Estudantes da USP mortos pela ditadura são
homenageados 60 anos depois do início do regime
“Helenira sempre foi
boa aluna”, diz sua irmã Helenalda. “E participava ativamente da UNE [União
Nacional dos Estudantes]”. Estudante de Letras na Universidade de São Paulo
(USP), Helenira Resende de Souza Nazareth, conhecida como Preta, foi uma líder
estudantil e política nata. Filha de um dos primeiros médicos negros do país,
ela herdou a militância do pai Adalberto Nazareth, membro do PCdoB.
Vice-presidente da
UNE, após coorganizar o 30º Congresso de outubro de 1968 – quando 800
estudantes foram detidos -, ela foi presa e ameaçada de morte pelo delegado
Sérgio Fleury, do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) da última
ditadura militar brasileira. Trancou a matrícula e trocou o sonho de ser
crítica literária pelo de combater o regime. Quatro anos depois, guerrilheira,
morreu em combate no Araguaia, aos 28 anos de idade.
Contemporâneo de
Helenira na Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras, João Antônio Abi-Eçab
compartilhava um sonho similar. Participou do movimento estudantil e do
diretório acadêmico da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) e criou
um cursinho preparatório, o PREUSP, com colegas universitários. Em 1967 foi
preso no DOPS. No ano seguinte, abandonou o curso de filosofia para se dedicar
à luta contra a ditadura. Em maio de 1968 se casou com uma colega de faculdade,
Catarina Helena Ferreira. Em novembro, durante sua lua-de-mel no Rio de
Janeiro, o casal foi morto pelos órgãos ditos de segurança. João, com 25 anos,
e Catarina, com 21, foram os primeiros alunos da USP mortos pela repressão.
Como ato de reparação,
em 2024, no ano em que o Brasil completa 60 anos do golpe civil-militar e a
USP, 90 de fundação, a universidade realizou em 26 de agosto a diplomação
honorífica de graduação dos três jovens e mais 12 estudantes impedidos pela
ditadura de concluir seus cursos na FFCL – entre eles, Frei Tito, morto há 50
anos. No dia 28 de agosto, a Faculdade de Medicina homenageia mais estudantes.
Ao todo, a Diplomação da Resistência, irá homenagear 33 ex-estudantes da
universidade.
Lançado em dezembro de
2023, o projeto teve como primeiros homenageados Alexandre Vannucchi e Ronaldo
Queiroz, alunos do Instituto de Geociência. “Essa cerimônia desencadeou uma
série de ações pela memória, inclusive em outras universidades”, conta Marta
Costta, sobrinha de Helenira Resende e uma das organizadoras da Diplomação da
Resistência. “É um reconhecimento importante de alunos que tombaram na
ditadura. É necessário contar essas histórias para que não se repitam”.
As histórias que
tiveram lugar na USP inscreveram marcantes capítulos do período ditatorial
ocorrido entre 1964 e 1985. O embate entre estudantes da Faculdade de Filosofia
da USP e alunos do Mackenzie apoiados por integrantes do Comando de Caça aos
Comunistas, em 02 de outubro de 1968, entrou para páginas de História como a
Batalha da Rua Maria Antônia, na qual o prédio da faculdade foi destruído e um
estudante secundarista foi morto pelo CCC.
Depois dos sindicatos
e das ligas camponesas, as instituições universitárias foram alvos prioritários
da repressão militar, consideradas pelo governo redutos de “subversivos”. A
intensa militância estudantil na USP despontou como reação natural, uma vez que
a repressão na universidade paulista possuía rubrica federal desde os primeiros
dias do golpe de Estado, em abril de 1964.
Ex-diretor da
Faculdade de Direito, o jurista Luís Antônio da Gama e Silva foi reitor da USP
por duas temporadas entre 1963 e 1969, responsável pelas listas de cassações
que assolaram a universidade. Convocado duas vezes para o Ministério da
Justiça, para onde levou membros do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), foi
autor do AI-5 e de leis e práticas ditatoriais adotadas no período, como a
formulação da Operação Bandeirante (OBAN), órgão de investigação precursor do
DOI-Codi.
