Tecno-Apocalipse: teses para a Era das
Redes Sociais
Em 1959, Günther
Anders fez um discurso na Freie Universität Berlin que foi posteriormente
publicado como “Teses para a Era Atômica”, no qual ele analisou o impacto
apocalíptico da bomba nuclear na política. As reflexões abaixo, inspiradas por
esse texto, abordam algumas das consequências da ascensão das plataformas
sociais desde 2008 no mesmo âmbito. Enquanto as plataformas de trabalho são
amplamente analisadas e criticadas pela precarização do trabalho que produzem,
as plataformas sociais permanecem, apesar do reconhecimento generalizado de
seus efeitos nocivos para a sociedade, o grande consenso do realismo
capitalista atual, para usar a expressão de Mark Fisher. O objetivo aqui não é
comparar as redes sociais ou as plataformas com a bomba atômica de forma
literal, mas reconhecer seu efeito profundo e, até agora, irreversível na
política.
Essas teses, embora
teóricas, provêm de uma realidade muito empírica e fatual. Quando Jair
Bolsonaro venceu as eleições de 2018 no Brasil com uma campanha de mídia social
muito bem-sucedida, e os escândalos da Cambridge Analytica vieram à tona, o
Brasil tornou-se um case de estudos global no que se refere à ascensão da
extrema direita, um laboratório para o que chamo de “neofascismo de
plataforma”, uma tendência imbutida nas novas tecnologias digitais e fomentada
por nossas práticas cotidianas. Isso gerou uma espécie de apocalipse
tecnológico, que, embora não seja advindo de uma bomba, pode, no entanto,
produzir genocídios, como aconteceu no Brasil durante a pandemia da covid-19,
em Mianmar em 2017 e na Índia sob o governo de Narendra Modi.
• Neofascismo de Plataforma: uma condição
mundial
A crise de 2008
remodelou de vez nosso mundo digital, dando origem a uma nova era de
capitalismo monopolista. Intelectuais como Yanis Varoufakis, Cédric Durand e
Jodi Dean chegam até mesmo a apontar para uma mudança no nosso modo de produção
atual (isto é, uma mudança na organização social e econômica) do capitalismo
para o “tecnofeudalismo”. A digitalização e a plataformização não são apenas um
novo “modelo de negócios”, como pregam o Vale do Silício e suas variantes ao
redor do mundo, mas sim um novo cercamento dos mercados (até mesmo o mercado de
trabalho), de modo que a privatização desses mercados aniquila o princípio de
competição inerente a eles. Mas não são apenas os mercados que são cercados,
mas também nossas formas primárias de sociabilidade, cultura, educação,
comunicação, e, mais importante, a política. A nova infraestrutura digital
tornou-se a principal forma de organização política da direita. Desde o boom
das redes sociais, governos de direita se proliferaram em todo o mundo em uma
escala nunca vista antes. Esse aparato não apenas conectou grupos que antes
eram apenas marginais, mas constitui a base de uma direita internacional
globalizada neofascista. Mesmo defendendo o nacionalismo na maioria dos países,
eles compõem o movimento social mais importante (em termos eleitorais) sem
fronteiras de nosso tempo. Altamente organizados pelas versões locais de um
novo partido de massas digital que atua através de uma máquina de propaganda
pervasiva e ostensiva, esse movimento lucra amplamente com a lógica algorítmica
que compõe as redes sociais e transforma a linguagem política atual na
linguagem da publicidade na qual se amparam essas plataformas. Como argumenta
Cathy O’Neil, os algoritmos tornaram-se as novas armas de destruição em massa.
Como a destruição de Hiroshima tornou-se algo que pode ocorrer em qualquer
lugar do mundo após o advento da bomba atômica, o neofascismo político do
Brasil, dos Estados Unidos e da Índia torna-se uma possibilidade muito provável
para outras democracias no mundo após a ascensão das redes sociais. O
neofascismo de plataforma é uma condição mundial.
