quinta-feira, 29 de agosto de 2024

O problema da economia brasileira não é o “pleno emprego”

O ritmo de crescimento da economia brasileira no pós-crise pandêmica tem surpreendido analistas e consultores. Desde o início do ano, por exemplo, o Relatório Focus, do Banco Central (que capta as expectativas do mercado financeiro sobre o comportamento futuro de alguns indicadores da economia brasileira), tem revisado reiteradamente suas previsões de crescimento econômico para o ano em curso: hoje, as projeções apontam para uma taxa de crescimento de aproximadamente 2,23%, contra 1,59% das realizadas no início do ano.

Como consequência do maior dinamismo econômico, a taxa de desocupação tem diminuído de forma consistente: após atingir um pico de 14,9%, no primeiro trimestre de 2021, iniciou-se um movimento de queda praticamente ininterrupto, com o segundo trimestre de 2024 apresentando uma taxa de desocupação de 6,9%, uma das mais baixas da série histórica da PNAD Contínua, do IBGE, iniciada em 2012.

Diante desse cenário, os principais veículos de comunicação do país têm reverberado as preocupações do mercado financeiro com o retorno de uma situação próxima do “pleno emprego” e seus inevitáveis impactos inflacionários. Diante desse diagnóstico questionável, defendem a manutenção de juros elevados e a austeridade da política fiscal. Em editorial de 19 de agosto, o jornal Folha de S.Paulo alertou: “Atividade em alta é boa notícia, mas há riscos”. O subtítulo diz: “Combinada à escalada do gasto público, expansão do emprego e da renda alimenta inflação; é preciso sinal de austeridade para evitar mais juros”. No dia anterior, o jornal O Globo trouxe a matéria intitulada: “Há vagas: desemprego baixo eleva salários, mas empresas de alguns setores não conseguem contratar”. O subtítulo deixava o alerta: “Taxa é a mais baixa da série histórica. Especialistas esperam que caia para perto de 6%, patamar considerado inferior ao pleno emprego, o que tende a elevar salários e pressionar a inflação”. Esse discurso não é novidade. Na véspera do 1º de Maio, a CNN Brasil já tinha repercutido as preocupações do presidente do Banco Central: “Campos Neto diz que emprego pleno no Brasil é ‘grande surpresa’ e alerta sobre pressão inflacionária”.

Historicamente, o discurso também não é novo. No ano de 2015, foi apregoado que o país estava numa situação de “pleno emprego”, em função da Taxa de Desocupação estimada para 2014 – 4,8%, segundo os dados da Pesquisa Mensal de Emprego (PME), do IBGE – ter atingido a menor taxa média anual da série histórica estabelecida a partir do ano de 2003. Na época, praticamente não se mencionava que a cobertura da PME era de tão somente seis regiões metropolitanas (Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre), o correspondente a apenas 25% da População Economicamente Ativa (PEA) nacional. No mesmo ano, ao divulgar os resultados de 2014 já com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-C) – que substituiu a PME e tem cobertura nacional – o IBGE apontou para uma taxa de desocupação significativamente mais alta, de 7,0%.

Mas, afinal, é possível afirmar que há, atualmente, pleno emprego no Brasil? Entendemos que é preciso uma reflexão mais cuidadosa e qualificada sobre o assunto, no sentido de ponderar em que medida o conceito de “pleno emprego” é aderente à atual conjuntura econômica. Cumpre destacar que o conceito de pleno emprego foi criado nos países desenvolvidos num contexto econômico distinto do nosso, no qual havia mobilidade de trabalhadores de segmentos de baixa para os de alta produtividade (e, portanto, redução da informalidade) acompanhada de um estreitamento do leque salarial. Nesse cenário, a ideia de pleno emprego surge como uma situação em que não há desperdício de recursos produtivos, ou seja, a economia utiliza todo o capital e a mão de obra disponível, em níveis de produtividade tidos como elevados. O desemprego existente, em níveis reduzidos, é apenas aquele avaliado como friccional (desajuste momentâneo entre oferta e demanda de força de trabalho).

