Reforma Agrária, futuro inescapável
A questão agrária no
Brasil parece ter saído das preocupações da sociedade, dos políticos e dos
poderes executivos. Os conflitos continuam entre sem-terra e latifundiários ou
grileiros em várias regiões, em particular no que se convencionou chamar de
nova fronteira agrícola, na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal. Mas a
tradicional violência dos ruralistas se faz sentir em todo o país, em qualquer
lugar em que se manifestem os despossuídos. As incessantes pesquisas e
denúncias da Comissão Pastoral da Terra (CPT) mantêm o registro dos
assassinatos de lideranças (camponeses, indígenas, quilombolas) além de técnicos
ou elementos de apoio aos sem-terra. Também registram as expulsões de
assentados e acampados, a destruição de lares e de cultivos, a destruição de
infraestruturas sociais como escolas e postos de saúde. Apesar dos números não
terem diminuído ao longo do tempo, a repercussão da violência foi ficando
diluída no mundo urbano, onde outras formas e objetos de violência ocupam o
noticiário.
A propaganda do
agronegócio está cada dia mais sofisticada e profissional (“agro é tech, agro é
pop, agro é tudo…”) e a imagem idílica projetada para o público urbano parece
estar colando. Tudo vai bem no mundo idealizado das supercolheitadeiras
operando nos imensos campos de monocultura. Nem a violência social nem a
violência ambiental têm lugar neste mundo maravilhoso de faz de conta.
O preocupante,
entretanto, é outra coisa: o fato de que as forças políticas de esquerda também
parecem ter esquecido da questão agrária. Ou admitido que é uma luta perdida
que é melhor não travar. Isto é esquecer o sentido histórico da luta pela terra
e o papel fundamental que o campesinato terá em um mundo sustentável no futuro,
se é que haverá lugar para o homem neste futuro.
É isto que pretendo
discutir nesse breve artigo. O propósito é situar a questão agrária no tempo
passado e recente, apontando para os problemas encontrados pelas forças
progressistas e populares neste longo processo e, sobretudo, justificar o lugar
da questão agrária no futuro.
·
Um breve toque de
história
A “descoberta” do
Brasil, na virada do século XV para o XVI foi o ponto de partida para o longo
processo de ocupação do imenso território até então habitado por tribos
indígenas. Estudos e especulações variam na avaliação de quantos eram os
indivíduos dos “povos originários”, algo entre 2 e 10 milhões de pessoas
distribuídas em centenas de etnias com vários troncos idiomáticos e dialetos e
culturas.
A relação destes povos
com a natureza, na sua imensa diversidade, era de exploração dos recursos
naturais da flora e da fauna e com uma incipiente agricultura baseada no
desmatamento e queima da vegetação nativa, seguidos de longos pousios. Este
sistema permitia uma recuperação da fertilidade natural dos solos e a
recomposição, pelo menos parcial, da vegetação. Estudos dos ossos deixados por
estes habitantes originários do Brasil mostram que prevalecia um padrão de
saúde invejável pelos colonizadores portugueses e outros europeus.
A operação de
conquista dos espanhóis os levou a dominar os povos mais civilizados e ricos
das Américas, roubando imenso tesouro para a corte de Madri, saqueado dos
Maias, Astecas e Incas. Em seguida esta colonização foi atrás da matéria prima,
explorando minas de prata e de ouro.
Os recém-chegados ao
Brasil não tinham a intenção de ficar. Estavam a caminho das “Índias” e à
procura do comércio de especiarias (pimenta, noz moscada, cravo, canela, entre
outras), muito valorizadas nos mercados europeus. Não havia aqui um tesouro a
saquear, nem minas de metais ou pedras preciosas, só encontrados dois séculos
mais tarde. A posse do novo território, assegurada pelo tratado de Tordesilhas,
era uma ficção ignorada por outras potências navais europeias, como a França e
a Holanda. Foram comerciantes destes países que iniciaram a exploração do
pau-brasil, riqueza que acabou dando nome à terra conquistada. A madeira do
pau-brasil era matéria prima para a produção de tinturas, uma indústria em
expansão e sucesso na Europa. Ocupados nas Índias, os portugueses levaram
algumas décadas para entrar neste mercado.
A exploração do
pau-brasil não carecia de uma implantação colonial na “nova terra”. Os
mercadores negociavam com as tribos do litoral o corte e transporte da madeira
para pontos adequados para ser embarcada, fornecendo machados e facões para
pagar trabalho. O impacto desta primeira investida do proto-capitalismo europeu
no Brasil foi impressionante. Em décadas a Mata Atlântica sofreu mais com esta
exploração do que em séculos de coivaras dos indígenas.
