Um retrato da desigualdade brasileira
Desde que me entendo
por gente, ou antes disso, aprendi que o Brasil é um dos países mais desiguais
do mundo. No momento, ocupamos a segunda posição: somos o segundo país mais
desigual do mundo. Pouca gente com muito, e muita gente com pouco ou nada – dinheiro,
oportunidades, acesso à saúde e à educação de qualidade, segurança, moradia.
Em um tempo que as
imagens podem não ser verdadeiras, a desigualdade brasileira pode ser vista de
diversos ângulos – a olho nu. Quem desce no Aeroporto Internacional Tom Jobim,
no Rio de Janeiro, depois de ver do alto a harmonia do mar com as montanhas, como
se a cidade fosse um cenário perfeito para seus habitantes, vai ver – para sair
da Ilha do Governador – placas plásticas opacas cobrindo a visão total das
favelas da Maré pela Linha Vermelha. Se a saída for pela Avenida Brasil, não
haverá placas – haverá, além das favelas, usuários de drogas perambulando entre
carros e ônibus expressos. Na Linha Vermelha, uma via expressa, não há pontos
de ônibus. Na Avenida Brasil, nos pontos
e paradas, uma massa de gente indo e voltando do trabalho – esperando a
condução. Os usuários de drogas desviam
de carros de luxo, utilitários e carros velhos.
Há um outro tipo de
imagem, que comprova os dados sobre a desigualdade brasileira: os prédios de
luxo ao lado de aglomerados de barracos e construções inacabadas – onde, claro,
mora muito mais gente do que nos apartamentos enormes. A mais clássica dessas
fotos é a da Favela de Paraisópolis, em São Paulo. O prédio, com jardins
suspensos, quadra de tênis e piscina é separado da favela por um muro.
Quem vive nesse prédio
vê pela janela o que o outro não tem. A indiferença é o que sustenta a
desigualdade. Em uma dessas imagens, o primeiro plano da fotografia é um varal
com roupas secando. Atrás, a favela. Ao fundo, em último plano, prédios altos,
envidraçados – classificados como de luxo. É uma imagem que poderia ter sido
feita em qualquer cidade do país.
Nesse Brasil, é
possível ver “um bicho na imundície do pátio. Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa, não examinava nem cheirava: engolia com voracidade.
O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato. O bicho, meu Deus, era
um homem”. O poema, escrito por Manuel Bandeira em dezembro de 1947, não era
mais para existir na prática, só no papel. Mas, a fome – filha da desigualdade
– é cruel e persistente.
Entretanto, quero
falar das roupas penduradas naquele varal na favela. É uma corda e há umas doze
ou treze peças de roupas. Essas roupas nos contam que no barraco mora uma
família de seis pessoas: Seu Renato, dona Ana e quatro filhos.
Dona Ana lavou essa
roupa com uma máquina que ganhou de uma chefe, que sempre doa para ela os
objetos e móveis obsoletos – ou danificados. Ana aceita de bom grado. Com o
salário que tem, não consegue comprar nada, além do que é necessário para
sobreviver. Ana trabalha com costura, numa empresa de pequeno porte, e ganha
por peça produzida. Centavos por peça, é bom que se diga. Sem direito a nada.
Só o de colocar a linha na agulha, ficando horas sentada, curvada, fazendo
roupas que serão vendidas em feiras de moda, por ambulantes e lojas que imitam
as roupas desenhadas por estilistas.
A calça jeans que
aparece em primeiro plano poderia ter sido feita por ela. Mas, não foi. É de
uma loja de departamento que garante que oferece condições melhores para as
costureiras. Mas as costureiras dizem que não é bem assim – e, de verdade,
ninguém se importa. Você já parou para pensar no quanto de desigualdade há na
roupa que está vestindo essa noite?
Bem, vamos voltar para
a família de Ana e Renato.
Ele é porteiro, no
último prédio que aparece na foto. São empresas que afirmam ter
responsabilidade social, e contratam os moradores da comunidade do entorno. Seu
Renato só conhece, de onde mora, mais um porteiro, um vigilante e o pessoal da
limpeza. Mesmo os que estudaram, ele jamais viu dentro dos elevadores com os
especialistas e doutores. Ele chama todo mundo de doutor para evitar errar no
tratamento. Para evitar ser destratado. Ele sabe bem o que é racismo, até nega
que existe, diz que somos todos iguais, mas vive – todo dia, todo tempo, o
preconceito.
Dos filhos, é o
seguinte:
O mais velho abandonou
a escola, antes de terminar o fundamental. Queria trabalhar para comprar as
coisas que via na TV. Com muito custo, comprou uma moto e faz entregas. Tem
dois filhos, aos 24 anos, que ele vê, mas não tem como ajudar muito. Sobra para
os pais dele e para os avós maternos o custo de comprar um leite, um pacote de
fraldas, um brinquedinho de plástico vagabundo.
A menina tem 20 anos.
Terminou o ensino médio, e não faz nada. Nem trabalha, nem estuda, como quatro
em cada dez jovens brasileiros. Como mulher, a condição dela é pior, ainda mais
por ter engravidado na adolescência. A filha, de três anos, é totalmente dependente
dos avós. Que garantem o leite, a fralda, a comida, a roupa do comércio popular
– que talvez a própria avó tenha costurado, o brinquedo de plástico vagabundo,
a comida ultraprocessada (e barata), o refrigerante de baixa qualidade. Fruta,
aparece de vez em quando, quando há tempo de ir à feira do bairro ao lado, na
hora da xepa.