Ademais, a Convenção sobre Política de Emprego Nº. 122, de 1964, da OIT – ratificada pelo Brasil em 1969 – evidencia no seu Artigo 1º o ideário de que o pleno emprego deve contemplar a melhoria das condições de vida e de trabalho da população trabalhadora:

“Com vista a estimular o crescimento e desenvolvimento econômico, elevar os níveis de vida, corresponder às necessidades de mão-de-obra e resolver o problema do desemprego e do subemprego, cada Membro deverá declarar e aplicar, como objetivo essencial, uma política ativa com vista a promover o pleno emprego, produtivo e livremente escolhido”.

Em 1999, ao completar 80 anos de existência e ciente de que apenas a obtenção de um emprego (ou oportunidade de trabalho, numa acepção mais ampla) não assegurava dignidade aos trabalhadores e trabalhadoras, a OIT formalizou o conceito de Trabalho Decente como uma síntese da sua missão histórica de promover oportunidades para que homens e mulheres obtenham um trabalho produtivo e de qualidade, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humanas. O Trabalho Decente é o ponto de convergência dos quatro objetivos estratégicos da OIT (o respeito aos direitos no trabalho, a promoção do emprego, a extensão da proteção social e o fortalecimento do diálogo social), e condição fundamental para a superação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável.

Diante deste contexto, é preciso considerar que o mercado de trabalho brasileiro se caracteriza por altos níveis de heterogeneidade e de flexibilidade, que sancionam uma distribuição profundamente desigual dos ganhos de produtividade e do acesso à proteção social, reflexo de uma heterogeneidade estrutural herdada do nosso subdesenvolvimento. No mercado de trabalho brasileiro há uma miríade de inserções ocupacionais associadas a segmentos da atividade econômica de baixíssima produtividade, com trabalhadores que se submetem a elevados graus de precariedade e remuneração insuficiente.

Apenas a título ilustrativo, cabe referir que, atualmente, segundo a CEPAL, cerca de 40% da população urbana brasileira se encontra ocupada em empregos de baixa produtividade. A Taxa de Informalidade da população ocupada medida pelo IBGE por intermédio da PNAD-C apresenta elevada rigidez e vem se mantendo entre 38,3% e 40,9% desde 2016 (com exceção do percentual de 36,5% assinalado durante o trimestre móvel de abril a junho de 2020, por conta das especificidades decorrentes do começo da pandemia de Covid-19), situando-se atualmente em 38,6%. Além disso, a taxa de subutilização da força de trabalho (que agrupa além dos trabalhadores desocupados, os subocupados por insuficiência de horas trabalhadas e a força de trabalho potencial) atualmente é estimada, pelo IBGE, em 16,4%. Por fim, segundo os dados do novo CAGED do Ministério do Trabalho e Emprego, entre junho de 2022 e junho de 2024, o salário médio real de admissão do emprego celetista vem sendo sistematicamente menor do que o salário de desligamento, sendo que em junho de 2024 foi quase 5% inferior (R$ 2.133 versus R$ 2.236). É possível, então, falar em “pleno emprego”? Observando os principais indicadores da evolução recente do mercado de trabalho brasileiro, a resposta é negativa, ainda que algumas empresas reclamem da escassez de candidatos para as vagas ofertadas.

Concluindo, além de ser equivocado associar a conjuntura econômica brasileira atual a uma situação de “pleno emprego”, é ainda menos correto apontar as baixas taxas de desocupação como causa principal da inflação atual. Pelo contrário, é importante trazer ao primeiro plano dessa discussão outros elementos, como a permissividade da política cambial, que permitiu uma forte desvalorização do câmbio, e seus impactos inflacionários, e ressaltar que o problema para a maioria das empresas (principalmente as de pequeno e médio porte, que são as maiores responsáveis pela geração de empregos) não é o aumento do custo do trabalho, mas sim o elevado custo financeiro para capital de giro causado pelas altas taxas de juros praticadas no país.

 

•        Austeridade, uma serva da ordem do capital. Por Raíssa Araújo Pacheco

Pensar que a guerra em Gaza é uma aberração irracional da história humana pode parecer um caminho preferível, direcionando a culpa para alguma expressão inexplicável do ser humano. Porém, sabemos que essa consideração estaria errada.

O que acontece ao povo palestino é a mais pura e crua manifestação dos princípios lógicos do sistema que rege nossa sociedade. Ou mudamos as coisas agora, ou esse será o destino da humanidade. É o que enfatiza a professora de economia Clara Mattei.

