"A
reciprocidade deverá vir depois", afirma Vital do Rêgo
As
ações do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, estão abalando as
estruturas globais, de forma geral, e já provocando efeitos negativos nas
indústrias brasileiras e também norte-americanas, destaca o presidente do
Tribunal de Contas da União (TCU), Vital do Rêgo. Ele considera o movimento de
Trump intempestivo e anormal, mas vê com bons olhos a reação do governo
brasileiro e recomenda a continuidade das negociações antes de uma retaliação.
Na avaliação dele, o governo brasileiro está conduzindo bem a questão e a
escolha do vice-presidente Geraldo Alckmin no comando das negociações foi
acertada. "Ele é uma pessoa muito, muito própria para esse fim",
afirma.
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A seguir, os principais trechos da entrevista:
• O senhor pode contar sobre a sua agenda
da viagem para os Estados Unidos?
O
Brasil faz parte de uma junta de auditores que têm a responsabilidade de
fiscalizar e auditar todos os recursos que são administrados pelas Nações
Unidas. São US$ 77 bilhões, que é o orçamento anual distribuído em diversos
órgãos multilaterais. Esses órgãos multilaterais são auditados pelo Brasil
representando a América, pela França representando a Europa, e pela China
representando a Ásia. Temos o nosso portfólio, que é uma série de órgãos que
nós auditamos, como a ONU Mulheres, a Unicef, a Universidade da ONU, o Fundo de
População das Nações Unidas, o escritório das Nações Unidas em Viena, o
Escritório das Nações Unidas contra a Droga e Crime Organizado, a Operação de
Paz no Kosovo, no Chipre e no Líbano. A China tem outro portfólio e a França,
outro. Agora, estamos juntando os três países para apresentar uma auditoria
global, que deverá ser apresentada na próxima semana, na Assembleia-Geral, com
o secretário-geral da ONU, António Guterres, e todos os membros do Conselho.
• E como é feita a auditoria?
Hoje,
empregamos, só no nosso portfólio, três pessoas que moram em Nova York, fixos
lá, três auditores, e mais 100 auditores que compõem a Secex ONU, uma
secretaria especializada que trabalha nessa auditoria. Aí depende de cada país.
A França tem uns 80, por exemplo. Depende também da população e do formato. A
China deve ter mais de 100. E também depende do portfólio. O nosso é o maior
portfólio. Nós relatamos a ONU Mulher, por exemplo.
• E teve algum problema?
Não. Os
problemas são problemas de auditoria comum. As auditorias internacionais são
uma experiência muito boa para o Brasil. Lá nós estamos vendo um nível de
auditoria em que há troca de experiências até culturais. E, diante da situação
de redução, por parte dos Estados Unidos, do fluxo de compromissos que o
governo norte-americano tem com a ONU — hoje os maiores doadores da ONU são
China e Estados Unidos — há uma queda nesse orçamento de em torno de 20%.
• Dos US$ 77 bilhões do orçamento total?
Isso,
em torno de 20% a menos. Isso faz com que a ONU comece a pensar em racionalizar
gastos. Mas a notícia boa é que a ONU está abrindo a possibilidade de alguns
países receberem alguns desses órgãos como sede. E eu já levei esse assunto ao
presidente Lula, e ao embaixador Mauro Vieira (MRE). E nós estamos nos
habilitando para nos colocar como sede da ONU Mulher, que é um dos maiores
órgãos da ONU. Eu levei essa sugestão ao presidente Lula, que aceitou, e,
agora, nós estamos nos habilitando em infraestrutura para entregar, na sede da
ONU, a possibilidade do Brasil ser sede da ONU Mulher.
• A sede seria aqui em Brasília?
Já
agora, aqui em Brasília. Quem está fazendo a prospecção é a Secretaria do
Patrimônio da União (SPU) — ligada ao Ministério da Gestão e da Inovação em
Serviços Públicos (MGI). Somos a maior imobiliária do mundo, então há
edifícios. Mas tem de ser um edifício grande, porque é para um dos maiores
órgãos multilaterais da ONU. Nós precisamos de quatro andares, pelo menos.
• Sediar essa estrutura é uma coisa
importante…
Sim.
Mas isso ainda está embrionário. Primeiro, perguntamos ao governo se ele quer.