O caçula tem 15 anos,
é – de alguma forma – o orgulho dos pais. Gosta de estudar, mesmo com os
problemas que há na escola. Não se mete em confusão, mas viu assustado – outro
dia – quando a diretora do colégio chamou a polícia para dois meninos que
brigavam e se ameaçavam usando os nomes e símbolos de facções criminosas.
Contrariando o Estatuto da Criança e do Adolescente, os dois alunos –
uniformizados, saíram algemados.
A diretora da escola
não sabe mais o que fazer, na verdade. Em turmas com 30 alunos, os professores
conseguem a atenção de cinco, seis no máximo. Boa parte fica no celular, vendo
e fazendo dancinhas no Tik Tok, ou apostando, ou vendo pornografia.
O caçula de Ana e
Renato está entre os cinco ou seis. Dos engravatados e com ares de importância
que passam pela portaria e cumprimentam o porteiro, também são cinco ou seis –
ainda que passem 300, 400 pessoas todos os dias pela porta daquele prédio.
Dos cinco ou seis que
veem o Renato, e o tratam pelo nome, dois perguntam como está a família dele –
família que ele exibe em uma foto gasta, dentro da Bíblia que fica na mesa, que
ele usa quando pode sentar uns minutos, quando o movimento diminui, entre as
tarefas. A Bíblia, que ele lê, sempre fica aberta no Salmo 91:
1 Aquele que habita no esconderijo do
Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará.
2 Direi do Senhor: Ele
é o meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza, e nele confiarei.
3 Porque ele te
livrará do laço do passarinheiro, e da peste perniciosa.
4 Ele te cobrirá com
as suas penas, e debaixo das suas asas te confiarás; a sua verdade será o teu
escudo e broquel.
5 Não terás medo do
terror de noite nem da seta que voa de dia,
6 Nem da peste que
anda na escuridão, nem da mortandade que assola ao meio-dia.
7 Mil cairão ao teu
lado, e dez mil à tua direita, mas não chegará a ti.
8 Somente com os teus
olhos contemplarás, e verás a recompensa dos ímpios.
9 Porque tu, ó Senhor,
és o meu refúgio. No Altíssimo fizeste a tua habitação.
10 Nenhum mal te
sucederá, nem praga alguma chegará à tua tenda.
11 Porque aos seus
anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos.
12 Eles te sustentarão
nas suas mãos, para que não tropeces com o teu pé em pedra.
13 Pisarás o leão e a
cobra; calcarás aos pés o filho do leão e a serpente.
14 Porquanto tão
encarecidamente me amou, também eu o livrarei; pô-lo-ei em retiro alto, porque
conheceu o meu nome.
15 Ele me invocará, e
eu lhe responderei; estarei com ele na angústia; dela o retirarei, e o
glorificarei.
16 Fartá-lo-ei com
longura de dias, e lhe mostrarei a minha salvação.
A leitura que ele faz
desse texto é uma oração. Para que a vida melhore. Que os filhos se mantenham
vivos. Que os netos cresçam com saúde. É voto de esperança em dias melhores.
Um dos homens que
cumprimenta Renato pelo nome é dono de escola. De uma rede de escolas, na
verdade. Dessas que parecem em filmes e novelas ambientadas no Leblon.
Professores altamente qualificados, esportes, idiomas. Renato, num ato de
ousadia, falou do filho caçula enquanto o magnata da educação comemorava a
vitória do seu time sobre o time do porteiro. O atacante é bom, mas o filho –
disse – é excelente aluno. Vão perder o técnico, mas o que Renato tem medo
mesmo é que o filho caçula se perca, tanto no tráfico quanto no risco que é
ficar andando de moto ou bicicleta no meio dos carros, para entregar lanches
para quem não quer mais cozinhar e pode se dar ao privilégio de pedir comida.
O magnata mandou
Renato levar o filho numa escola bacana, não muito longe de onde moram. O
garoto terá bolsa para cursar o ensino médio e ainda aprender inglês. Ainda que
seja o único menino negro da turma. No dia que recebeu essa notícia, Renato e
Ana vestiram a melhor roupa, lavada, cheirosa, passada, e foram para a igreja
agradecer a Deus. Afinal, ele é o refúgio e fortaleza. E na igreja, eles sabem,
os desiguais se tronam iguais diante do Deus que acolhe a todos.
Mas, um Brasil com 30%
de sua população se declarando evangélica, não é um Brasil onde a desigualdade
diminui. Se o filho de Renato sobreviver a tudo que sofrerá na escola nova,
sendo um adolescente preto e pobre, se ele se formar, se o mercado de trabalho
garantir emprego e renda justa para profissionais qualificados, pode ser que
algum dia o jogo mude. E o time do porteiro passe a ganhar do time do magnata.
É preciso que os magnatas percam, que acumulem menos. É preciso política que
garanta novos modelos de sociedade. Um novo jeito de viver.
Até lá, vamos
denunciando. E contando as histórias de vida dos desiguais. Até que sejamos
todos, verdadeiramente, iguais uns diante dos outros.
Fonte: Por Nilza
Valeria Zacarias é jornalista, uma das coordenadoras da Frente de Evangélicos
pelo Estado de Direito, no Le Monde
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