• Não Redes Sociais na Situação Política,
mas Situação Política nas Redes Sociais
As redes sociais não
são um instrumento; são um conjunto de monopólios. Nunca na história, a
proposta de Marshall McLuhan de que “o meio é a mensagem” foi tão verdadeira. Assim como a bomba
atômica não é uma possibilidade de paz, mas sua própria impossibilidade, as
redes sociais não são uma possibilidade de ampliar a democracia, mas um de seus
principais fatores destrutivos. Os alegados efeitos progressistas que elas
podem ter na política são de longe superados por sua capacidade de erosão
democrática. As redes sociais não são apenas “tecnologia pura”. É uma
tecnologia inserida dentro de uma lógica de plataforma que dita a forma da
nossa sociabilidade atual, mesmo que sejamos levados a acreditar que produzimos
seu conteúdo. Embora isso pareça absolutamente plausível, é enganoso dizer que
as redes sociais existem em nossa situação política. Esta afirmação deve ser
invertida para se tornar verdadeira, como diz Anders sobre a bomba atômica.
Como a situação política hoje é altamente determinada e definida pela existência
das redes sociais – que cercam a esfera pública e o debate político, nossas
formas de interação e subjetivação, a forma como nos informamos (especialmente
as gerações mais jovens, como vemos agora com a campanha bem-sucedida da AfD no
Tik Tok), e a maneira como fazemos política – é preciso reconhecer que as ações
e desenvolvimentos políticos de nossa era estão ocorrendo dentro de uma
situação de redes sociais, de plataformas sociais, não o contrário. O problema
não é apenas o Twitter ou Elon Musk, mas a situação em si. Apesar dos efeitos
catastróficos que essas plataformas têm causado, há uma espécie de consenso
tecnológico que impede qualquer tipo de crítica. Apesar de todas as posições
neofascistas de Elon Musk, ninguém discute o boicote de uma rede como o X – o
maior sucesso dessas empresas foi vender o seu negócio como liberdade de
expressão. Não há acordo sequer sobre sua regulação em círculos de esquerda.
Como argumentei aqui antes, o aparato de plataforma atual realizou o sonho
erótico do anarcocapitalismo. Uma das principais características do capitalismo
digital é eliminar a função mediadora do Estado e das instituições estatais em
múltiplas esferas. As criptomoedas eliminam o papel das regulamentações
financeiras estaduais, as plataformas de trabalho contornam as legislações
trabalhistas e as redes sociais dispensam qualquer e todo controle democrático
sobre o debate político. A chamada tecnologia mais avançada de nossa era não é
nada mais que um Velho Oeste digital, um conto de Mahagonny, onde a política é
feita pelos mais fortes, mais rápidos e mais poderosos, e onde os perdedores
são mais uma vez os subalternos, os povos autóctones, a paisagem natural.
• Não instrumento, mas inimigo: In e
out-groups
Embora propagandeiem
que ultrapassam qualquer fronteira, as redes sociais produzem mais divisões
sociais e políticas do que qualquer outra tecnologia anterior a elas, pois não
são apenas uma tecnologia, mas um monopólio digitalmente controlado de nossas formas
de política. Em suas “Teses,” Günther Anders afirmou que a bomba atômica de
alguma forma desconectou a violência e o ódio, transformando a guerra em um
assunto impessoal. Segundo ele, “como os alvos do ódio artificialmente
fabricado e o alvo dos ataques militares serão totalmente diferentes, a
mentalidade da guerra se tornará realmente esquizofrênica.” As redes sociais
assumiram o papel de reorganizar o ódio (as comunidades incel, os movimentos
digitais neofascistas, as organizações pró-armas e pró-guerra), reconectando as
vítimas do ódio com o ataque militar ou paramilitar a elas. As campanhas
digitais que incitam o genocídio na Palestina, são só um dos muitos exemplos
disso. O ódio nas redes sociais é a face atual da era atômica. Sua lógica
algorítmica se encaixa na dinâmica fascista de “in-groups e out-groups” como
uma luva. Isso impede que a sociedade como um todo perceba que, com a bomba
atômica e a crise climática, “qualquer distinção entre perto e longe, vizinhos
e estrangeiros, tornou-se inválida” e que estamos vinculados não apenas nesta,
mas também nas próximas gerações à ameaça de destruição na qual nossa
existência está enquadrada.