Colega na Faculdade de
Direito, Miguel Reale, um ex-integralista que se tornou Secretário da Justiça
do Estado de São Paulo, foi sucessor de Gama e Silva na reitoria e criador de
uma comissão de vigilância dentro da universidade. Em sua gestão, registrou-se
o maior número de desaparecidos e mortos relacionados à USP.
Conforme observa a
historiadora Janice Theodoro, ex-coordenadora da Comissão da Verdade da USP, a
Justiça criou bases legais para o regime autocrático. “Ao contrário da
Argentina e Chile, onde ocorreu extermínio em massa, a ditadura brasileira
utilizou o Direito para perseguir opositores”, avalia Theodoro, ela própria
presa durante a ditadura por conta de seu ativismo estudantil.
Dos 434 mortos e
desaparecidos políticos enumerados pela Comissão Nacional da Verdade, 47 tinham
relação com a USP – ou seja, mais de 10% da lista.
• Reitores e professores promoveram
repressão e perseguições
Além de agentes da
repressão institucionalizada, Luís Antônio da Gama e Silva e Miguel Reale foram
articuladores de primeira hora do golpe civil-militar, como descreve o
cientista político René Dreifuss em sua obra 1964: A Conquista do Estado.
Anticomunistas
viscerais, Gama e Silva e Reale foram líderes no Instituto de Pesquisas e
Estudos Sociais (IPES), a think tank financiada pela CIA, banqueiros e
empresários que conspirou para derrubar o governo João Goulart. Ambos
coordenavam o Grupo de Estudos e Doutrina do instituto político-militar. Reale,
inclusive, organizou uma convenção no estádio do Pacaembu, em São Paulo, em
1963, a fim de definir estratégias para a desestabilização do governo. Após o
golpe, registros do IPES sobre a população brasileira originaram o banco de
dados do Serviço Nacional de Informação (SNI).
Ambos participaram
também da Comissão de Alto Nível, criada pelo ditador Costa e Silva para
assessorar a reforma constitucional de 1967.
Gama e Silva, o
“Gaminha”, se tornou reitor da USP em 1963 e foi reeleito em 1966. Em 1964, foi
convidado a ser ministro da Educação e da Justiça, funções que exerceu por
breve período. Enquanto reitor, elaborou a lista de nomes de professores e
alunos que viriam a ser processados no IPM da universidade. Em abril daquele
ano, por meio de decreto, comissões de Inquérito Policial Militar foram
instaladas em instituições diversas em busca de possíveis opositores do regime
militar.
Entre os docentes
uspianos perseguidos, alguns eram expoentes em seus campos. Mário Schemberg, um
dos principais nomes da física do país, foi preso por 50 dias em 1964 e
compulsoriamente aposentado em 1969, após o AI-5. Igualmente detido e
exonerado, Florestan Fernandes, patrono da sociologia brasileira, foi tido como
um “marxista violentíssimo” – “deferência” também conferida ao cientista e
professor Isaias Raw, que nem mesmo à esquerda pertencia.
Um dos pais da
arquitetura paulista, Vilanova Artigas foi preso e impossibilitado de lecionar.
Foi reintegrado após a Lei da Anistia, em 1979, como auxiliar de ensino. Em
1984, foi obrigado a prestar um humilhante concurso para recuperar o cargo de
professor titular da FAU. Seis meses depois, ele faleceria, segundo sua esposa,
de desgosto.
A sanha persecutória
não perdoava nem mesmo livros: uma insuspeita publicação sobre história grega
intitulada Helenismo foi apreendida por agentes de segurança, que afoitamente a
associaram ao termo “leninismo”.
Endereçadas à reitoria
e órgãos de segurança, cartas anônimas redigidas pela ala de professores mais
conservadora reforçavam os expurgos – inclusive o de uma criança. Uma carta de
delação relatava que o fisiologista Thomas Maack comprovava ser um ativo comunista
pelo fato de carregar sua pequena filha num cesto vermelho. Como resultado, a
criança foi expulsa da creche do Hospital das Clínicas.
