Operação Acolhida: ‘Migrantes e
trabalhadores denunciam preconceito contra venezuelanos’
Em 2018, moradores de
Pacaraima, município a 214 km da capital roraimense, Boa Vista, incendiaram,
agrediram e expulsaram venezuelanos que dormiam em barracas nas ruas da cidade.
O episódio, que ganhou repercussão nacional, marcou apenas uma das muitas situações
de xenofobia e violência contra os migrantes que chegaram ao Brasil. E que
permanecem até hoje.
Segundo a Agência
Pública apurou, nos últimos anos venezuelanos, ex-trabalhadores humanitários e
pesquisadores têm presenciado situações de preconceito contra os estrangeiros
até mesmo dentro dos abrigos da Operação Acolhida. A operação é a estrutura montada
pelo governo brasileiro com participação da Organização das Nações Unidas (ONU)
e das Forças Armadas para receber os migrantes venezuelanos no país. Estima-se
que mais de 1 milhão de pessoas tenham passado pelos serviços.
“[Os seguranças]
Aproveitavam que a OIM [Organização Internacional para as Migrações] não estava
lá, e aí eles faziam comentários mais duros, chamando as pessoas de porcas, de
mal-educadas, chegando a comentar que o estado [de Roraima] estava ruim por conta
deles, perguntando quando eles iam embora”, contou a ex-trabalhadora
humanitária da OIM Samara Santos (nome fictício), de 31 anos.
<><> Por
que isso importa?
• A Operação Acolhida, que recebeu cerca
de 1 milhão de pessoas, é a maior operação de acolhida de migrantes da história
recente do Brasil.
• A xenofobia já gerou ao menos um grande
episódio de ataque contra os migrantes, que destruiu acampamentos de centenas
de pessoas.
Embora responsáveis
por mediar conflitos e garantir a segurança e integridade dos espaços da
Operação Acolhida, Santos denuncia que os militares tinham discurso xenofóbico
frequente.
“Eles [militares do
Exército] faziam alguns comentários xenofóbicos, sempre retratando as pessoas
como sem educação, sujas, e traziam isso relacionado à nacionalidade deles.
Então, qualquer coisa que acontecia ali, tudo era culpa do venezuelano, ‘porque
o venezuelano é porco, porque o venezuelano não tem higiene, porque o
venezuelano não tem educação’”, contou Santos.
Ex-trabalhadora
humanitária da Agência da ONU para Refugiados (Acnur), Luana Pedroso, de 31
anos, diz que já escutou dos militares e da equipe da Acnur comentários
preconceituosos contra a população acolhida.
“Eu me lembro de
comentários: um militar uma vez disse que os indígenas que estavam no abrigo
‘não eram índios’ de verdade, porque eles ‘andavam com roupa e que se chamam de
índios para serem favorecidos’”, lembrou Pedroso.
Os discursos
xenofóbicos, segundo a ex-trabalhadora humanitária da Acnur, vinham também de
integrantes das ONGs que prestam serviços à Operação Acolhida.
“‘Fulano [algum
venezuelano] é muito vagabundo, não quer sair do abrigo nunca. Não procura
emprego, não vai trabalhar e só quer ficar dentro do abrigo […] Está acostumado
com a boa vida dentro dos abrigos’”, contou Pedroso sobre o que escutou de
outros trabalhadores humanitários.
• Para denunciar preconceito, migrantes
LGBTQIAPN+ escreviam cartas anônimas
No Posto de Recepção e
Apoio (PRA), em Boa Vista, a população LGBTQIAPN+ dorme em um espaço que fica
mais próximo à equipe de segurança da empresa Pegasus, que presta serviço à
operação. De acordo com Samara Santos, ao invés de as vítimas se sentirem seguras,
eram alvo de LGBTfobia e xenofobia.
“A gente chegou a ter
informações da própria comunidade [LGBTQIAPN+] sofrendo preconceito, e não é só
entre a comunidade migrante, [mas] vindo dos vigiais principalmente”, disse a
ex-trabalhadora. “E eram extremamente xenofóbicos com a comunidade migrante
dentro do espaço. E era algo que a gente reclamava e levava para os militares,
mas eles não faziam absolutamente nada”, completou.
Como forma de
denúncia, aos finais de semana, quando a equipe de proteção da OIM estava de
folga, as vítimas de LGBTfobia ou xenofobia escreviam cartas relatando o que
passavam nas mãos dos vigias.
