Marco Antonio Innocenti: ‘Estados e
municípios precisam pagar precatórios... Para seu próprio bem’
A limitação do
pagamento de precatórios de estados e municípios já é antiga. Infelizmente, vez
ou outra, o Congresso acaba incorporando e aprovando projetos absolutamente
inconstitucionais que ferem princípios básicos do Estado democrático de
Direito: a dignidade da pessoa humana e a segurança jurídica. Quando é
condenado judicialmente, o poder público, pela Constituição, tem de cumprir uma
ordem de pagamento, que deve ser satisfeita, em regra, no exercício financeiro
(ano) seguinte.
Acontece que, no
Brasil, infelizmente, as instituições acabam sendo muito condescendentes com o
inadimplemento dessas condenações, especialmente no nível estadual e municipal.
Ou seja, o Judiciário condena o ente público e, depois de muito tempo, é expedido
o ofício requisitório, que acaba virando precatório. E aí o estado ou a
prefeitura acabam não pagando. Essa é a lógica que a maioria dos governantes
tem na cabeça: simplesmente não pagar dívidas que foram constituídas por
administrações anteriores, uma visão distorcida e equivocada de administração
pública.
No passado, isso
acontecia apenas com os entes subnacionais, já que o governo federal vinha
pagando pontualmente os precatórios há pelo menos duas décadas. Mas, em 2021, o
governo Bolsonaro resolveu seguir a lógica marota e dar calote nesses
pagamentos, situação que foi contornada em 2023, quando o atual governo teve
que desembolsar R$ 93 bilhões para livrar o país do risco de ter sua nota de
crédito novamente rebaixada no mercado internacional, restabelecendo a
normalidade e evitando nova debandada de investidores para outros países que
oferecem níveis muito maiores de confiança e segurança jurídica.
Agora, além do regime
especial que já existe desde 2009 e permite a estados e municípios parcelarem
seus precatórios, se pretende também que esses prazos sejam novamente esticados
— não para que o próprio governo se financie, mas apenas para se prorrogar o
pagamento aos credores. O Congresso Nacional não pode, a todo momento, editar
regras que beneficiem estados e municípios para além daquelas que já foram
sucessivamente feitas nas últimas três décadas, protelando indefinidamente o
pagamento. Isso é uma solução péssima até para o próprio devedor, porque essa
dívida — como nem poderia deixar de ser, pois isso é o mínimo que se há de
esperar — é reajustada pela Selic, além de juros compensatórios no caso de
desapropriações. Essa dívida deveria merecer uma gestão pública mais eficiente
do que a simples inadimplência.
Participei da
elaboração de duas emendas constitucionais, a 94/2016 e a 99/2017, que
trouxeram soluções para esse problema. Chegou-se a um consenso de que as
medidas que produziam efeitos positivos eram boas não apenas para os credores
receberem seus créditos, mas também para os devedores poderem pagar com uma
condição que lhe permitisse tirar menos recursos do tesouro e se socorrer da
redução do débito, por exemplo, com os acordos com desconto.
De alguns anos para
cá, houve um grande avanço em termos da gestão dos precatórios nos tribunais,
especialmente a partir de 2019, com a Resolução 303 do CNJ. Isso implicou uma
padronização e uniformização nos procedimentos administrativos para que os tribunais
pudessem dar o mesmo tratamento a dívidas de estados e municípios,
disciplinando a forma de cálculo da parcela mensal que entidades devedoras
enviam aos tribunais de justiça.
Spacca
Hoje, àquelas
entidades com o maior estoque de precatórios a legislação permite uma
flexibilização, até porque estados com maior endividamento criaram um espaço
fiscal no orçamento e vêm conseguindo atender esse compromisso, sem prejuízo de
outras políticas públicas. Então, não há razão para se imaginar uma folga
orçamentária para deixar de pagar os precatórios.
E essa flexibilização
tem prazo para encerrar: final de 2029. Até lá, estados e municípios precisam
efetuar o pagamento do estoque em atraso. Não há espaço para mais
flexibilizações, como inclusive já decidiu o STF ao modular os efeitos do
julgamento da ADI 4.357, que reconheceu, mais uma vez, a inconstitucionalidade
de emendas à Constituição voltadas ao calote dos débitos judiciais. Até pela
reiteração da jurisprudência do STF nesse assunto, os legisladores pró-calote
deveriam ser mais criativos, pensar em soluções que não fossem, de antemão,
proibidas pela Suprema Corte.
Pelo contrário, eles
precisam encontrar medidas para tornar mais eficiente a gestão dos precatórios
pelas administrações subnacionais, fazendo melhor uso da política de acordos.
