárias".
A
empresa brasileira considerou a rescisão indevida e disse que a americana havia
fabricado "falsas alegações como pretexto para tentar evitar seus
compromissos".
No ano
passado, a Embraer anunciou que iria receber US$ 150 milhões da Boeing em
acordo para encerrar processo de arbitragem.
O
fracasso da parceria com a Boeing ocorreu em meio à pandemia de covid-19 e ao
subsequente encolhimento no mercado de aviões civis, com restrições e
proibições de viagens.
Na
entrevista coletiva de 15 de julho, o CEO da Embraer lembrou que, durante a
pandemia, a empresa teve queda de receita um pouco superior a 30% e precisou
reduzir cerca de 20% do quadro de funcionários.
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Os possíveis impactos das tarifas
Segundo
Gomes Neto, o impacto das tarifas poderá ser comparável ao da pandemia.
O CEO
disse que uma taxa de 50% deverá gerar custo adicional de R$ 50 milhões por
avião e um impacto de quase R$ 2 bilhões em tarifas apenas neste ano, e de R$
20 bilhões até 2030.
Entre
os possíveis problemas listados por Gomes Neto estão cancelamento de pedidos,
postergação de entregas, redução de investimentos, queda de receita e possível
ajuste no quadro de funcionários, entre outros.
Ele
disse, porém, confiar que o governo brasileiro vai buscar uma solução e que
negociações possam reverter a alíquota.
Na
linha de jatos executivos da Embraer, alguns modelos têm montagem final na
Flórida, o que poderia diminuir o impacto. No entanto, incluem componentes
fabricados no Brasil.
Um
ponto relevante em relação ao mercado americano é a chamada scope clause,
cláusula de contratos entre companhias aéreas e sindicatos de pilotos que
determina limites no peso máximo e número de assentos das aeronaves em alguns
tipos de voos regionais.
Jatos
da linha E1 Embraer se enquadram nos critérios e não têm substituto direto,
favorecendo a liderança da empresa no segmento.
Gustavo
Cruz, da RB Investimentos, observa que, diferentemente de commodities,
aeronaves não são facilmente substituíveis. Por isso, ele afirma que as tarifas
também devem prejudicar empresas americanas.
"Não
existe a possibilidade de você achar alguém que tenha disponibilidade de
entregar um avião com as características específicas necessárias para atuar na
aviação regional americana daqui para o final do ano", ressalta.
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Poucas fornecedoras
Cruz
afirma que companhias aéreas americanas com planos de expansão nos próximos
meses e anos estão contando com a entrega das aeronaves da Embraer.
"Seria
algo bem inesperado elas terem que arcar, pelo menos com uma parte desse custo
a mais, nos próximos anos", salienta.
"Temos
a Boeing e a Airbus já com praticamente toda a esteira de pedidos ocupada até
2030. Não é que elas podem chegar a absorver esses aviões que seriam entregues
pela Embraer", diz o analista.
"Diante
disso, imagino que as próprias companhias aéreas americanas vão pressionar o
governo para que não inclua os aviões da Embraer dentro dessa tarifa de
50%."
Cruz
destaca que a fabricante brasileira vende para o mundo inteiro.
"A
gente vê a Embraer vendendo para praticamente todos os continentes, para muitos
países, vários acordos sendo anunciados", afirma.
Neste
mês, foi anunciado que a Scandinavian Airlines (SAS), sediada na Suécia, firmou
acordo para comprar 45 jatos E195-E2, com direitos de compra para 10 aeronaves
adicionais.
Segundo
a Embraer, "excluindo os direitos de compra, o valor do pedido é de
aproximadamente US$ 4 bilhões (cerca de R$ 22 bilhões)", e as primeiras
entregas estão previstas para o fim de 2027.
"Como
a gente tem um mercado mundial de fabricação de aviões muito pequeno, são
poucas as empresas que fornecem. Ela [Embraer] acaba se beneficiando de um
excesso de pedidos da Boeing e da Airbus", diz Cruz.
"Você
tem milhares de companhias aéreas no mundo e praticamente três fornecedoras. O
poder está muito mais na mão da Embraer — e da Boeing e Airbus — do que o
contrário", conclui o economista.
Fonte:
BBC News Brasil

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