Os ilustradores que já têm empregos e
criações 'roubados' por IA: 'Medo de não conseguir me sustentar'
A conversa que a
ilustradora Lúcia Lemos, de 30 anos, teve com um antigo cliente ainda ecoa na
sua cabeça.
"Ele me disse
que, por melhor que eu fosse, não valia mais a pena contratar meu
trabalho", lembra Lúcia.
"Ele falou: 'eu
te contrato, e você demora uma semana para fazer um desenho [para um
livro], agora, eu digito uma linha de código e consigo 20 desenhos na hora com
a inteligência artificial."
A concorrência
"desleal" tem afetado a renda da ilustradora carioca
consideravelmente.
Em 2021, no melhor mês
de sua carreira, ela conta que chegou a faturar R$ 7 mil —uma renda que, somada
à do marido programador, conseguia manter bem a casa dos dois no Rio de
Janeiro.
Quando a BBC News
Brasil conversou com Lúcia, a expectativa dela era ganhar menos de R$ 300 no
mês com os trabalhos encomendados.
O exemplo de Lúcia e o
relato de outros profissionais mostram que os ilustradores são um dos grupos de
profissionais da indústria criativa que estão na linha de frente do impacto da
popularização da inteligência artificial (IA) generativa, aquela que cria novos conteúdos, como texto, imagens, música,
áudio e vídeos, a partir de um banco de dados.
"A gente já está
perdendo emprego, tendo nosso trabalho roubado para treinar essas
ferramentas", reclama Lúcia, que tem reunido relatos de outros
profissionais que, como ela, precisaram migrar de área ou atuação.
O diretor criativo e
ilustrador Wagner Loud, de 33 anos, conta que tem ouvido o mesmo de ex-colegas
de trabalho em São Paulo. Em algumas empresas, diz ele, setores de ilustração
já foram fechados ou reduzidos ao mínimo.
"Quem antes
sentava e pensava em uma arte, com ideias novas, agora senta e coloca
palavras-chave no sistema para gerar um desenho novo. Isso é triste",
comenta Wagner.
A situação alarmante
tem levado à criação de grupos de artistas que discutem o novo cenário e
propõem buscar saídas por meio de propostas de lei.
A cantora e
compositora Marisa Monte é uma das que tem usado sua voz para dar visibilidade
à causa dos artistas, especialmente músicos.
Ela participou de uma sessão na
comissão do Senado que discute o projeto de lei que regulamenta inteligência
artificial no Brasil, o PL 2338.
A artista pediu uma
"legislação que acompanhe essas mudanças para proteger os direitos dos
criadores e garantir um ambiente justo e equilibrado para todos".
A votação do PL sobre
IA na comissão do Senado (que
trata não apenas da questão de artistas, mas de todos os produtos envolvendo a
tecnologia) já foi adiada três vezes, em meio a divergências entre setores e
categorias que buscam proteger as suas atividades.
Na internet, artistas
digitais, entre ilustradores, designers e dubladores, têm tentando fazer
barulho com mobilizações mais frequentes nas redes sociais.
"Os artistas já
vinham sentindo que estavam ganhando menos, com menos oportunidades de freelancers,
menos vagas. Mas começou a tomar uma proporção grande", diz Carlos Ryal,
diretor da União Democrática de Artistas Digitais (Unidad), grupo criado em
2024 para discutir a proteção do trabalho autoral.
Uma pesquisa recente sobre IA da Society of Authors, um sindicato do Reino Unido para escritores, ilustradores e
tradutores literários profissionais, mostrou que 26% dos ilustradores e 36% dos
tradutores afirmaram que já perderam empregos para máquinas.
Já uma análise do
Fundo Monetário Internacional (FMI) em
2024 estimou que a inteligência artificial está prestes a afetar quase 40% de
todos os empregos.
·
'Meu desenho era minha
forma de sobreviver'
Desde os 7 anos de
idade, o talento de Lúcia Lemos para o desenho representava uma saída para uma
vida apertada financeiramente que sua família levava na Zona Norte do Rio de
Janeiro.
Ela conta que vendia a
arte aos colegas na escola por R$ 2, o que dava para comprar um lanche ou
remédios. Aos 16 anos, já fazia trabalhos freelancers criando
logotipos, retratos e tatuagens.
"Sempre usei meu
desenho como forma sobreviver, para comprar pão. E isso está acabando."
Formada em comunicação
visual na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Lúcia se especializou
em ilustrações para
livros e para personagens de jogos.
"Tem muito estudo
de cor, de anatomia, de luz, de percepção visual, para que as pessoas se
identifiquem com aquilo", diz a ilustradora.
Durante a pandemia,
Lúcia viveu um boom nas encomendas. Mas, em 2022, percebeu que
alguma coisa começava a mudar.