“Eles sofriam ainda
mais preconceito quando a gente não estava. Então, para eles [vigias] não
saberem quem tinha denunciado, a gente teve essa ideia de cartas anônimas”,
contou Santos.
Segundo a
ex-trabalhadora humanitária, uma mulher trans, certa vez, enviou uma carta à
equipe de proteção da OIM na qual relatava ter sido vítima de transfobia
praticada por uma mulher que fazia a revista dos abrigados na porta dos
dormitórios.
“Na hora da revista,
essa mulher fazia comentários xenofóbicos e transfóbicos com colegas de
trabalho: ‘Será que essa é mulher ou é homem?”, repetiu Santos.
Até o primeiro
semestre de 2021, a Operação Acolhida contava com um abrigo voltado à
comunidade LGBTQIAPN+ e mães solo, mas que não está mais em funcionamento. A
reportagem questionou a organização sobre o motivo de o abrigo ter sido
desativado, mas não obtivemos resposta até a publicação.
Por meio de nota, a
Operação Acolhida respondeu que “todos os procedimentos empregados e praticados
seguem a conduta legal, respeitosa e digna aos migrantes e aos demais
integrantes das diversas agências da Operação Acolhida”. A nota afirma também
que as “cartas não são de conhecimento da operação e caso chegue alguma
denúncia sobre esse tema, será apurada”.
A OIM disse que
“ministra treinamentos relacionados à Gestão e Coordenação de
Abrigos/Alojamentos direcionado aos contingentes militares, assim como
parceiros de Organizações Não-Governamentais e sociedade civil, abordando um
módulo específico sobre Proteção às populações em vulnerabilidade”.
Além disso, a OIM
“estabelece uma política de zero tolerância de qualquer forma de preconceito e
destaca em suas ações que a discriminação com base em raça, etnia,
nacionalidade ou status migratório é inaceitável”. Leia a nota na íntegra.
A reportagem
questionou a Operação Acolhida sobre a empresa de vigilância terceirizada,
Pegasus. A organização, contudo, não respondeu à solicitação.
• Xenofobia gerou onda de ataques em
Pacaraima
Seis meses após a
instalação da Operação Acolhida em Roraima, em agosto de 2018, moradores de
Pacaraima foram às ruas para destruir acampamentos inteiros montados por
venezuelanos nas ruas da cidade.
De acordo com o El
País, a onda violenta teria começado após um comerciante ter sido roubado e
agredido por quatro venezuelanos, que não foram identificados.
No período em que os
ataques ocorreram, por Pacaraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela,
entravam por dia, em média, 800 venezuelanos migrantes ou com pedidos de
refúgio. A migração aumentou a população do pequeno município, de cerca de 13
mil habitantes.
Os manifestantes
incendiaram barracas e pertences, ameaçaram e expulsaram a população
venezuelana que dormia nas ruas do município.
A mobilização para os
protestos violentos ocorreu por meio de redes sociais, e, segundo apuração do
portal G1, cerca de mil pessoas participaram.
Parte dos venezuelanos
que estavam nas ruas conseguiu ser escoltada pelos militares para os abrigos da
Operação Acolhida. Contudo, cerca de 1,2 mil pessoas teriam deixado o Brasil a
pé ou se esconderam nas montanhas que cercam o município, segundo a apuração do
jornal.
Crianças perdidas de
seus pais, em meio à confusão, foram acolhidas pelas igrejas da cidade. “As
igrejas evangélicas e católicas […] que conseguiam espaço para recolher essas
crianças [as abrigavam], porque não tinham nem condições de buscar os pais”, contou
a irmã Ana Maria da Silva, 62 anos. “No dia seguinte, então, foi que começaram
a voltar das montanhas. E aí, graças a Deus, foram encontrados os pais das
crianças. Foi uma coisa muito horrível essa violência”, disse a irmã.
Procurada, a
prefeitura de Pacaraima, que responde pela Guarda Municipal, não respondeu aos
questionamentos da reportagem.
A Pública questionou o
governo do estado de Roraima, responsável pela Polícia Militar, mas não obteve
resposta até a publicação desta reportagem.
Fonte: Por Rafael
Custódio, da Agência Pública
Nenhum comentário:
Postar um comentário