Em muitos estados e municípios, o acordo não existe ou tem uma lógica perversa,
que não leva em conta o tempo de espera do credor, havendo mesmo estados que
sequer admitem acordo em precatórios mais recentes. Isso faz com que o credor
mais antigo seja obrigado a dar maior desconto para receber o precatório. Essa
lógica é completamente absurda.
Dever-se-ia exigir
daquele que tem o precatório emitido há menos tempo um desconto maior do que de
credores mais antigos. Essa é a lógica jurídica, prestigiando quem está há mais
tempo na fila.
• Precatórios e efeitos sobre a economia
A compensação com
tributos é outra medida que deveria ser incentivada, como fez recentemente o
governo de São Paulo, que criou uma lei permitindo pagar ou amortizar débitos
tributários com precatórios do próprio estado. Essa possibilidade, inclusive
para fins de privatizações, concessões e outorgas, tem sido tratada como algo
que reduz a receita de governos, quando deveriam estar direcionadas justamente
à redução da dívida.
Em 2021, a FGV
publicou um estudo relacionando a inadimplência dos precatórios e o desemprego.
Percebeu-se que, quando os precatórios são pagos em dia, há uma melhora da taxa
de emprego. Quando não se paga, há um avanço do desemprego. Os precatórios pagos
por estados e municípios exercem influência regional sobre suas economias. Não
pagar precatórios constitui um freio ao desenvolvimento dessas regiões.
Com exceção do calote
de 2021/22, o governo federal vem cumprindo essas obrigações judiciais, o que
representa também uma sinalização ao mercado de que tem forte compromisso com o
pagamento dos títulos da dívida pública. O governo que deve títulos do Tesouro
Nacional é o mesmo que deve precatórios federais. Por que se paga aqueles e
estes não? Se o governo passa ao mercado a mensagem que não paga precatório,
que é dívida pública, porque iria pagar a outra dívida, um título de crédito
emitido pelo próprio governo? Isso tem um óbvio reflexo no mercado
internacional de crédito e deveria ser um exemplo também a ser seguido por
estados e municípios.
• Muita briga e pouco acordo
Dizer que o avanço da
dívida de precatórios no País é fruto de fraude ou conluio é uma grande
bobagem. O fato é que os processos judiciais demoram muito. A administração
pública deveria fazer como em outros países: reduzir a excessiva litigiosidade
que só o Brasil tem, com um montante de 100 milhões de processos judiciais
ativos — a banalização da judicialização de qualquer coisa.
O principal
responsável por esse elevado número de demandas é o próprio poder público, que
descumpre a legislação o tempo todo e faz isso de forma proposital para se
beneficiar da demora que a Justiça impõe na solução dos casos. É uma lógica
perversa, porque o Poder Judiciário acaba consumindo mais recursos públicos,
demandando uma enorme infraestrutura, inclusive de servidores públicos que não
encontra semelhança em qualquer outra nação, mesmo entre as menos
desenvolvidas. A quem essa gigantesca máquina judiciária atende? Ao próprio
governo. Cerca de 70% das demandas do Brasil envolvem o poder público, o maior
cliente do Poder Judiciário.
Para que o Brasil
avance e ingresse no grupo de países que, de fato, respeitam os direitos
individuais e conferem segurança às relações jurídicas mantidas com o poder
público, cumprir decisão judicial é o mínimo. Quando é condenado, o Estado deve
pagar imediatamente, e não esperar aquilo virar uma bola de neve. Quantas
causas existem hoje na Justiça da ordem de R$ 500 milhões, R$ 1 bilhão, R$ 5
bilhões? Inúmeras. Isso não é conluio, não é nenhuma fraude. Isso é
irresponsabilidade do gestor que não fez o acordo quando deveria fazer, não fez
a conciliação que deveria ter feito, não paralisou o processo em que era
evidente o direito da contraparte privada, mas simplesmente foi postergando,
empurrando, recorrendo a todas as instâncias, propondo ações rescisórias e,
depois, rescisória das rescisórias, onerando mais e mais o ente público. É um
círculo vicioso que só faz essa despesa crescer. Isso parece óbvio, mas,
infelizmente, acontece aos milhares.
Quando se compõe, faz
um acordo e concilia, o valor da dívida do governo reduz drasticamente. Só os
acordos em precatórios permitem aos estados e municípios uma redução de 40% dos
débitos. As administrações precisam fortalecer seus instrumentos de conciliação
e mediação de conflitos. Só assim irão reduzir as contas de precatórios e os
encargos decorrentes de condenações judiciais. Se continuarem nesse círculo
vicioso que se encontram há décadas, descumprindo direitos de servidores
públicos, de credores particulares com bens desapropriados sem pagamento da
indenização, desrespeitando contratos, esticando os processos por décadas para
evitar satisfazer o direito violado, estaremos fadados a continuar gastando
muito dinheiro para manter um Estado ineficiente e que descumpre o direito dos
cidadãos e das empresas.