• Gatilhos, cliques e engajamento como
substitutos da ação
De acordo com Anders,
a possibilidade de acionar uma bomba e não assistir aos seus efeitos, a
separação no tempo e no espaço de uma ação e suas consequências, é a versão
hiper-pós-moderna do assassinato disfarçado de trabalho ou cumprimento do dever
no fascismo. Por trás da ideia de “seguir ordens”, novamente, segundo Anders,
esconde-se a isenção do trabalhador de responsabilidade por seus próprios atos,
dos quais “simplesmente não pode ser culpado”. Clicar é como apertar o botão de
uma bomba. Se o ambiente virtual pode de fato dar a sensação de participação
política a pessoas de outra forma excluídas da política, ele também separa a
ação e a sua consequência no espaço e no tempo. Apertar um botão e pressionar
uma tecla são atividades semelhantes agravadas pelo fato de que, no segundo
caso, o caráter virtual da ação faz parecer que suas consequências não são
verdadeiras. Isso é válido tanto para o indivíduo isolado que repassa uma fake
news, como para as fazendas de cliques usadas para disseminar notícias falsas e
eleger governos de extrema direita, bem como para a formação de “in-groups” que
atacam mulheres, pessoas racializadas, LGBTQIA+ e estrangeiros a ponto de
provocar feminicídios, queercídios e até genocídios. O que antes significava
ser politicamente crítico e envolvido, isto é, engajado, agora é uma expressão
que designa nossa participação em um aparato que é político até o cerne, mas
cuja política é coberta por um véu tecnológico. As redes sociais substituem a
ação por um engajamento que impede qualquer ação real enquanto, ao mesmo tempo,
produzem uma forma de política que parece desaparecer no espaço temporal que
separa os cliques e as suas consequências finais. Como Anders afirmou sobre a
bomba atômica, “esta, então, é nossa situação absurda: no exato momento em que
nos tornamos capazes da ação mais monstruosa, a destruição do mundo, as ‘ações’
parecem ter desaparecido. Como a mera existência de nossos produtos já prova
ser ação, a pergunta trivial de como devemos usar nossos produtos para ação é quase
fraudulenta, pois a pergunta obscurece o fato de que os produtos, por sua mera
existência, já agiram”. Em 2024, metade das interações na internet será por e
com bots. Nosso futuro deve ser decidido por isso?*
• Scrolling time e a luta antiapocalíptica
Enquanto a mudança
climática reforça o Endzeit e faz de nosso presente a última era em muitos
sentidos, o tempo que passamos rolando os feeds nos aprisiona na temporalidade
vazia das plataformas das redes sociais, tornando-nos cada vez mais incapazes
de perceber o que produzimos como sociedade, de ouvir o que Anders chamou de “a
voz muda de nossos produtos.” A era da informação se torna a era da ignorância,
e nossa situação como “utópicos invertidos”, isto é, incapazes de ver o que já
fizemos, é combinada com a perda de nossa capacidade de imaginar o que
poderíamos fazer. Para escapar desta situação, devemos primeiro nos perguntar,
sem medo da resposta: existe alguma possibilidade de emancipação dentro deste
aparato e situação? Ser antiapocalíptico, como afirmava Anders, é cultivar a
capacidade de temer as consequências das nossas ações passadas e presentes para
as gerações futuras. Conter o avanço desse aparato sobre a sociedade,
especialmente no Brasil dos próximos anos, é uma tarefa mais que necessária para
barrar a extrema direita que continua firme e forte nessas redes e para
conceber uma política que seja algo mais que mercadoria e publicidade.
Fonte: Por Bruna Della
Torre, no Blog da Boitempo
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