Em seu mais recente livro, A ordem do capital: como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo, publicado pela Boitempo, a autora esmiúça vários argumentos centrais que moldam a lógica do sistema capitalista, oferecendo uma perspectiva renovada da economia política e do capitalismo de nosso tempo.

Com tradução de Heci Regina Candiani, texto de orelha de Luís Nassif, capa de Maikon Nery e apoio da Fundação Perseu Abramo, a obra analisa o papel do Estado na economia, fundamentando-se em uma abordagem influenciada pela teoria crítica marxista: a crítica do valor. Contudo, há uma visão atualizada sobre como o valor é produzido na contemporaneidade.

A partir de sua ampla e rigorosa investigação de dados de crescimento e decrescimento econômico e de como o valor é produzido e reproduzido nas relações de trabalho e nas trocas de mercado, Mattei defende que este é um conceito central para entender a dinâmica do capital.

Sua argumentação ressalta que o neoliberalismo não é apenas uma política econômica, mas uma forma de reorganizar a sociedade e a economia em torno da lógica do mercado. A guerra é uma consequência sistêmica necessária a essa organização.

O escrito é dividido em duas partes. Na primeira, “Guerra e crise”, Mattei desenvolve seu argumento de como as duas Grandes Guerras e as crises que permearam o século XX abriram terreno para a nova ordem econômica ditada pelo neoliberalismo.

A segunda toma mais páginas e é inteiramente dedicada à questão da austeridade. Começando pela sua “criação” engendrada por tecnocratas internacionais, passando por seus exemplos históricos, com foco na Inglaterra e na Itália – e como em ambos os casos, tal processo abriu veredas para o fascismo –, finalizando com uma demonstração dos cases de “sucesso” da austeridade, ou melhor dizendo, como tais políticas salvaram economias capitalistas quando estas estavam em crise. O resultado: fortalecimento das opressões de classe e desigualdade econômica – a “verdadeira medida de eficácia” da austeridade, como defende a autora.

No entanto, também são vários os exemplos de fracassos das políticas de austeridade, a Grande Depressão, ocorrida na década de 1930, como também a elevação das taxas de juro na Argentina em 2002, após sucessivas crises políticas e econômicas.

Os efeitos desses sucessos e fracassos são vistos nas ruas, com as revoltas e manifestações populares, tanto por melhores condições de trabalho, quanto por melhores condições socioeconômicas.

Seguindo seu argumento, a professora defende que por trás dos objetivos de “salvar a economia”, a austeridade tem um motivo muito mais insidioso: barrar os avanços das conquistas trabalhistas. Lançando uma contra ofensiva que busca salvar o capitalismo e suas relações de produção.

A austeridade é a tônica das governanças alinhadas ao capital, aprofundando desigualdades e precarizando as condições de trabalho. Através de seu estudo profundo e interdisciplinar, Mattei escancara a relação entre austeridade e ascensão do fascismo.

Além disso, a brochura faz uma revisão do neoliberalismo e suas consequências. Enquanto muitos trabalhos discutem o neoliberalismo em termos econômicos e políticos, Mattei analisa como essas políticas transformaram e precarizaram as condições de trabalho e sociais, aprofundando a desigualdade e a exploração.

Uma miríade de ferramentas teóricas são utilizadas para destrinchar como as dinâmicas do capital se manifestam em diferentes esferas da vida econômica e social. Sendo notável a abordagem interdisciplinar da obra, que combina teoria econômica, crítica social e análise política.

Longe de se restringir apenas à crítica, a professora apresenta uma série de alternativas possíveis ao fim do mundo, como a economia solidária e a experimentação de modelos alternativos econômicos que não se baseiem exclusivamente na lógica do mercado, além de priorizarem o bem-estar humano e ambiental, ao invés do crescimento econômico a todo custo.

Uma reforma significativa nas relações de trabalho para combater a precarização e melhorar as condições de trabalho; a integração de preocupações ambientais nas políticas econômicas e a transição para práticas sustentáveis; além da participação democrática nas decisões econômicas e uma economia mais transparente e participativa, também são soluções exploradas para a criação de um futuro mais equilibrado e justo.

 

Fonte: Por Tiago Oliveira, Marcelo Weishaupt Proni e José Ribeiro Guimarães, no Le Monde/Blog da Boitempo

 

 

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