As
origens da língua portuguesa
Segundo
o linguista Marcos Bagno, ao se tratar das origens da língua portuguesa, “[…]
seria mais correto falar de uma ilusofonia e, por tabela, de uma ancestralidade
ilusa e ilusitana”. Esse perspicaz trocadilho (que o autor também registrou em
outros textos) está no prefácio à edição brasileira de Assim nasceu uma língua
(2024), obra de Fernando Venâncio, linguista português que nos deixou no dia 30
de maio. Ainda de acordo com Marcos Bagno, o livro poderia ter como subtítulo
“Sobre as origens galegas do português”.
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Mas o português não vem do latim?
Sim e
não, caro leitor, nobre leitora. Os estudos mais alentados sobre a história
deste idioma em que vos escrevemos apontam para uma origem um pouco mais
complexa do que nos foi ensinada em tempos de escola. Embora o latim vulgar
seja a base comum do português e do galego, foi por meio do galego medieval –
variedade românica que se expandiu durante a Reconquista – que as principais
estruturas linguísticas do português se consolidaram no território que viria a
ser Portugal.
Esse é
o ponto central de Assim nasceu uma língua, em que Fernando Venâncio recorre a
estudos linguísticos e históricos para lançar mais luz a essa questão, buscando
atingir um público amplo, não apenas os iniciados.
Assim,
no prefácio, quando Marcos Bagno fala em “ilusofonia”, há duas camadas de
interpretação, que sintetizam bem a visão desenvolvida por Venâncio. Em uma
primeira camada, interpretamos esse “i-” como um morfema de negação, tirando os
tais “lusos” ou “lusitanos” da árvore genealógica desta língua.
Em
outra, que se soma à anterior, cria-se uma espécie de palavra-valise, soma de
“ilusão” e “lusofonia”. Nesse caso, além de negar a origem exclusivamente
lusitana da língua, a expressão sugere que essa ideia de uma “lusofonia” coesa
e ancestral seria, na verdade, uma construção ilusória, um mito linguístico que
precisa ser revisto.
Sim, em
boa parte do que viria a ser o Reino de Portugal, existiu a Lusitânia; porém,
com o domínio mouro sobre a Península Ibérica (iniciado no século VIII), não se
manteve a prevalência de uma língua lusitana naquele território, onde os
descendentes dos lusos adotavam variedades moçárabes (grosso modo, falares de
origem latina, contudo arabizadas).
Para
tratar do nascimento do português, Fernando Venâncio destaca que a substituição
desses falares moçárabes por um romance (isto é, um idioma surgido daquele que
se falava em Roma, o latim) começa a se dar na chamada “Reconquista”, quando
católicos do Norte da Península rumaram ao Sul, trazendo sua língua. Essa
língua era o galego.
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O galego rumo ao Sul
A tese
de Fernando Venâncio, ao destacar as origens galegas do português, desloca um
antigo mito fundador segundo o qual nossa língua teria nascido diretamente no
território hoje identificado como Portugal, numa espécie de continuidade
homogênea do latim.
O que
Assim nasceu uma língua propõe, com farta documentação e elegância
argumentativa, é uma genealogia mais complexa, em que o português surge em boa
parte como desdobramento do galego, língua de prestígio e difusão no noroeste
peninsular a partir da Idade Média.
A
proposta não nega a base latina do português – como também é, aliás, a do galego
–, mas contesta a narrativa que localiza o nascimento da língua exclusivamente
na antiga Lusitânia ou em território lusitano. Segundo Venâncio, foram as
formas linguísticas trazidas do Norte pelos cristãos durante a chamada
Reconquista que se fixaram e se expandiram ao sul da Península Ibérica,
substituindo os falares moçárabes então predominantes.
Fernando
Venâncio propõe que foi o galego que se espalhou para o Sul da futura região
portuguesa durante a Reconquista cristã (e não um suposto “português
primitivo”), substituindo os falares moçárabes, que predominavam desde a
ocupação muçulmana.
Entre
os argumentos linguísticos reunidos por Fernando Venâncio, destaca-se um que
perpassa boa parte do livro, a queda dos fonemas “l” e “n” em posição
intervocálica – presentes nas formas latinas, mas eliminados nas variedades do
noroeste peninsular, possivelmente sob influência de um substrato linguístico
local, segundo a hipótese mais aceita.
Inicialmente,
o galego foi a única língua da Península Ibérica na qual esse processo ocorrera
e, no português, a ausência dessas consoantes é documentada como uma herança
galega.
A
comparação com o espanhol, língua vizinha ao território português, traz
exemplos interessantes: o fonema “l” do latino “colore” se manteve em “color”,
mas não no nosso termo “cor”. O mesmo processo vemos em “mala persona”, que, em
português, dá lugar a “má pessoa” (sem “l” ou “n” entre vogais).
Na
comparação com o espanhol, Fernando Venâncio é pródigo em exemplos: “cenar” e
“cear”, “corona” e “coroa”, “solo” e “só”, “dolor” e “dor”, entre tantos
outros. Na contramão, mas não em contradição, formas portuguesas como
“dolorido” ou “frenar”, com seus “l” e “n” intervocálicos, começam a ser mais
produtivas, segundo Venâncio, por volta de 1400, por influência da língua
espanhola – referência então de elevada cultura e modernidade.
Mais do
que uma provocação linguística, a obra convida o leitor a rever certas imagens
cristalizadas sobre identidade linguística e herança cultural. Ao enfatizar a
função ativa da Galícia medieval nesse processo, Fernando Venâncio nos mostra
que o português nasceu de movimentos históricos, deslocamentos e encontros – e
não de um núcleo isolado e rigidamente definido.
Em
tempos de revalorização das origens e de reconstrução de pertencimentos, essa é
uma lembrança oportuna. Afinal, se há algo que a história das línguas nos
ensina, é que nenhuma nasce pura, nenhuma nasce sozinha – e quase sempre nasce
das margens. Assumir essa origem galega do português não significa reduzir sua
história, mas ampliá-la. Significa aceitar que viemos também – e talvez
sobretudo – do lado de lá do Minho.
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Língua em travessia – com sotaque galego e alma de encruzilhada
Em
tempos de fronteiras tão rígidas e identidades tão disputadas, lembrar que o
português nasceu no vaivém entre margens – geográficas, históricas e
linguísticas – é, no mínimo, um belo exercício de humildade intelectual.
E
talvez também um convite: o de olharmos para nossa língua, não como produto
acabado de uma história única, mas como encruzilhada de falas, influências e
continuidades.
É aí
que reside, afinal, a força do argumento de Fernando Venâncio. Ao devolver ao
galego seu papel de protagonista no enredo da formação do português, ele não
nega o latim, mas o faz ecoar por meio de outra linhagem, menos romanizada do
que se costuma admitir, e bem mais matizada. Em lugar da linha reta, a curva;
no lugar do mito heroico de fundação, a memória dos deslocamentos.
Ao
homenagear Fernando Venâncio e seu trabalho preciso e corajoso, reafirmamos
esse convite – e celebramos, com gosto de Galícia e voz de Brasil, a travessia
de uma língua que, afinal, renasce a cada dia.
Fonte:
Por Henrique Santos Braga e Marcelo Módolo, no Jornal da USP

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