sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Um retrato da desigualdade brasileira

Desde que me entendo por gente, ou antes disso, aprendi que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. No momento, ocupamos a segunda posição: somos o segundo país mais desigual do mundo. Pouca gente com muito, e muita gente com pouco ou nada – dinheiro, oportunidades, acesso à saúde e à educação de qualidade, segurança, moradia.

Em um tempo que as imagens podem não ser verdadeiras, a desigualdade brasileira pode ser vista de diversos ângulos – a olho nu. Quem desce no Aeroporto Internacional Tom Jobim, no Rio de Janeiro, depois de ver do alto a harmonia do mar com as montanhas, como se a cidade fosse um cenário perfeito para seus habitantes, vai ver – para sair da Ilha do Governador – placas plásticas opacas cobrindo a visão total das favelas da Maré pela Linha Vermelha. Se a saída for pela Avenida Brasil, não haverá placas – haverá, além das favelas, usuários de drogas perambulando entre carros e ônibus expressos. Na Linha Vermelha, uma via expressa, não há pontos de ônibus.  Na Avenida Brasil, nos pontos e paradas, uma massa de gente indo e voltando do trabalho – esperando a condução.  Os usuários de drogas desviam de carros de luxo, utilitários e carros velhos.

Há um outro tipo de imagem, que comprova os dados sobre a desigualdade brasileira: os prédios de luxo ao lado de aglomerados de barracos e construções inacabadas – onde, claro, mora muito mais gente do que nos apartamentos enormes. A mais clássica dessas fotos é a da Favela de Paraisópolis, em São Paulo. O prédio, com jardins suspensos, quadra de tênis e piscina é separado da favela por um muro.

Quem vive nesse prédio vê pela janela o que o outro não tem. A indiferença é o que sustenta a desigualdade. Em uma dessas imagens, o primeiro plano da fotografia é um varal com roupas secando. Atrás, a favela. Ao fundo, em último plano, prédios altos, envidraçados – classificados como de luxo. É uma imagem que poderia ter sido feita em qualquer cidade do país.

Nesse Brasil, é possível ver “um bicho na imundície do pátio. Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, não examinava nem cheirava: engolia com voracidade. O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem”. O poema, escrito por Manuel Bandeira em dezembro de 1947, não era mais para existir na prática, só no papel. Mas, a fome – filha da desigualdade – é cruel e persistente.

Entretanto, quero falar das roupas penduradas naquele varal na favela. É uma corda e há umas doze ou treze peças de roupas. Essas roupas nos contam que no barraco mora uma família de seis pessoas: Seu Renato, dona Ana e quatro filhos.

Dona Ana lavou essa roupa com uma máquina que ganhou de uma chefe, que sempre doa para ela os objetos e móveis obsoletos – ou danificados. Ana aceita de bom grado. Com o salário que tem, não consegue comprar nada, além do que é necessário para sobreviver. Ana trabalha com costura, numa empresa de pequeno porte, e ganha por peça produzida. Centavos por peça, é bom que se diga. Sem direito a nada. Só o de colocar a linha na agulha, ficando horas sentada, curvada, fazendo roupas que serão vendidas em feiras de moda, por ambulantes e lojas que imitam as roupas desenhadas por estilistas.

A calça jeans que aparece em primeiro plano poderia ter sido feita por ela. Mas, não foi. É de uma loja de departamento que garante que oferece condições melhores para as costureiras. Mas as costureiras dizem que não é bem assim – e, de verdade, ninguém se importa. Você já parou para pensar no quanto de desigualdade há na roupa que está vestindo essa noite?

Bem, vamos voltar para a família de Ana e Renato.

Ele é porteiro, no último prédio que aparece na foto. São empresas que afirmam ter responsabilidade social, e contratam os moradores da comunidade do entorno. Seu Renato só conhece, de onde mora, mais um porteiro, um vigilante e o pessoal da limpeza. Mesmo os que estudaram, ele jamais viu dentro dos elevadores com os especialistas e doutores. Ele chama todo mundo de doutor para evitar errar no tratamento. Para evitar ser destratado. Ele sabe bem o que é racismo, até nega que existe, diz que somos todos iguais, mas vive – todo dia, todo tempo, o preconceito.

Dos filhos, é o seguinte:

O mais velho abandonou a escola, antes de terminar o fundamental. Queria trabalhar para comprar as coisas que via na TV. Com muito custo, comprou uma moto e faz entregas. Tem dois filhos, aos 24 anos, que ele vê, mas não tem como ajudar muito. Sobra para os pais dele e para os avós maternos o custo de comprar um leite, um pacote de fraldas, um brinquedinho de plástico vagabundo.

A menina tem 20 anos. Terminou o ensino médio, e não faz nada. Nem trabalha, nem estuda, como quatro em cada dez jovens brasileiros. Como mulher, a condição dela é pior, ainda mais por ter engravidado na adolescência. A filha, de três anos, é totalmente dependente dos avós. Que garantem o leite, a fralda, a comida, a roupa do comércio popular – que talvez a própria avó tenha costurado, o brinquedo de plástico vagabundo, a comida ultraprocessada (e barata), o refrigerante de baixa qualidade. Fruta, aparece de vez em quando, quando há tempo de ir à feira do bairro ao lado, na hora da xepa.