"Fui sentindo que
havia algo errado em relação aos freelas estrangeiros. Nos
fóruns onde pessoas pedem caricaturas, ilustrações, personagens, os trabalhos
sumiram. Quando aparecia um anúncio, eram 200 pessoas brigando para ver quem
pegava", relata.
Em 2024, para Lúcia,
as perdas são palpáveis e diretamente relacionada à IA. "Colegas de
trabalho foram demitidos, outros agora trabalham apenas 'corrigindo' desenhos
feitos por IA."
Wagner Loud, há dez anos no mercado de designers em São Paulo, conta que
tem visto departamentos de ilustradores acabando em empresas no Brasil.
"Eram pessoas que
estudaram e que sempre estavam evoluindo, trazendo coisas novas."
A partir de relatos
dos artistas, o grupo Unidad, que se formou da união de coletivos de
ilustradores e artistas digitais, tem identificado no mercado formal que a
maioria dos cortes de vagas acontece nos cargos iniciantes.
"Está se
diminuindo a entrada para os trabalhos de juniors. Quem fica, que seriam os
plenos e sêniors, os mais experientes, acaba sendo mais precarizado, porque se
vende a ideia de que a IA vai te entregar um trabalho pronto, mas isso não é
verdade", diz o diretor Carlos Ryal.
Wagner Loud ressalta
que a IA comete erros grotescos: "Personagem com seis dedos, coisas que a
gente que trabalha com arte há muito tempo não deixaria passar. E o cliente
também acaba ficando com um nível de exigência mais baixo. Então, no fim, não está
prejudicando só a gente, mas também o consumidor, emburrecendo o crivo estético
da população".
Hoje, Lúcia tem
buscado alternativas para se sustentar. Em vez de ilustrações, vende seus
desenhos em feiras de artistas independentes.
"Faço bóton,
cartelas adesivas, chaveiros, e vendo. É o que tem me salvado. Quem vai a esses
eventos de fato está interessado em adquirir um trabalho de um artista, não de
IA."
Mas a renda é mais
instável e menor do que antes, e sua renda varia conforme a frequência e o
movimento das feiras.
"Estou com medo
de não conseguir mais me sustentar", diz Lúcia.
Apesar de previsões
sobre o corte de empregos com o advento da IA, alguns especialistas têm defendido que a
tecnologia pode ser aliada no aumento da produtividade.
Para Maurício Veneza,
ilustrador e conselheiro da Associação de Escritores e Ilustradores Infantil e
Juvenil (Aeilij), a IA pode permitir ao profissional, em tempo bem menor, uma
variedade maior de experimentações.
"O que o artista
não pode fazer é virar mero compilador e recombinador de obras alheias",
diz.
Veneza avalia que há
atualmente um achatamento nos valores pagos a profissionais de ilustração de
livros, mas que seria precipitado atribuir isso à IA.
"Já existe um ou
outro deslumbrado com a possibilidade de criar um livro em minutos sem pagar a
um escritor e a um ilustrador. Mas é algo incipiente, o impacto maior ainda
está por vir."
·
Direito autoral e PL
2338
Se a perda de trabalho
é o efeito imediato, o que tem irritado e preocupado mais ainda os artistas é a
discussão sobre o direito autoral.
Para uma IA generativa
existir, ela passa por um "treinamento", a partir de um
banco de dados com informações de textos (como no caso do ChatGPT, por exemplo) ou de
imagens, vídeos.
A partir de comandos
do usuário, a ferramenta, com base no que acumulou de informação, produz um
conteúdo.
"A IA não cria
nada. Ela tem que puxar os recursos de algum lugar, o que são nosso traços e
desenhos. Isso é o mais urgente", diz o diretor criativo Wagner Loud.
Os artistas dizem que
se sentem roubados. "Usam nosso trabalho para treinar aquilo que está
tirando nosso trabalho", resume Lúcia Lemos.
Recentemente, a
empresa de softwares Adobe, detentora de programas como Photoshop, causou
polêmica ao lançar novos termos de uso que
deixaram dúvidas em usuários sobre a possibilidade de usar o trabalho das
pessoas para treinar inteligência artificial.
Após a repercussão
negativa nas redes, a empresa disse que "refletiu sobre o uso da linguagem
no documento" e esclareceu que não irá treinar sistemas generativos de IA
a partir de conteúdo produzido pelos clientes.
A demanda sobre o
direito autoral é o que levou à mobilização dos profissionais da indústria
criativa na discussão na Comissão Temporária sobre Inteligência Artificial
(CTIA) do Senado sobre o PL 2338.
Segundo o professor e
advogado Allan de Souza, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e
diretor do Instituto Brasileiro de Direitos Autorais, o tópico é "um dos
pontos mais tensos e mais problemáticos políticamente e economicamente de ser resolvido".
"Em tudo que
envolve arte e cultura, o debate é mais intenso", diz Souza.
