Lei da Anistia: 45 anos depois, ainda dá
tempo de punir criminosos da ditadura se houver revisão?
Promulgada em plena
ditadura militar, em 1976, a Lei nº 6.683, mais conhecida como Lei da Anistia,
completa 45 anos nesta quarta-feira (28).
A lei foi responsável
por libertar mais de 100 presos políticos e possibilitou a volta de mais de 2
mil exilados para o Brasil. Ao mesmo tempo, concedeu perdão a torturadores e
assassinos a mando do Estado.
Sancionada pelo último
ditador do período, João Figueiredo, a lei anistiou autores de crimes políticos
e conexos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Em 2010, o
Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que a lei é válida também para agentes
estatais, por ter sido fruto de um consenso no período de redemocratização do
país.
O relatório final da
Comissão Nacional da Verdade (CNV), elaborado em 2014, pediu a revisão da Lei
da Anistia. O documento lista 377 pessoas como responsáveis por assassinatos e
torturas, 210 desaparecidos e 191 mortos no período.
Também em 2014 foi
protocolada no STF a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)
320, proposta pelo PSOL, que pede reconhecimento da Corte de que a Lei de
Anistia não aplica regras e princípios de direito internacional que estabelecem
que os crimes contra a humanidade são imprescritíveis e não podem ser objeto de
anistia conferida pelo próprio Estado ofensor.
Em abril deste ano, o
ministro Dias Toffoli sinalizou realizar audiências públicas sobre a ADPF 320
ainda no segundo semestre deste ano, após se reunir com integrantes do
Instituto Vladimir Herzog. Entretanto, até o momento, não há sinais da Corte de
"desengavetar" a ação.
Para o professor de
teoria da história da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Iuri Cavlak,
já não há tempo hábil para prender e condenar agentes diretos e fazê-los pagar
pelos crimes cometidos. Em entrevista à Sputnik Brasil, o historiador opinou
que nem Congresso nem STF têm interesse ou força para tal reversão:
"Temos um
Congresso que a cada quatro anos tem se tornado mais e mais conservador, e um
STF assoberbado por demandas de todas as partes […]. Mexer nos problemas
centrais da lei, acho difícil. A não ser em itens que não afetem diretamente
privilégios estabelecidos […]. O problema é o de sempre, a correlação política,
atualmente bastante favorável para os que perpetraram crimes na última
ditadura", acrescentou Cavlak.
Ele ponderou, no
entanto, que nunca é tarde para condenações póstumas, reconhecimentos ou
indenizações.
Já a historiadora e
professora Roberta Baltar disse à Sputnik Brasil que, apesar do contexto
político para uma revisão da Lei de Anistia no Congresso ser complexo, o STF
pode desempenhar um papel relevante nesse sentido:
"A lei, em sua
interpretação atual, impede a punição de agentes de Estado por crimes contra a
humanidade, o que contraria o direito internacional e impede a completa
reparação das vítimas e seus familiares […]. O STF, ao julgar a ADPF 320, pode
declarar a inconstitucionalidade da interpretação que impede a punição de
agentes de Estado por crimes contra a humanidade, abrindo caminho para a
responsabilização desses agentes."
Assim como Cavlak, ela
também argumentou que a busca por justiça e a revisão da Lei de Anistia não tem
prazo: "Enquanto houver vítimas e familiares buscando reparação e a
sociedade demandando a responsabilização dos agentes de Estado, a oportunidade
de revisão da lei existirá", frisou Baltar.
O Brasil ratificou uma
série de marcos legais que determinam que crimes de tortura e desaparecimento
de presos e opositores políticos, praticados por agentes do Estado, devem ser
investigados e os agentes punidos, como a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, o Estatuto de Roma, a Convenção de Genebra de 1949, entre outros.
• Reinstalação da Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidos Políticos
Instituída pela Lei nº
9.140/1995, a comissão foi criada para reconhecer pessoas desaparecidas que
tenham participado ou foram acusadas de participar de atividades políticas no
período entre 1961 e 1988. Fruto de uma demanda da sociedade civil, o colegiado
será reinstalado nesta sexta-feira (30), após ter sido encerrado pelo governo
anterior, de Jair Bolsonaro.
O historiador destacou
que a reinstalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos
pode contribuir para que lacunas deixadas pela lei sejam sanadas:
"Ainda se
descobre Brasil afora covas onde jazem os restos mortais de desaparecidos. Pode
ajudar na aceleração da identificação e no encontro de novos sítios. Isso é
importantíssimo para as famílias que ainda procuram o paradeiro de seus
entes", ressaltou Cavlak.
A falta de punição de
torturadores e criminosos da ditadura contribui para movimentos golpistas do
presente e a popularidade de políticos com discursos fascistas, defendeu o
especialista:
"Isso se mostrou,
inclusive, em relação ao golpe de 1964. Tivemos uma ditadura entre 1937 e 1945,
com torturas de presos políticos nas cadeias do Estado, sem punição a quem quer
que seja. Deu no que deu", opinou Cavlak, em alusão aos planos de golpe
discutidos por integrantes do Exército e do governo do ex-presidente Jair
Bolsonaro em 2022 e ao ataque às sedes dos três Poderes em 8 de janeiro de
2023.
A punição de agentes
de Estado que cometeram crimes de lesa-humanidade tem caráter educativo e de
promoção da cidadania, defenderam os entrevistados, ao não naturalizar e deixar
impune essas violações de direitos humanos e violência.
• Lei da Anistia, história intensa e
memória curta
No dia 28 de agosto de
1979, o general João Baptista Figueiredo, último “presidente” da ditadura
civil-militar divulgou no DOU / Diário Oficial da União, a Lei nº 6.683, que
trata de anistia.