O caçula tem 15 anos, é – de alguma forma – o orgulho dos pais. Gosta de estudar, mesmo com os problemas que há na escola. Não se mete em confusão, mas viu assustado – outro dia – quando a diretora do colégio chamou a polícia para dois meninos que brigavam e se ameaçavam usando os nomes e símbolos de facções criminosas. Contrariando o Estatuto da Criança e do Adolescente, os dois alunos – uniformizados, saíram algemados.

A diretora da escola não sabe mais o que fazer, na verdade. Em turmas com 30 alunos, os professores conseguem a atenção de cinco, seis no máximo. Boa parte fica no celular, vendo e fazendo dancinhas no Tik Tok, ou apostando, ou vendo pornografia.

O caçula de Ana e Renato está entre os cinco ou seis. Dos engravatados e com ares de importância que passam pela portaria e cumprimentam o porteiro, também são cinco ou seis – ainda que passem 300, 400 pessoas todos os dias pela porta daquele prédio.

Dos cinco ou seis que veem o Renato, e o tratam pelo nome, dois perguntam como está a família dele – família que ele exibe em uma foto gasta, dentro da Bíblia que fica na mesa, que ele usa quando pode sentar uns minutos, quando o movimento diminui, entre as tarefas. A Bíblia, que ele lê, sempre fica aberta no Salmo 91:

 1 Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará.

2 Direi do Senhor: Ele é o meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza, e nele confiarei.

3 Porque ele te livrará do laço do passarinheiro, e da peste perniciosa.

4 Ele te cobrirá com as suas penas, e debaixo das suas asas te confiarás; a sua verdade será o teu escudo e broquel.

5 Não terás medo do terror de noite nem da seta que voa de dia,

6 Nem da peste que anda na escuridão, nem da mortandade que assola ao meio-dia.

7 Mil cairão ao teu lado, e dez mil à tua direita, mas não chegará a ti.

8 Somente com os teus olhos contemplarás, e verás a recompensa dos ímpios.

9 Porque tu, ó Senhor, és o meu refúgio. No Altíssimo fizeste a tua habitação.

10 Nenhum mal te sucederá, nem praga alguma chegará à tua tenda.

11 Porque aos seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos.

12 Eles te sustentarão nas suas mãos, para que não tropeces com o teu pé em pedra.

13 Pisarás o leão e a cobra; calcarás aos pés o filho do leão e a serpente.

14 Porquanto tão encarecidamente me amou, também eu o livrarei; pô-lo-ei em retiro alto, porque conheceu o meu nome.

15 Ele me invocará, e eu lhe responderei; estarei com ele na angústia; dela o retirarei, e o glorificarei.

16 Fartá-lo-ei com longura de dias, e lhe mostrarei a minha salvação.

A leitura que ele faz desse texto é uma oração. Para que a vida melhore. Que os filhos se mantenham vivos. Que os netos cresçam com saúde. É voto de esperança em dias melhores.

Um dos homens que cumprimenta Renato pelo nome é dono de escola. De uma rede de escolas, na verdade. Dessas que parecem em filmes e novelas ambientadas no Leblon. Professores altamente qualificados, esportes, idiomas. Renato, num ato de ousadia, falou do filho caçula enquanto o magnata da educação comemorava a vitória do seu time sobre o time do porteiro. O atacante é bom, mas o filho – disse – é excelente aluno. Vão perder o técnico, mas o que Renato tem medo mesmo é que o filho caçula se perca, tanto no tráfico quanto no risco que é ficar andando de moto ou bicicleta no meio dos carros, para entregar lanches para quem não quer mais cozinhar e pode se dar ao privilégio de pedir comida.

O magnata mandou Renato levar o filho numa escola bacana, não muito longe de onde moram. O garoto terá bolsa para cursar o ensino médio e ainda aprender inglês. Ainda que seja o único menino negro da turma. No dia que recebeu essa notícia, Renato e Ana vestiram a melhor roupa, lavada, cheirosa, passada, e foram para a igreja agradecer a Deus. Afinal, ele é o refúgio e fortaleza. E na igreja, eles sabem, os desiguais se tronam iguais diante do Deus que acolhe a todos.

Mas, um Brasil com 30% de sua população se declarando evangélica, não é um Brasil onde a desigualdade diminui. Se o filho de Renato sobreviver a tudo que sofrerá na escola nova, sendo um adolescente preto e pobre, se ele se formar, se o mercado de trabalho garantir emprego e renda justa para profissionais qualificados, pode ser que algum dia o jogo mude. E o time do porteiro passe a ganhar do time do magnata. É preciso que os magnatas percam, que acumulem menos. É preciso política que garanta novos modelos de sociedade. Um novo jeito de viver.

Até lá, vamos denunciando. E contando as histórias de vida dos desiguais. Até que sejamos todos, verdadeiramente, iguais uns diante dos outros.

 

Fonte: Por Nilza Valeria Zacarias é jornalista, uma das coordenadoras da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, no Le Monde

 

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