O projeto inicialmente
apresentado pelo presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), é relatado pelo
senador Eduardo Gomes (PL-TO), que apresentou um texto alternativo.
Em relação ao direito
autoral dos artistas, após idas e vindas, a versão atual do projeto estabelece
que desenvolvedores de IA precisam informar quais conteúdos protegidos foram
utilizados nos processos de treinamento dos sistemas.
Também estabelece que
os sistemas de IA "devem remunerar os respectivos titulares desses
conteúdos em virtude dessa utilização".
Para os artistas, a
inclusão do direito autoral na proposta representa um avanço na discussão.
Andrea Viviana
Taubman, presidente da Associação de Escritores e Ilustradores Infantil e
Juvenil (Aeilij), participou das discussões no Congresso defendendo que
"autores possam optar por dizer 'não quero' que utilizem meu texto".
"Se for para ser
utilizado, que seja com permissão e mediante remuneração justa", diz
Taubman.
"É uma grande
vitória, mas a legislação acaba sendo muito mais generalista", diz a
advogada Ydara de Almeida, diretora jurídica da Unidad.
"Agora, é preciso
saber como instrumentalizamos isso, qual é a viabilidade real disso na
prática."
·
Como artistas vão
ganhar dinheiro?
A votação do PL 2338
estava prevista para julho, mas foi adiada por suposta pressão da Confederação
Nacional da Indústria (CNI).
Segundo reportagem do jornal
Folha de S.Paulo, a CNI dá apoio às big techs, as grandes empresas de
tecnologia que são contra a cobrança de direitos autorais para treinamento de
sistemas de IA.
No estágio atual, o
próprio projeto estabelece ainda que a regulação mais detalhada deve ser feita
posteriormente por um novo órgão, o Sistema Nacional de Regulação e Governança
de Inteligência Artificial (SIA).
Mas, de acordo com
Allan de Souza, do IBDAutoral, embora o projeto trate da remuneração para o uso
de obras em treinamentos de IA, não há nada ainda que assegure que o artista
vai de fato receber dinheiro.
"O que está sendo
colocado é se vai ser a indústria de conteúdo, como grandes gravadoras,
editoras, produtoras audiovisuais, ou a grandes empresas de tecnologia, como
Meta e Google", diz Souza.
"Quem
provavelmente será remunerado são os grandes titulares de direitos autorais,
que já detêm os direitos de uma imensa quantidade de dados e obras, como uma
editora para quem ilustradores já transferem os direitos de sua arte."
O professor explica
que, como a quantidade de obras que um sistema de IA precisa para ser treinada
é imensa, ter um trabalho seu utilizado nesse treinamento deve render muito
pouco. Isso quer dizer que, caso um artista venha a ser remunerado por uma obra
sua utilizada para treinar IA, o valor pago tende a ser irrisório.
Souza avalia ainda que
pagar pelos direitos autorais no treinamento de IAs também pode impedir que
sejam desenvolvidos sistemas de IA nacionais ou de pequenas empresas, já que o
investimento exigido seria muito alto.
Ele defende que a
legislação contemple o pagamento de direitos autorais diretamente aos artistas,
mas só após o sistema de IA passar a ter faturamento.
Souza também torce
para a criação de um sistema global em que os artistas, na hora em que criarem
obras digitais, possam sinalizar que não querem que o material seja usado para
treinamento de IA.
Ydara de Almeida, da
Unidad, acredita que, mesmo no exterior, a repercussão sobre como seria a
remuneração ainda é muito incipiente.
"Como isso vai se
dar na prática, a gente ainda não sabe. Tudo é muito novo", diz Almeida.
Para o futuro, os
ilustradores com quem a reportagem conversou acreditam que a nova realidade já
se impôs, mas que as pessoas que "sempre gostaram de arte continuarão
apoiando artistas".
"Como tudo que
aparece, a gente precisa se adaptar. Uma IA regulamentada já ajuda na questão
de proteger nosso trabalho. Usar a IA como aliada em algumas situações, vamos
ter que fazer, mas não pode ser o carro chefe. Se tudo começar a ficar com a mesma
cara, uma hora cansa", diz Wagner Loud.
Andrea Viviana
Taubman, presidente da Associação de Escritores e Ilustradores Infantil e
Juvenil, avalia que a eventual exclusão de empregos convencionais não vai
ocorrer apenas por causa da popularização de IA.
"Ela ocorre se o
país não investir em educação, não formar leitores, não promover a formação
artística, não proteger os direitos autorais das criadoras e criadores
literários, artísticos e científicos", diz Taubman.
A ilustradora Lúcia
Lemos defende que os direitos destes profissionais devem ser protegidos como os
de qualquer trabalhador.
"Não é porque
estou desenhando na frente do computador que sou menos trabalhadora que um
pedreiro."
Fonte: BBC News Brasil
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