Esse é um assunto do Itamaraty. Fomos ao chanceler Mauro Vieira. Fomos ao MGI
pedir um prédio que esteja pronto, que esteja em ordem. E aí, juntamos isso,
vamos fazer um pacote de proposta. Nós temos uma proposta que vai ser entregue
lá.
• Outros países também vão se candidatar,
ou o Brasil vai ser o único?
Outros
países também vão se habilitar. A ONU vai descentralizar as operações por conta
desse fluxo de capital que não tem mais. E isso valorizará muito mais a China,
que tem a mesma contribuição americana, por coincidência, na ONU. E, agora, a
China vai ocupar mais espaço, como no mundo inteiro. Em outras coisas também.
• Isso pode abrir espaço para aquela
agenda dos governos anteriores do Lula, que eles ainda agora voltaram na
reunião do Brics, de ampliar a presença da reforma do Conselho de Segurança?
Toda
ação tem uma reação. A ação das relações norte-americanas com o mundo, da forma
como está sendo feita, sem nenhum tipo de organização, nenhum tipo de base
legal, base moral, base ética… As relações com o Brasil e os Estados Unidos
remontam a séculos, e, de uma hora para outra, eles querem taxar, abrir uma
guerra comercial com o Brasil, a despeito de que valores? A balança comercial é
favorável. Já temos um acúmulo de Us$ 420 bilhões, se somarmos todos esses
anos, a menos na nossa balança comercial.
• E essa interferência de Trump no Supremo
Tribunal Federal (STF)?
A
respeito de interferir no Supremo Tribunal Federal para uma anistia (do
ex-presidente Jair Bolsonaro), isso é um absurdo. Eu me reuni com o ministro
Carlos Fávaro (da Agricultura) para apresentar dois problemas sobre questões
sanitárias e ele contou que, por exemplo, tem indústrias que vão fechar as
portas. A indústria do pescado, por exemplo, vai cair 80%, e eles são os
primeiros que anunciaram problemas. Mas o povo norte-americano também vai
sentir o impacto, internamente (do tarifaço). Haverá uma inflação em bens que
eles consomem. Por exemplo, 70% do suco de laranja consumido nos Estados Unidos
é feito pelo Brasil. Quanto é que vai ficar esse suco para o próprio americano?
O maior consumidor de hambúrguer do mundo é o americano. A carne do hambúrguer
é brasileira. Fora as commodities brasileiras, que, historicamente, são muito
fortes. Os EUA são o segundo maior parceiro comercial do Brasil.
• Em meio a essa guerra do tarifaço, qual
a sua avaliação de como o governo brasileiro está conduzindo essa questão?
Houve muitos tropeços ?
Primeiro,
foi intempestivo, como eu já disse. Foi um momento absolutamente anormal, se é
que se pode dizer que é anormal alguma coisa que o Trump faça. Ele está no modo
dele. Mas acho que foi uma coisa tresloucada, com outros objetivos. Mas o
governo brasileiro está conduzindo bem, não pode dar a eles o direito de
continuar escalando isso.
• Mas a Lei da Reciprocidade seria uma
armadilha?
A
reciprocidade deverá vir depois de exaurirem todos os canais diplomáticos. Acho
que o presidente acertou em colocar o vice-presidente Geraldo Alckmin no
comando dessa operação de negociação, porque é uma pessoa super ponderada e bem
equilibrada. Ele é uma pessoa muito, muito própria para esse fim. Vejo que o
Brasil tem todas as condições de utilizar a Lei da Reciprocidade, mas não deve,
repito, não deve utilizar antes de esgotarem todos os canais diplomáticos de
negociação.
• Por quê?
Porque
tanto nós vamos sentir quanto a inflação americana nos produtos brasileiros vai
aumentar. Logo, eles vão sentir também. Todos vão sentir.
*
Ninguém ganha nessa briga, né?
É. Eu
passei um tempo fazendo estudos em Miami, onde 70% da população é latina.
Estava na época da pré-eleitoral e, onde eu andava, era o povo votando em
Trump. Os imigrantes votaram em Trump, porque ele vendeu a história de que só
ia deportar os ilegais. Hoje, eles estão vivendo desesperadamente, tem
imigrante que não sai de casa com medo da polícia bater a porta dele.
• Agora, ministro, falando um pouquinho de
contas públicas, como é que está o monitoramento do Orçamento?
