O problema da economia brasileira não é o
“pleno emprego”
O ritmo de crescimento
da economia brasileira no pós-crise pandêmica tem surpreendido analistas e
consultores. Desde o início do ano, por exemplo, o Relatório Focus, do Banco
Central (que capta as expectativas do mercado financeiro sobre o comportamento futuro
de alguns indicadores da economia brasileira), tem revisado reiteradamente suas
previsões de crescimento econômico para o ano em curso: hoje, as projeções
apontam para uma taxa de crescimento de aproximadamente 2,23%, contra 1,59% das
realizadas no início do ano.
Como consequência do
maior dinamismo econômico, a taxa de desocupação tem diminuído de forma
consistente: após atingir um pico de 14,9%, no primeiro trimestre de 2021,
iniciou-se um movimento de queda praticamente ininterrupto, com o segundo
trimestre de 2024 apresentando uma taxa de desocupação de 6,9%, uma das mais
baixas da série histórica da PNAD Contínua, do IBGE, iniciada em 2012.
Diante desse cenário,
os principais veículos de comunicação do país têm reverberado as preocupações
do mercado financeiro com o retorno de uma situação próxima do “pleno emprego”
e seus inevitáveis impactos inflacionários. Diante desse diagnóstico questionável,
defendem a manutenção de juros elevados e a austeridade da política fiscal. Em
editorial de 19 de agosto, o jornal Folha de S.Paulo alertou: “Atividade em
alta é boa notícia, mas há riscos”. O subtítulo diz: “Combinada à escalada do
gasto público, expansão do emprego e da renda alimenta inflação; é preciso
sinal de austeridade para evitar mais juros”. No dia anterior, o jornal O Globo
trouxe a matéria intitulada: “Há vagas: desemprego baixo eleva salários, mas
empresas de alguns setores não conseguem contratar”. O subtítulo deixava o
alerta: “Taxa é a mais baixa da série histórica. Especialistas esperam que caia
para perto de 6%, patamar considerado inferior ao pleno emprego, o que tende a
elevar salários e pressionar a inflação”. Esse discurso não é novidade. Na
véspera do 1º de Maio, a CNN Brasil já tinha repercutido as preocupações do
presidente do Banco Central: “Campos Neto diz que emprego pleno no Brasil é
‘grande surpresa’ e alerta sobre pressão inflacionária”.
Historicamente, o
discurso também não é novo. No ano de 2015, foi apregoado que o país estava
numa situação de “pleno emprego”, em função da Taxa de Desocupação estimada
para 2014 – 4,8%, segundo os dados da Pesquisa Mensal de Emprego (PME), do IBGE
– ter atingido a menor taxa média anual da série histórica estabelecida a
partir do ano de 2003. Na época, praticamente não se mencionava que a cobertura
da PME era de tão somente seis regiões metropolitanas (Recife, Salvador, Belo
Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre), o correspondente a apenas
25% da População Economicamente Ativa (PEA) nacional. No mesmo ano, ao divulgar
os resultados de 2014 já com base na Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios Contínua (PNAD-C) – que substituiu a PME e tem cobertura nacional –
o IBGE apontou para uma taxa de desocupação significativamente mais alta, de
7,0%.
Mas, afinal, é
possível afirmar que há, atualmente, pleno emprego no Brasil? Entendemos que é
preciso uma reflexão mais cuidadosa e qualificada sobre o assunto, no sentido
de ponderar em que medida o conceito de “pleno emprego” é aderente à atual
conjuntura econômica. Cumpre destacar que o conceito de pleno emprego foi
criado nos países desenvolvidos num contexto econômico distinto do nosso, no
qual havia mobilidade de trabalhadores de segmentos de baixa para os de alta
produtividade (e, portanto, redução da informalidade) acompanhada de um
estreitamento do leque salarial. Nesse cenário, a ideia de pleno emprego surge
como uma situação em que não há desperdício de recursos produtivos, ou seja, a
economia utiliza todo o capital e a mão de obra disponível, em níveis de
produtividade tidos como elevados. O desemprego existente, em níveis reduzidos,
é apenas aquele avaliado como friccional (desajuste momentâneo entre oferta e
demanda de força de trabalho).