Entre as faculdades
mais perseguidas estavam a de Filosofia, Ciências e Letras e a de Medicina,
reputadas como redutos de esquerda. Três renomados nomes egressos da Faculdade
de Medicina tiveram o mesmo destino insólito.
“Fui convidado pelo
professor Oswaldo Vital Brazil para ser seu assistente na Faculdade de Ciências
Médicas de Campinas, berço da Unicamp. Eu operava um cão, quando chegaram dois
ou três investigadores”, conta o professor Boris Vargafitg, trotskista desde
1958. “Esperaram eu terminar a operação para me levar para o DOPS, onde
encontrei o colega médico Luiz Hildebrando”.
Os dois foram
transferidos para o insalubre navio-prisão Raul Soares, uma das primeiras
prisões da ditadura, ancorado em Santos. “Lá, procurei por Thomas Maack, preso
há meses, e lhe disse que sua filha e esposa estavam bem”, relembra. “Não sofri
tortura como outros sofreram, mas uma das piores coisas era ter que ir ao
banheiro com uma metralhadora apontada para você por um soldado”.
Liberado após 50 dias,
ele teve as portas fechadas em Campinas e São Paulo. Ao final de 1964 restou a
Boris migrar para o exterior, onde logo encontrou trabalho. Tanto ele como Luiz
Hildebrando construíram carreiras de sucesso no Instituto Pasteur, em Paris,
assim como Maack logrou êxito profissional nos Estados Unidos. A fuga de
cérebros e talentos foi uma constante durante a ditadura.
• Parceiros da ditadura
Em 1967, Gama e Silva
foi novamente convocado pelo ditador Costa e Silva para o Ministério da Justiça
– para onde levou membros do CCC. Mesmo em Brasília, manteve o cargo de reitor.
De acordo com
depoimento do investigador Raul Nogueira de Lima, o “Raul Careca”, ao
jornalista Percival de Souza, o Comando de Caça aos Comunistas foi criado por
ele, então estudante de Direito na Universidade Mackenzie, e por João Marcos
Flaquer e Octávio Gonçalves Moreira Júnior, alunos de Direito da USP, em 1963:
“O CCC foi criado na Faculdade de Direito do largo São Francisco para enfrentar
a esquerda organizada. O núcleo inicial era de uns quinze estudantes”.
Membros do grupo de
extrema direita atuaram no IPES, TFP (Tradição, Família e Propriedade), DOPS,
DOI-Codi e SNI. O delegado Octávio Gonçalves, o “Otavinho”, era sobrinho de
Gama e Silva, segundo apurações da Comissão Nacional da Verdade.
O CCC recebia
treinamento e respaldo militar, enquanto praticava intimidações e atentados a
teatros, faculdades e veículos de comunicação. Alvo preferencial, a USP recebeu
ataques em diversos prédios, como o da FFCL, e no CRUSP, o conjunto residencial
onde moradores tiveram que se esconder de rajadas de metralhadora por mais de
uma vez.
Na noite de 16 de
outubro de 1968, o professor Alberto Moniz da Rocha Barros, da Faculdade de
Direito, foi atacado por integrantes do CCC, alunos daquela instituição, que o
derrubaram e lhe deram pontapés. Rocha Barros, que já sofria ameaças e insultos
por suas posições de esquerda, passou a viver em estado de grande tensão e
morreu de infarto menos de dois meses depois. Uma sindicância aberta na época,
jamais teve seu resultado conhecido.
Além do Direito, a
parceria entre uspianos e militares se deu em outro campo. Entre 1969 e 1976,
vários médicos legistas foram responsáveis pela realização de laudos
necroscópicos falsos no Instituto Médico Legal de São Paulo. Muitos deles, como
Harry Shibata, Isaac Abramovitc, Abeylard de Queiroz Orsini e Armando Canger
Rodrigues, eram formados pela USP. Abramovitc foi quem mais assinou documentos,
com 22 laudos, ao passo que Shibata – autor do laudo da morte como suicídio do
jornalista e professor Vladimir Herzog – é o campeão em processos relacionados
à ditadura.