O
Orçamento do ano passado foi aprovado. As contas públicas, na Constituição, é o
nosso trabalho mais solene, é o nosso trabalho mais importante. Nós fazemos uma
análise, a cada bimestre. De janeiro e fevereiro, aí, em março, o tribunal
julga esse bimestre. No ano, são seis bimestres. Nós acompanhamos a conta
pública, do começo ao fim, até o dia 31 de dezembro de cada ano.
• Mas neste ano, o primeiro relatório
bimestral saiu só em maio…
Exatamente,
houve problemas de informações, mas isso é o que nós fazemos. Aí, o relatório
do segundo bimestre saiu perto do primeiro, porque tem que sair. Eu fui o
relator do Orçamento de 2023, primeiro ano da gestão atual. E levantei um
assunto, respondendo ao que você pergunta das contas de governo, eu acho que o
grande problema das contas de governo é que o Brasil perdeu a mão nas renúncias
fiscais e nos subsídios. Eu vou explicar para vocês o porquê.
• O ministro Fernando Haddad fala em R$
800 bilhões…
Eu
tenho informações mais novas do que ele. Eu levantei essa questão em 2023 e fui
até o presidente (Lula) e disse que, com a soma dessa relação de renúncia
fiscal, a conta não vai fechar. Aí o governo fica fazendo todo tipo de
ginástica, malabarismo, para arrumar R$ 4 bilhões-R$ 10 bilhões. Estou falando
de números que, em 2024, somaram R$ 600 bilhões. E, em 2025, será perto de R$
900 bilhões em renúncias fiscais e benefícios tributários. São renúncias como a
desoneração da folha para 17 setores da economia que eu destaquei no relatório
relativo às contas de 2023. É preciso fazer um corte linear com toda a
sociedade de 10% e haveria uma economia que seria, hoje, de R$ 90 bilhões.
• Seria mais do que a receita prevista com
o aumento do IOF…
Estou
falando de R$ 90 bilhões. É preciso enfrentar essa questão da renúncia fiscal
com coragem e com o Congresso junto, porque, muitas vezes, o projeto de
renúncia sai de um jeito e volta do outro, do Congresso. Essa renúncia acaba
sendo eterna. Tem setores da economia que só vivem com essa renúncia
tributária. E eu fiz um trabalho na minha relatoria sobre a tomada de contas de
2023, e mostrei que a renúncia fiscal, os benefícios tributários, não tem a
mesma reciprocidade econômica ou social. E provei isso com vários, vários
exemplos. E o mais gritante foi o setor automotivo.
• Mas o setor automotivo é o que mais
recebe subsídios?
É um
dos que mais recebe. Tem a Zona Franca de Manaus, o Simples, que é o que mais
recebe subsídios, e outros.
• E as emendas parlamentares?
Estamos
trabalhando com as emendas em parceria com o Supremo. Estamos acompanhando o
relator da matéria, o ministro Flávio Dino, tecnicamente. Essas emendas estão
sendo analisadas pelo Supremo.
• Voltando a falar dos subsídios, em
2016-2017, na época da aprovação do teto de gastos, a conta de subsídios estava
em torno de R$ 400 bilhões e o senhor, agora, fala em R$ R$ 900 bilhões, mais
do que o dobro em menos de 10 anos. Esse é o principal problema que o governo e
o Congresso precisam enfrentar?
Eu
acho. Eu venho dizendo isso desde 2023. Nada é mais urgente do que um esforço
comum do governo, do Congresso, para acabar com esses privilégios. Eu tenho
dito isso há algum tempo. E coloquei isso no relatório do Orçamento de 2023.
• E tem a questão da Previdência, que vai
precisar de uma nova reforma…
Pois é,
a Previdência quebra as fontes do equilíbrio fiscal. Tanto que, se não houver
uma ação coordenada e gestos do Congresso para viabilizar mudanças estruturais
na Previdência, vai chegar um momento em que nós não vamos ter dinheiro para
pagar a Previdência. Hoje, a base etária da pirâmide inverteu. Aqui no TCU,
quando cheguei há 10 anos, eram 5,7 contribuintes para um beneficiário. Hoje é
1,7 para um. Isso, somado à longevidade da população brasileira, somado às
discussões que nunca foram travadas, por exemplo, com relação à proteção social
aos militares. O Brasil tem que decidir se o militar tem uma proteção especial
ou não.
