“Black power verde e amarelo”: CIA
monitorou racismo no Brasil durante ditadura militar
“Meias-verdades e
distorções históricas.” Com essas palavras, a Agência Central de Inteligência
dos Estados Unidos (CIA) definiu em um relatório de 1981 do que era composto o
mito da inexistência de racismo no Brasil. O documento inédito é intitulado “Brasil:
raça e suas implicações para a estabilidade política” e foi localizado
pela Agência Pública no acervo do projeto Opening the
Archives, da Universidade Brown, em Rhode Island (EUA).
Para atestar a
existência de discriminação racial, ao longo de 37 páginas, o documento examina
dados, expõe gráficos e traz uma bibliografia atualizada com sociólogos
brasileiros que trabalhavam o tema à época. Mais que apontar a existência de
racismo, a agência norte-americana buscou analisar os impactos de uma
“crescente consciência negra” no país.
<><> Por
que isso importa?
- A descoberta do relatório da CIA mostra como os EUA
historicamente acompanharam de perto as dinâmicas sociais internas do
Brasil e a relação política com seus adversários e em que medida ignorou o
discurso oficial dos militares durante o regime ditatorial.
“Se as tendências que
identificamos se mantiverem, as relações raciais ganharão maior importância
política, e o descontentamento racial pode atingir proporções sérias até o
final da década. Incidentes raciais, casos de brutalidade policial, boicote
econômico e esporádicas manifestações de larga escala poderiam facilmente
ocorrer”, chegou a prever a agência norte-americana.
“Um oficial do
Consulado dos Estados Unidos no Rio Grande do Sul informou que, em outubro de
1980, ocorreu o Primeiro Encontro Estadual da Comunidade Negra”, atesta o
primeiro tópico de uma lista de atividades monitoradas. “Alguns dos temas
discutidos foram a segregação racial nos níveis local, estadual e nacional, a
discriminação nos trabalhos na indústria e o problema do desenvolvimento da
consciência negra”, descreve o documento.
Entre as manifestações
antirracistas listadas no relatório estão a criação de uma organização do
movimento negro em Santa Catarina; um protesto após um jovem negro ser impedido
de entrar no elevador de um shopping de São Paulo; a atuação da Escola de Samba
Quilombo; atividades de celebração do 350º aniversário do Quilombo dos
Palmares; desfiles dos blocos afro no carnaval de Salvador e as discussões
sobre a questão negra durante reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso
da Ciência (SBPC).
O documento mergulhou
na principal expressão da reorganização do movimento negro da década de 1970: a
criação do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978. O ato de fundação do
MNU, que reuniu 5 mil pessoas em São Paulo, bem como seus líderes, “importantes
porta-vozes da população negra”, e pontos do programa político foram destacados
no trabalho. “Embora a liderança do MNU seja de esquerda, seu primeiro diretor
tenha sido um autoproclamado marxista, e os agentes de segurança brasileiros
acusem o grupo de ter proximidade com o comunismo, a organização foi autorizada
a continuar suas atividades”, descreveu o relatório.
“O interesse dos EUA
pela questão racial no Brasil é muito anterior ao contexto da ditadura militar,
uma vez que essa era uma questão explosiva no contexto norte-americano”,
analisa a socióloga e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF)
Flavia Rios, que destaca ainda como intelectuais estrangeiros visitavam o país
desde a década de 1920 para pesquisar sobre o tema, uma vez que o Brasil era
usado como exemplo de relações harmoniosas. “E sempre esses intelectuais e
pesquisadores tinham uma interação com as agências norte-americanas”, destaca.
“A imagem do Brasil
como um paraíso racial é bem antiga”, explica o professor do Instituto de
Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)
Luiz Augusto Campos. “Com a derrocada do nazismo e o fim da Segunda Guerra
[Mundial], os recém-formados organismos internacionais passaram a enquadrar o
Brasil como exemplo de relações raciais.”
Segundo Campos, nos
anos 1970 a ideia começou a “perder legitimidade de fora para dentro”. O
relatório da CIA, por exemplo, se diferenciava de modo significativo do que era
relatado em documentos da ditadura. Mergulhados profundamente no mito da
democracia racial, os militares brasileiros seguiram até o final do regime
apostando na ideia de que o Brasil seria um país sem racismo.