Ademais, a Convenção
sobre Política de Emprego Nº. 122, de 1964, da OIT – ratificada pelo Brasil em
1969 – evidencia no seu Artigo 1º o ideário de que o pleno emprego deve
contemplar a melhoria das condições de vida e de trabalho da população
trabalhadora:
“Com vista a estimular
o crescimento e desenvolvimento econômico, elevar os níveis de vida,
corresponder às necessidades de mão-de-obra e resolver o problema do desemprego
e do subemprego, cada Membro deverá declarar e aplicar, como objetivo
essencial, uma política ativa com vista a promover o pleno emprego, produtivo e
livremente escolhido”.
Em 1999, ao completar
80 anos de existência e ciente de que apenas a obtenção de um emprego (ou
oportunidade de trabalho, numa acepção mais ampla) não assegurava dignidade aos
trabalhadores e trabalhadoras, a OIT formalizou o conceito de Trabalho Decente
como uma síntese da sua missão histórica de promover oportunidades para que
homens e mulheres obtenham um trabalho produtivo e de qualidade, em condições
de liberdade, equidade, segurança e dignidade humanas. O Trabalho Decente é o
ponto de convergência dos quatro objetivos estratégicos da OIT (o respeito aos
direitos no trabalho, a promoção do emprego, a extensão da proteção social e o
fortalecimento do diálogo social), e condição fundamental para a superação da
pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabilidade
democrática e o desenvolvimento sustentável.
Diante deste contexto,
é preciso considerar que o mercado de trabalho brasileiro se caracteriza por
altos níveis de heterogeneidade e de flexibilidade, que sancionam uma
distribuição profundamente desigual dos ganhos de produtividade e do acesso à
proteção social, reflexo de uma heterogeneidade estrutural herdada do nosso
subdesenvolvimento. No mercado de trabalho brasileiro há uma miríade de
inserções ocupacionais associadas a segmentos da atividade econômica de
baixíssima produtividade, com trabalhadores que se submetem a elevados graus de
precariedade e remuneração insuficiente.
Apenas a título
ilustrativo, cabe referir que, atualmente, segundo a CEPAL, cerca de 40% da
população urbana brasileira se encontra ocupada em empregos de baixa
produtividade. A Taxa de Informalidade da população ocupada medida pelo IBGE
por intermédio da PNAD-C apresenta elevada rigidez e vem se mantendo entre
38,3% e 40,9% desde 2016 (com exceção do percentual de 36,5% assinalado durante
o trimestre móvel de abril a junho de 2020, por conta das especificidades
decorrentes do começo da pandemia de Covid-19), situando-se atualmente em
38,6%. Além disso, a taxa de subutilização da força de trabalho (que agrupa
além dos trabalhadores desocupados, os subocupados por insuficiência de horas
trabalhadas e a força de trabalho potencial) atualmente é estimada, pelo IBGE,
em 16,4%. Por fim, segundo os dados do novo CAGED do Ministério do Trabalho e
Emprego, entre junho de 2022 e junho de 2024, o salário médio real de admissão
do emprego celetista vem sendo sistematicamente menor do que o salário de
desligamento, sendo que em junho de 2024 foi quase 5% inferior (R$ 2.133 versus
R$ 2.236). É possível, então, falar em “pleno emprego”? Observando os
principais indicadores da evolução recente do mercado de trabalho brasileiro, a
resposta é negativa, ainda que algumas empresas reclamem da escassez de
candidatos para as vagas ofertadas.
Concluindo, além de
ser equivocado associar a conjuntura econômica brasileira atual a uma situação
de “pleno emprego”, é ainda menos correto apontar as baixas taxas de
desocupação como causa principal da inflação atual. Pelo contrário, é
importante trazer ao primeiro plano dessa discussão outros elementos, como a
permissividade da política cambial, que permitiu uma forte desvalorização do
câmbio, e seus impactos inflacionários, e ressaltar que o problema para a
maioria das empresas (principalmente as de pequeno e médio porte, que são as
maiores responsáveis pela geração de empregos) não é o aumento do custo do
trabalho, mas sim o elevado custo financeiro para capital de giro causado pelas
altas taxas de juros praticadas no país.
• Austeridade, uma serva da ordem do
capital. Por Raíssa Araújo Pacheco
Pensar que a guerra em
Gaza é uma aberração irracional da história humana pode parecer um caminho
preferível, direcionando a culpa para alguma expressão inexplicável do ser
humano. Porém, sabemos que essa consideração estaria errada.
O que acontece ao povo
palestino é a mais pura e crua manifestação dos princípios lógicos do sistema
que rege nossa sociedade. Ou mudamos as coisas agora, ou esse será o destino da
humanidade. É o que enfatiza a professora de economia Clara Mattei.