Já em meados do
primeiro século da ocupação os portugueses descobriram outra utilidade para
seus domínios. O plantio de cana de açúcar, reproduzindo no Brasil a
experiência adquirida nas ilhas do Atlântico, representa o primeiro passo na
história para um empreendimento rural de tipo capitalista. Inicialmente ele foi
operado por mão de obra nativa, mas esta só se submeteu a este regime de
trabalho sob extrema violência. Foi a fase dos chamados “negros da terra”,
escravizados nas plantações de cana e nos engenhos de açúcar. A mão de obra
especializada, sobretudo nas operações agroindustriais, era de portugueses
livres, mas tudo mais era resultado do trabalho escravo, inclusive a produção
de alimentos, a criação de animais de transporte e o corte de madeira para
alimentar as fornalhas dos engenhos.
Não demorou muito para
que os “negros da terra” fossem substituídos pelos escravizados africanos, que
já vinham sendo usados nos engenhos da Ilhas do Atlântico. Os indígenas
resistiam resolutamente às operações de captura, fugiam na primeira
oportunidade e morriam aos milhares devido à contaminação com vírus de doenças
que eram desconhecidas nas Américas. Os sobreviventes das epidemias e das
guerras com os brancos se embrenhavam nas matas a oeste, iniciando um movimento
que se repetiu, com outros atores, ao longo de toda a história da ocupação do
território nacional.
O negócio do tráfico
de escravizados tornou-se tão importante quanto o próprio negócio do açúcar,
enquanto a colonização pouco atraiu portugueses, apesar da enorme
disponibilidade de terras. O mecanismo de acesso a estas terras, criado pela
coroa portuguesa, não facilitava o acesso para quem não era fidalgo e com
recursos para investimentos no que interessava: a produção de açúcar. A
produção alimentar, inclusive para os escravizados, era feita nas terras
das plantations de cana e pelos próprios negros em horas de
folga ou em grupos especializados. O alimento foi, desde os primórdios da
ocupação, aquele utilizado pelos indígenas, mais adaptado ao clima e aos solos
do que os produtos de uso na Europa. A mandioca e o milho substituíram o trigo
e o centeio e, junto com feijões e dezenas de legumes e frutas, constituíram a
base alimentar de brancos e negros.
O espaço para uma
economia de subsistência ou de produção de alimentos para o mercado interno era
mínimo e suprido por brancos livres ocupando terras marginais próximas aos
centros habitacionais e, no mais das vezes, também explorando trabalho escravo.
Por séculos esta
matriz econômico-social prevaleceu nas diferentes regiões do Brasil, até que a
crise da economia do açúcar, já no século XVIII, levou à diversificação da
produção agrícola, muito embora sem mudar o foco nas exportações. Seguiram-se
“ciclos econômicos”, do algodão, do tabaco, do cacau, da borracha, do couro e o
mais importante, o do café. No meio destes, houve um “ciclo do ouro”, o único
não agroexportador até o século XX. Em todos eles a mão de obra africana
escravizada foi essencial. E em todo este tempo o número de brancos e de
mulatos ou negros libertos foi inferior ao de negros escravizados, fazendo do
Brasil o maior importador de trabalho forçado do mundo.
O território foi sendo
ocupado paulatinamente, inicialmente com mais intensidade na região Sudeste e,
de modo geral, na zona litorânea. A imensidão da floresta amazônica, a aridez
da Caatinga, os embates militares com os castelhanos limitaram os avanços no
norte, nordeste e sul do Brasil. No Sudeste os rios que corriam na direção
oeste leste favoreciam as expedições, inicialmente voltadas para a preação
(captura) de indígenas. A busca de ouro e esmeraldas motivou outros movimentos
e ocupação do território, sobretudo em Minas Gerais.
A presença de uma
agricultura familiar foi se dando de formas variadas. Talvez a primeira em
significância tenha sido a dos quilombos. O número e tamanho destas unidades
populacionais ainda está sendo desvendado, mas há indicadores de que foram
centenas de milhares de pessoas, grande parte fugidos das plantações de cana ou
das minas de ouro, além dos nascidos já em liberdade, nos casos de maior
durabilidade dos assentamentos. Não há registros claros sobre o modo de
produção nos quilombos, mas as tradições dos mais antigos que sobreviveram
indicam que havia unidades familiares de produção e roças coletivas de
interesse comunitário, em um todo integrado e subordinado aos chefes.
A agricultura em
pequena escala foi se estabelecendo nos moldes já apontados acima, nos
interstícios do sistema de plantation e subordinada a este,
como provedora de alimentos. Junto aos núcleos urbanos, a demanda de alimentos
de escravos e gentes livres criou um mercado livre, embora muitas vezes os
produtores tenham sido mais microempresários capitalistas utilizando trabalho
escravo.
Foram as crises dos
ciclos agrários que permitiram a decomposição de muitas grandes propriedades e
formação de uma agricultura familiar independente, inicialmente de subsistência
e depois integrando-se aos mercados locais. O movimento migratório de europeus,
para além dos portugueses, se acelera ao longo do século XIX, inclusive pelas
seguidas restrições à importação de escravizados que foram tornando o custo
desta mão de obra muito elevado e favoreceram a substituição pelos imigrantes.
No final do século, a aceleração da crise agrária europeia traz milhões para as
Américas, embora a maioria tenha se dirigido para os Estados Unidos.
Fonte: Por
Jean Marc von der Weid, em Outras Palavras
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