• O militar aposentado custa caro se
comparado ao civil….
Sim.
Ele custa, está prontidão 24 horas, e tem obrigações que o servidor normal não
tem. Mas não tinha que estar na Previdência. E essa é uma decisão política do
Estado brasileiro. O militar, por suas funções especiais, é ou não um servidor
especial? E tem a Constituição Federal, que permitiu a aposentadoria de
milhares de agricultores. Aquilo nunca podia estar na Previdência, porque era
assistência social. Eles foram aposentados sem ter contribuído com um único
real. Agora, vou dizer uma coisa a vocês. O rombo da Previdência Social está em
R$ 461 bilhões, e é menos do que a renúncia fiscal, de R$ 900 bilhões. Por isso
eu digo que esse é o maior problema do Brasil.
• Qual a sua avaliação dessa briga entre o
Executivo e o Congresso?
Eu acho
que, abstraindo os direitos que o Congresso tem, que são consagrados na
Constituição, mas, à primeira vista, existem competências que são exclusivas do
Executivo. Mas, como nós não estamos participando desse processo, eu não sei
também quais são os argumentos de defesa por parte do Congresso, por decreto
legislativo. É preciso lembrar que o IOF é um imposto regulador.
• E sobre supersalários. O senhor
acompanha essa situação?
Eu acho
que a reforma administrativa deve acabar com isso. Uma das coisas que a reforma
administrativa deve atacar são o que se chama super salários ou penduricalhos,
que são "legais", mas que não correspondem com a vontade equitativa
do povo brasileiro. Eu entendo que nós pagamos mal, também, ao servidor
público, de uma forma geral. Nós pagamos mal também. E aí colocamos gatilhos
para flexibilizar essas receitas com situações que espero que a reforma
administrativa acabe.
• E essa reforma sai?
Vai
sair. Eu estive conversando com o relator, o deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), a
respeito da parte que interessa a gente, o Tribunal. Ele está muito animado. Há
um sentimento no Congresso que vai sair. Eu tenho estado muito no Congresso. Eu
tenho sentido isso quando as minhas visitas ao Congresso. Eu estou sempre
visitando as comissões.
• E quanto vocês investem em tecnologia?
São R$
150 milhões ao ano. Nós temos aqui seis robôs, seis robôs supercomputadores,
que decifram qualquer ato administrativo no Brasil, em qualquer cidade
brasileira. Se ela lançar um edital, o nosso sistema capta, e, se ele estiver
errado, ele já sai automaticamente e já é enviado à prefeitura. E, por
coincidência, todos eles são com nomes de mulheres: Alice, Adele, o mais novo é
Mari. Alice, análise de licitação e edital; Adele, análise de dispensa e
inexigibilidade de licitação eletrônica; Sofia, sistema de orientação sobre os
fatos e indícios para o auditor, Mônica, monitoramento integrado de controle de
aquisições; Ágata, aplicação geradora de análise de textos com aprendizado,
Karina, analisador de registros da imprensa nacional. E Marina, mapa de risco
de aquisições. E agora nasceu Maria.
• E já com Inteligência Artificial?
Sim. E
nós somos o único órgão no Brasil que desenvolveu o próprio chat, o Chat TCU. O
código-fonte está sendo disponibilizado já para 123 entidades, desde
municípios, no Brasil, e até 10 nações, como Panamá e Chipre, que compartilham
o código-fonte. Todos os tribunais de contas dos estados receberam esse código.
• Em relação aos comentários dos
superpoderes paraibanos na República. O senhor concorda? Tem presidente em tudo
quanto é lugar…
Espero
que não tenha a mesma fama da República de Alagoas. É uma responsabilidade
muito grande. Os fatos levaram à ocupação de espaços conterrâneos em órgãos
importantes do país, no Tribunal, no Senado, com o Veneziano do Rêgo (MDB-PB),
agora, com o Hugo Motta (Republicanos-PB) na presidência da Câmara. E tem no
Banco do Brasil, no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), na Caixa Econômica
Federal... Vejo como uma oportunidade de a Paraíba mostrar o seu valor, por
meio desses nomes que estão ocupando o espaço privilegiado nesses setores. Eu
encaro como uma oportunidade de ouro para que o paraibano possa se orgulhar do
trabalho que nós estamos podendo fazer.
Fonte:
Correio Braziliense

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