Em seu mais recente
livro, A ordem do capital: como economistas inventaram a austeridade e abriram
caminho para o fascismo, publicado pela Boitempo, a autora esmiúça vários
argumentos centrais que moldam a lógica do sistema capitalista, oferecendo uma
perspectiva renovada da economia política e do capitalismo de nosso tempo.
Com tradução de Heci
Regina Candiani, texto de orelha de Luís Nassif, capa de Maikon Nery e apoio da
Fundação Perseu Abramo, a obra analisa o papel do Estado na economia,
fundamentando-se em uma abordagem influenciada pela teoria crítica marxista: a
crítica do valor. Contudo, há uma visão atualizada sobre como o valor é
produzido na contemporaneidade.
A partir de sua ampla
e rigorosa investigação de dados de crescimento e decrescimento econômico e de
como o valor é produzido e reproduzido nas relações de trabalho e nas trocas de
mercado, Mattei defende que este é um conceito central para entender a dinâmica
do capital.
Sua argumentação
ressalta que o neoliberalismo não é apenas uma política econômica, mas uma
forma de reorganizar a sociedade e a economia em torno da lógica do mercado. A
guerra é uma consequência sistêmica necessária a essa organização.
O escrito é dividido
em duas partes. Na primeira, “Guerra e crise”, Mattei desenvolve seu argumento
de como as duas Grandes Guerras e as crises que permearam o século XX abriram
terreno para a nova ordem econômica ditada pelo neoliberalismo.
A segunda toma mais
páginas e é inteiramente dedicada à questão da austeridade. Começando pela sua
“criação” engendrada por tecnocratas internacionais, passando por seus exemplos
históricos, com foco na Inglaterra e na Itália – e como em ambos os casos, tal
processo abriu veredas para o fascismo –, finalizando com uma demonstração dos
cases de “sucesso” da austeridade, ou melhor dizendo, como tais políticas
salvaram economias capitalistas quando estas estavam em crise. O resultado:
fortalecimento das opressões de classe e desigualdade econômica – a “verdadeira
medida de eficácia” da austeridade, como defende a autora.
No entanto, também são
vários os exemplos de fracassos das políticas de austeridade, a Grande
Depressão, ocorrida na década de 1930, como também a elevação das taxas de juro
na Argentina em 2002, após sucessivas crises políticas e econômicas.
Os efeitos desses
sucessos e fracassos são vistos nas ruas, com as revoltas e manifestações
populares, tanto por melhores condições de trabalho, quanto por melhores
condições socioeconômicas.
Seguindo seu
argumento, a professora defende que por trás dos objetivos de “salvar a
economia”, a austeridade tem um motivo muito mais insidioso: barrar os avanços
das conquistas trabalhistas. Lançando uma contra ofensiva que busca salvar o
capitalismo e suas relações de produção.
A austeridade é a
tônica das governanças alinhadas ao capital, aprofundando desigualdades e
precarizando as condições de trabalho. Através de seu estudo profundo e
interdisciplinar, Mattei escancara a relação entre austeridade e ascensão do
fascismo.
Além disso, a brochura
faz uma revisão do neoliberalismo e suas consequências. Enquanto muitos
trabalhos discutem o neoliberalismo em termos econômicos e políticos, Mattei
analisa como essas políticas transformaram e precarizaram as condições de
trabalho e sociais, aprofundando a desigualdade e a exploração.
Uma miríade de
ferramentas teóricas são utilizadas para destrinchar como as dinâmicas do
capital se manifestam em diferentes esferas da vida econômica e social. Sendo
notável a abordagem interdisciplinar da obra, que combina teoria econômica,
crítica social e análise política.
Longe de se restringir
apenas à crítica, a professora apresenta uma série de alternativas possíveis ao
fim do mundo, como a economia solidária e a experimentação de modelos
alternativos econômicos que não se baseiem exclusivamente na lógica do mercado,
além de priorizarem o bem-estar humano e ambiental, ao invés do crescimento
econômico a todo custo.
Uma reforma
significativa nas relações de trabalho para combater a precarização e melhorar
as condições de trabalho; a integração de preocupações ambientais nas políticas
econômicas e a transição para práticas sustentáveis; além da participação
democrática nas decisões econômicas e uma economia mais transparente e
participativa, também são soluções exploradas para a criação de um futuro mais
equilibrado e justo.
Fonte: Por Tiago
Oliveira, Marcelo Weishaupt Proni e José Ribeiro Guimarães, no Le Monde/Blog da
Boitempo
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