O Congresso deveria
estar muito mais preocupado com isso do que em reeditar medidas que,
vergonhosamente, premiam gestores públicos pela má administração de seus
precatórios e aumentam a percepção de que no Brasil o governo não respeita
decisão judicial.
• Precatórios da União são verdadeira
bomba-relógio prestes a explodir. Por Gustavo Bachega
Os precatórios têm
sido um tema recorrente no debate público brasileiro, mas poucos compreendem a
real dimensão do problema e suas implicações para o futuro do país. Eles
representam uma verdadeira bomba-relógio, prestes a explodir e causar danos
irreparáveis à economia e à sociedade.
De acordo com os dados
mais recentes do “Relatório das Despesas com Sentenças Judiciais — Precatórios
2025”, elaborado pela Secretaria de Orçamento Federal (SOF), o Brasil possui um
total de 155.683 precatórios, com um total de 250.641 beneficiários, que somam
a impressionante quantia de R$ 70,7 bilhões. Esse valor é equivalente a quase
duas vezes o orçamento anual do Bolsa Família, um dos principais programas
sociais do governo federal.
As dívidas que a
União, os estados e os municípios têm com pessoas físicas e jurídicas,
decorrentes de decisões judiciais transitadas em julgado, podem ser comparadas
a um meteoro que se aproxima da Terra em alta velocidade. Como são valores que
o poder público deve pagar, sem possibilidade de recurso, por ter sido
condenado em ações judiciais, exigem medidas urgentes e eficazes ou irão causar
um impacto devastador.
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Causas e prevenção
Assim como os
meteoros, cuja trajetória, origem e tamanho podem ser previstos pela Nasa, os
precatórios também são previsíveis e não surgem do nada. Eles são resultado de
decisões judiciais que, em muitos casos, decorrem de falhas na gestão pública.
Logo, é fundamental que a administração pública se dedique a analisar as causas
dos precatórios e a implementar medidas preventivas para evitar seu crescimento
desenfreado.
Mas a realidade é que,
até agora, pouco tem sido feito nesse sentido. A análise da distribuição
temporal dos precatórios mostra que a maior parte deles (39,18%) levou de cinco
a dez anos para ser expedida, enquanto 35,56% levaram de dez a 15 anos e 30,95%
levaram de 15 a 20 anos. Isso evidencia a morosidade do processo e a falta de
prioridade dada ao tema pelos governos.
Outro dado preocupante
é a concentração de valores em um número reduzido de precatórios de alto valor.
Apenas cinco precatórios (0,00%) possuem valor acima de R$ 1 bilhão, mas
representam 21,20% do valor total (R$ 15 bilhões).
Isso significa que a
quitação desses débitos pode ter um impacto significativo nas contas públicas,
comprometendo a capacidade de investimento do Estado em outras áreas.
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Propostas
Diante desse cenário
alarmante, é urgente que o poder público adote medidas concretas para enfrentar
o desafio dos precatórios. Algumas propostas têm sido discutidas, como a
criação de um fundo específico para o pagamento desses débitos, a renegociação
de dívidas com credores e a revisão dos critérios de expedição de precatórios.
No entanto, para além
de soluções pontuais, é preciso uma mudança de mentalidade e de postura por
parte dos gestores públicos. Erros e omissões não devem se acumular ao longo
dos anos, sem que ninguém seja responsabilizado por isso
Outro ponto crucial é
a transparência e o controle social sobre o processo de pagamento dos
precatórios. A sociedade precisa ter acesso a informações claras e atualizadas
sobre a situação desses débitos, para que possa cobrar providências e
acompanhar a efetividade das medidas adotadas. Os precatórios são uma questão
de justiça e de respeito aos direitos dos cidadãos.
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Contagem regressiva
Se não enfrentarmos
esse desafio de frente, estaremos condenando o país a um futuro de
instabilidade e de retrocesso.
O tempo está se
esgotando e a bomba-relógio dos precatórios continua a avançar. É hora de agir,
antes que seja tarde demais. O futuro do Brasil depende da nossa capacidade de
enfrentar esse desafio com coragem, responsabilidade e determinação. Que possamos,
juntos, construir um país mais justo, transparente e sustentável, livre da
sombra ameaçadora dos precatórios.
Fonte: Conjur
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