Abramovitc e Orsini
fraudaram o laudo do estudante de Medicina e professor de curso pré-vestibular
Gelson Reicher. Abramovitc, que conhecia Reicher desde a infância e fora seu
professor na faculdade, chegou a telefonar para a família e avisou onde seu corpo
fora enterrado. E fez forte defesa do regime vigente, ao afirmar que a
violência havia sido provocada pelos opositores e que, portanto, a resposta era
à altura.
“Gelson era diretor do
centro acadêmico e era um gênio. Suas peças de teatro eram impressionantes”,
conta Adriano Diogo, ex-presidente da Comissão Estadual da Verdade de São
Paulo. Sobre Abramovitc, ele revela: “Isaac possuía uma clínica de aborto, cuja
segurança e acobertamento eram feitos pela OBAN. Ele trouxe um aparelho do
exterior, que sugava o órgão genital, e fez milhares de abortos”.
No Quadrilátero da
Saúde, onde estão as faculdades de Medicina e de Saúde Pública, a Escola de
Enfermagem e o Hospital das Clínicas – além do vizinho IML –, a tensão era
constante. “Fichas de alunos internados no Hospital das Clínicas desapareceram.
Não conseguimos documentos [foram negados], mas havia relatos de tortura feita
por médicos no hospital”, declara a historiadora Janice Theodoro.
Todavia, havia um
oportuno contraponto aos torturadores: um serviço clandestino de atendimento a
presos políticos internados no hospital-escola foi organizado por médicos
veteranos e estagiários. Chamado de “Socorro Vermelho”, prestava auxílio a
pacientes e seus familiares durante a madrugada. Um desses médicos foi
Boanerges de Souza Massa, formado pela USP em 1965 e morto pela repressão em
1972.
Então estudante da
Faculdade de Medicina, o psicanalista Leopold Nosek foi preso no hospital por
agentes de segurança e levado para o DOI-Codi. “Tive tempo de tirar o avental e
informar na portaria que estava sendo preso. Minha militância estudantil não era
grande em 1969, mas eu militava no POC, Partido Operário Comunista”, relembra
Nosek, que foi representante dos internos e liderou uma greve no hospital em
1970. “Um militante de outra organização disse que poderíamos sequestrar o
superintendente se eu quisesse. O Hospital das Clínicas era considerado área de
segurança nacional e sua administração era militar. Havia agentes infiltrados
ali e na faculdade”.
• Resistência estudantil
Ativista desde a
adolescência, Helenira Resende era contra a realização do 30º Congresso da UNE
em Ibiúna, interior de São Paulo. “Os estudantes acabaram com o estoque de pães
na cidade”, conta Helenalda, sua irmã. “Sua primeira opção era realizar a reunião
no CRUSP”.
O conjunto residencial
se tornou centro político do movimento estudantil desde 1963, quando foi
ocupado por estudantes que não possuíam condições de pagar os caros aluguéis de
São Paulo. Após o golpe, tornou-se palco de contestação do regime militar e espaço
de práticas de educação popular.
Em agosto de 1968, um
delegado do DOPS foi ao CRUSP para prender alguns líderes, mas foi preso e
interrogado pelos estudantes, enquanto sua viatura, incinerada. A vingança
viria após a publicação do draconiano AI-5, quando o alojamento estudantil foi
invadido por tropas do Exército, todos seus moradores foram presos e um IPM foi
instalado – cujo relator foi o coronel Sebastião Alvim, diretor do navio-prisão
Raul Soares.
Diretor cultural do
CRUSP, Lauriberto José Reyes era outra liderança da UNE a favor da realização
do congresso no alojamento. Membro da Aliança Libertadora Nacional (ALN),
organização criada por Carlos Marighella, Lauriberto sequestrou um avião no dia
que o revolucionário morreu, em 04 novembro de 1969, e desviou seu curso até
Cuba. Na ação, foi acompanhado por Ruy Carlos Vieira Berbert, estudante de
Letras, professor e morador do CRUSP. Na ilha, receberam treinamento de
guerrilha e participaram da criação do grupo MOLIPO.