Em 1988, por exemplo,
já sob o primeiro governo civil pós-ditadura, o Centro de Informações do
Exército [atual Centro de Inteligência do Exército (CIE)] produziu um relatório sobre as mobilizações sobre o centenário da abolição da
escravidão, em que era descrito que “a miscigenação se processou sem traumas ao
longo dos dois últimos séculos” e que as críticas do movimento negro buscavam
“semear o germe da discórdia” explorando um “pretenso racismo”.
·
A consciência negra como “preocupação”
Da relação dos
nascentes partidos políticos com lideranças negras aos efeitos da crise
econômica, passando pelas relações do Brasil com países africanos e pela
atuação de esquadrões da morte nas periferias do país, o relatório da CIA
demonstrava a preocupação de tentar antever o quanto essas questões poderiam
levar a um aumento da consciência racial na população negra brasileira e o que
isso poderia significar politicamente no país.
O documento sugeria um
modelo de checklist para futuros observadores, com perguntas
como: “os centros de cultos afro-brasileiros, as escolas de samba ou
outras associações negras, hoje apolíticas, estão se tornando centros de
agitação política e propaganda?” e “Cuba ou qualquer outra nação comunista
estão tentando exacerbar a situação racial no Brasil?”.
“No imaginário
norte-americano, a possibilidade de race riots, levantes baseados
em questões raciais, estava muito à flor da pele, especialmente entre os
brancos de classe média”, explica o historiador da Universidade Brown e criador
do projeto Opening the Archives, James Green.
Conhecedor do universo das agências norte-americanas, ele explica que o corpo
diplomático dos EUA no Brasil era o terceiro maior em recursos e número de
funcionários, dado o imaginário sobre o país criado após a Revolução Cubana.
A pesquisadora Flavia
Rios lembra que nos EUA havia a luta dos Panteras Negras, organização marxista
e maoísta que, na percepção da CIA, dada a “perspectiva imperialista dos EUA”,
encontraria no Brasil “solo fértil”, em razão da ditadura militar. “A gente já
vinha ali de um contexto de guerrilhas, de muitas mobilizações. […] Imagina se
essas duas coisas se comunicam? Um debate racial em sentido mais amplo, mais
forte, mais denso, mais conflitivo, junto a grupos marxistas, revolucionários?
Então se tem uma preocupação com esse potencial explosivo”, avalia.
·
Realidade mais particular que semelhante
Espiões
norte-americanos se aproximavam da visão dos militares brasileiros quanto ao
receio de manifestações antirracistas. “A publicação pela imprensa de artigos,
pesquisas, análises, debates e pronunciamentos de quem quer que seja sobre
preconceito e discriminação racial só servirá para criar um clima propício a
efervescências e agitações sociais que poderão culminar com a implantação,
no Brasil, de distúrbios raciais, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos da
América do Norte”, aponta relatório do Centro de Informações da
Aeronáutica (Cisa) de 1970.
Para os agentes da
Aeronáutica, não seria surpresa se, diante dessas efervescências, surgisse no
país um “Black Power verde e amarelo”. Os militares, em geral, usavam as
menções aos norte-americanos na tentativa de reduzir a agenda dos militantes
negros brasileiros, como fica evidente em relatório do Serviço Nacional de
Informações (SNI) de 1977 que se refere
aos bailes soul brasileiros como iniciativa de negros que
estariam tentando “plagiar os blacks norte-americanos”.
Um dos líderes
militantes do movimento negro monitorados pelos órgãos repressivos da ditadura
militar foi o doutor em história, tradutor dos livros de Zygmunt Bauman e autor
do livro Na lei e na raça, Carlos Alberto de Medeiros. O
pesquisador, que integrou o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN)
no início da década de 1980, disse imaginar que a luta era monitorada, mas se
surpreendeu com a produção do relatório pelos norte-americanos. “A gente não
percebia esse impacto internacionalmente”, sintetizou Medeiros ao saber do
documento.
Para Medeiros, as
manifestações antirracistas nos EUA eram uma fonte de inspiração, ao lado das
lutas por independência na África. A influência dizia respeito à questão
da luta pela afirmação da identidade negra, incluindo aspectos como o cinema
negro e a soul music.
“Mas nós não
percebíamos a possibilidade de ter os tipos de confronto que eles [militantes
norte-americanos] tinham, já que antes nós precisávamos ampliar essa coisa da
consciência negra”, reflete o pesquisador. “Nós tínhamos uma cultura, uma
história, que, em muitos aspectos, é muito mais rica que a deles. Então nós
fomos descobrir e valorizar nossas próprias particularidades.”
Fonte: Por Lucas
Pedretti, da Agência Pública
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