Já em seu Artigo 1º, a
lei conhecida como Lei de Anistia enunciava de maneira direta: “É concedida
anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e
15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes
eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores
da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público,
aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos
dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos
Institucionais e Complementares”.
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A Lei de Anistia foi
fruto de uma longa luta dos mais diversos setores da sociedade brasileira
contra o golpe civil-militar de 1964 e foi a primeira grande vitória das forças
de oposição que conseguirão por fim ao longo período ditatorial, com a promulgação,
em 5 de outubro de 1988, da nova Constituição Federal.
O Golpe Militar de
primeiro de abril de 1964 encontrou, desde o início, resistência de grupos
políticos e movimentos sociais que reivindicavam o retorno ao Estado de uma
ordem democrática. A repressão foi direta e dura sobre o movimento operário,
que reagiu ao golpe com greves e manifestações. O governo militar também
respondeu às manifestações, com cassações de mandatos parlamentares e de
direitos políticos, com demissões arbitrárias de servidores públicos, de
professores, com as prisões de militantes políticos e sindicais.
Outra importante
frente de resistência contra a ditadura foi a dos estudantes, que nos primeiros
meses de 1968 lutaram contra a ditadura e as reformas educacionais, que
resultariam na degradação atual do ensino público brasileiro. O principal
estopim da luta estudantil teve início em 28 de março de 1968 no Rio de
Janeiro, com a invasão policial ao restaurante escolar do Calabouço, que
resultou no assassinato do estudante Edson Luís de Lima Souto, morto pelo
tenente-comandante do batalhão motorizado da PM, com um tiro de pistola no
coração. No dia seguinte, apesar das ameaças dos ditadores, 50 mil pessoas
protestaram no centro do Rio de Janeiro contra o assassinato do estudante de 16
anos.
No entanto, a resposta
popular mais contundente veio em 26 de junho de 1968: 100 mil pessoas
caminharam por mais de sete horas, em uma passeata de protesto que reuniu mães,
padres, estudantes, artistas e intelectuais contra a repressão, a censura e
outros atos ditatoriais. Os jornais disseram que o movimento não registrou
nenhum incidente distúrbio. A enorme concentração começou na Cinelândia às dez
e meia da manhã e terminou na praça 15 de Novembro.
Em 13 de dezembro de
1968, foi decretado o Ato Institucional n° 5, que representou brutal
radicalização da política repressiva dos militares. A forte censura dos meios
de comunicação e as ações de vigilância e repressão social se intensificaram
com o AI-5, mas não impediram que militantes políticos, sindicais, artistas,
jornalistas, religiosos, juristas e organizações civis pelos direitos humanos
fizessem constantes denúncias contra os militares, acusando perseguições,
prisões, torturas e desaparecimento de pessoas.
Em um Congresso
Nacional dominado pela Aliança Renovadora Nacional (ARENA), que era o braço
político da ditadura, os deputados e senadores do Movimento Democrático
Brasileiro (MDB) empenharam uma longa, árdua e arriscada luta pedindo a
redemocratização do país e a anistia política dos perseguidos e exilados.
Muitos “medebistas” eram históricos militantes de partidos cassados pelo golpe,
que se abrigaram no MDB até ocorrer nos anos 1980, o fim do bipartidarismo.
Outro núcleo de
resistência que ocorreu com mais intensidade entre 1965 e 1973, veio das
guerrilhas urbanas e rurais, movimentos de resistência com orientação
socialista. Também foi fundamental a luta da Associação Brasileira de Imprensa
– ABI, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB e do proscrito
movimento sindical, que travou no final dos anos 1970, intensa luta contra o
modelo econômico e político dos governos militares.
A partir de 1975
ocorreram alguns eventos repressivos trágicos, que tiveram forte divulgação e
mobilizaram a opinião pública nacional e internacional contra a ditadura
brasileira. O mais emblemático foi o assassinato de Vladimir Herzog, diretor do
Departamento de Jornalismo da TV Cultura de São Paulo, no dia 25 de outubro de
1975, durante uma brutal sessão de eletrochoques, no DOI-CODI da capital
paulista.
O ato ecumênico na
Catedral da Sé, realizado no sétimo dia da morte de Vladimir Herzog foi a
primeira grande manifestação pública de protesto contra a ditadura militar
desde o AI-5. O ato reuniu milhares de pessoas dentro e fora da igreja, mesmo
com intensa vigilância dos agentes de repressão.
A publicação do Diário
Oficial da União, que permitiu que tantos perseguidos pela Ditadura Militar
pudessem sair da clandestinidade ou voltar do exílio, foi episódio decisivo
para a redemocratização do Brasil, que ocorreria formalmente em 1985 com a derrota
do candidato dos militares no Colégio eleitoral e depois a aprovação da
Assembleia Nacional Constituinte e a elaboração da nova Constituição Federal
promulgada em 5 de outubro de 1988.
Portanto, o dia 28 de
agosto deveria ser um dia para ser relembrado em grandes reportagens, em
matérias detalhadas, em depoimentos de personagens significativos da época;
merecia até um pronunciamento em cadeia nacional. Deveria ser feriado, dia de
celebração, de reflexão em escolas e instituições públicas.
No entanto, é motivo
de manifestações isoladas de velhos militantes, de burocráticas notinhas de
redação em veículos sem disposição para relembrar qualquer coisa cívica ou
socialmente relevante. Enquanto isto, seguimos dizendo que as novas gerações
não sabem de nada e não respeitam ninguém. Até agora, a vida me ensinou que os
mais novos vão repetir de modo pior, os hábitos dos mais velhos e a cultura
autoritária e alienada que eles receberam durante a criação.
Fonte: Sputnik
Brasil/Diálogos do Sul
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