Estudante de Ciências
Sociais, moradora do CRUSP e professora do Cursinho do Grêmio da faculdade,
Isis Dias de Oliveira teve igualmente treinamento em Cuba. “A discussão da
democratização do acesso à USP era uma questão importante para a tia Isis. Ela
não entendia a desigualdade social”, explica sua sobrinha Adriana Dias. “Ela
estudou piano, pintura, moda, e dominava três idiomas. Mas em vez de levar essa
sensibilidade para as artes, ela levou para a sociologia, para a luta armada”.
Após algumas invasões,
o cursinho no CRUSP funcionou até 1967, quando surgiu a necessidade de se criar
cursos mais discretos, fora da universidade. João Antônio e Catarina Abi-Eçab
fundaram então o PREUSP, que contou com a participação de Isis Dias e seu
marido José Luiz Del Roio (cofundador da ALN) e outros estudantes da USP, como
o artista plástico ítalo-brasileiro Antônio Benetazzo e José Arantes,
presidente do grêmio e da UNE.
Diretor do Núcleo de
Preservação da Memória Política, Maurice Politi foi aluno do PREUSP. “Não sabia
do que se tratava; entrei lá porque era mais barato do que outros cursos. Mas
tive ótimos professores, que me possibilitaram ingressar na USP”, relata ele,
que assegura que havia forte teor político no curso. “Eles davam aula, mas
também tentavam cooptar para a ALN”.
Politi ingressou na
faculdade de Comunicações Culturais (pré-ECA), criada por Gama e Silva. “Ele
colocou como diretor um espanhol franquista, Julio Garcia Morejón. A escola foi
criada para ser um modelo fascista”. Um dos professores de jornalismo, Flávio
Galvão, do grupo O Estado de São Paulo e vinculado ao IPES e SNI, abriu um
processo administrativo contra Politi, por panfletagem na universidade. “Quem
me defendeu foi o jurista Dalmo Dallari”.
O PREUSP, contudo,
teve breve existência. O casal Abi-Eçab faleceu no dia 08 de novembro de 1968,
justamente no dia do retorno a São Paulo, após estadia no Rio. A versão oficial
diz que ambos morreram num acidente automobilístico, entretanto, o ex-militar
Valdemar Martins, em reportagens diversas, sustenta que eles foram
sequestrados, torturados e executados por agentes do Centro de Inteligência do
Exército.
“Minha mãe havia
preparado o jantar favorito de João para a sua volta”, recorda sua irmã
Mariliana Abi-Eçab. “Ele sabia que não viveria muito. Estudava muito,
trabalhava muito, era afoito para viver. O relacionamento do casal não deve ter
passado de um ano”.
“Catarina me passava
suavidade, tranquilidade. João era alegre, intelectualizado, tinha uma forte
visão social”, diz o irmão Leopoldo, que foi secretário no PREUSP. “Ele não
queria me envolver, mas eventualmente eu participava. No mês seguinte ao
acidente, o apartamento deles foi vistoriado pelos delegados Sérgio Fleury e
Paulo Bonchristiano, então, antes, tiramos o material comprometedor”.
Leopoldo Abi-Eçab crê
que, para liberar rapidamente os corpos do casal, seu pai possa ter feito um
trato com os militares, que consistia em não abrir o caixão. Durante três anos,
seu pai foi espionado por um investigador, que ele julgava ser cliente de sua
clínica ortopédica. “Em 1972, após um café, ele revelou que era policial e que
em seu relatório nada constava. Em seguida desapareceu”.
As mortes de
Lauriberto, Ruy Carlos, Benetazzo e José Arantes também são suspeitas e
demonstram disparidades entre a versão oficial dos militares, laudos do IML e
relatos de testemunhas. Registrado como suicídio, o óbito de Benetazzo ocorreu
por apedrejamento, conforme depoimento de um militar ao jornalista Marcelo
Godoy.
Já Isis Dias de
Oliveira, falecida em 1972, nunca teve seu corpo encontrado. Sua mãe, Felícia
Nardini de Oliveira, empreendeu incansável busca por seu paradeiro, aqui e no
exterior. Em sua luta, ajudou a formar a Comissão de Familiares de Mortos e
Desaparecidos Políticos e o Grupo Tortura Nunca Mais. Felícia faleceu em 2010,
aos 93 anos, sem saber o que efetivamente ocorreu com a filha.
• Punição e vigilância no campus
Em dezembro de 1968,
Gama e Silva redigiu duas versões do AI-5 que davam plenos poderes ao
presidente, sendo a primeira versão classificada de “caráter nazista” por Costa
e Silva. No ano seguinte a repressão se intensificou com a criação da OBAN e de
atos feito o AI-13, que instituiu a pena de banimento, e o AI-14, com a pena de
morte em caso de guerra.
Entre os anos de 1968
e 1973, o AI-5 puniu 168 professores, cientistas e intelectuais, entre eles, o
vice-reitor da USP, Hélio Lourenço de Oliveira, adepto de reformas
universitárias, que foi exonerado em 1969 após discordar da prisão de alunos e
funcionários e da cassação de 43 docentes. Colega de “Gaminha”, Alfredo Buzaid
ocuparia seu posto e, posteriormente, o Ministério da Justiça.
Reitor da USP entre
1949 e 1950, Miguel Reale assumiu a reitoria pela segunda vez em 1969, nomeado
pelo governador “biônico” Abreu Sodré. Ideólogo da Ação Integralista
Brasileira, diplomado pela Escola Superior de Guerra, Reale elevou o nível de
vigilância na universidade ao instalar em 1972, em sala contígua à sua, a
Assessoria Especial de Segurança e Informação (AESI). Encarregado do gabinete,
Krikor Tcherkesian enviou centenas de informes para o SNI, Forças Armadas e
polícias.
“Apesar de a AESI ser
planejada para o âmbito federal, a USP, universidade estadual, ganhou sua
própria assessoria de informação por obra de Reale”, esclarece Janice Theodoro.
Em janeiro de 1975, o
reitor Orlando Marques de Paiva determinou a demissão de Ana Rosa Kucinski,
professora do Instituto de Química, por abandono de cargo, mesmo ciente de seu
desaparecimento. Em 22 de abril de 1974, Ana e seu marido, o físico Wilson Silva,
foram sequestrados, torturados e assassinados por agentes da repressão. Ambos
eram integrantes da ALN.
No dia seguinte ao seu
desaparecimento, Krikor Tcherkesian visitou a sede do DOPS. O presidente da
comissão que julgou o caso de Ana, o professor Henrique Tastaldi, assumiu seu
lugar no Instituto de Química.
A triagem ideológica
na USP foi extinta somente em 1982, na gestão de Hélio Guerra – responsável por
queimar documentos da AESI.
Os restos mortais de
Ana Rosa e seu marido, assim como os de Helenira e Isis, nunca foram
encontrados. “Há um boicote para não se achar os corpos”, acredita Helenalda
Resende, que foi torturada por militares, juntamente com outra irmã, mesmo após
o desaparecimento de Helenira.
Muitos desaparecidos
políticos foram homenageados com nomes de logradouros, praças, centros
acadêmicos e bibliotecas. A diplomação honorífica complementa essas homenagens.
A diplomação para os
alunos que tiveram suas vidas interrompidas durante o período da ditadura, é
uma das recomendações da Comissão da Verdade da USP, atesta Renato Cymbalista,
coordenador da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP). “Eram pessoas
que se destacavam em seus meios, socialmente, politicamente, intelectualmente,
e que certamente teriam feito muita diferença caso tivessem tido a oportunidade
de exercer suas práticas profissionais”.
“A Diplomação da
Resistência é uma sinalização de que a USP precisa olhar para sua história, não
apenas como uma história laudatória, de resistência, mas a partir de um olhar
crítico que revê posições e que busca reparar e corrigir erros do passado”, considera.
Fonte: Por Sérgio
Barbo, da Agência Pública
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