quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Renildo Souza: Marx e a financeirização

Nas três últimas décadas, o tema da financeirização tem sido abordado insistentemente, sobretudo por autores marxistas.  Mas quais são algumas pistas da financeirização da lavra do próprio Marx? O objetivo deste artigo é escavar a ancestralidade teórica marxiana da finança. A análise se restringirá à Seção V do livro III d’O capital. Marx, no caso desse livro, explica o nível concreto da distribuição da mais-valia, nos marcos da enormidade e variedade de fenômenos e contingências da vida social em seu conjunto no capitalismo.

Problemas diversos como a crise de 2008, as políticas de austeridade fiscal, as ameaças neofascistas, as catástrofes ambientais e a espoliação social, bem como a reestruturação tecnológica e produtiva das cadeias de valor, intensificaram o debate sobre a financeirização. As finanças tornaram-se onipresentes na contemporaneidade. Essa constatação, com ares de consenso entre marxistas, é, porém, desafiada pelas dificuldades teóricas em se apreender a natureza e o alcance do fenômeno.

Como explicar a financeirização, como superar seus desafios de sua interpretação? A financeirização é mero aumento, mudança quantitativa nos ativos financeiros, mais do mesmo, sobretudo por conta dos volumes exponenciais do capital fictício atualmente? A mencionada onipresença e o seu próprio processo de transformações aceleradas dificultam a consolidação interpretativa sobre a financeirização.

A partir da tautologia de que tudo faz parte de tudo e tudo importa, corre-se o risco de se embaralhar a compreensão de fenômenos distintos. A aproximação de alguns traços estruturais comuns entre diferentes objetos do capitalismo contemporâneo tende a confundir, de certa forma, o caráter da financeirização, uma lógica transformada de acumulação de capital, com o neoliberalismo, uma doutrina política e ideológica. Nesse mesmo sentido, as abordagens conceituais sobre a digitalização da economia, uma transformação tecnológica contemporânea central, podem também dificultar a identificação da qualidade própria das finanças hoje.

Do muito que Marx elaborou, o traço mais distintivo é a acumulação de mais-valor. Lênin disse que o principal traço distintivo da fase imperialista do capitalismo, desde o fim do século XIX, eram os monopólios. E agora, sem prejuízo da centralidade do pensamento de Marx e de Lênin, o que dizer? Na arena das interpretações gerais, mais globais, não faltam exemplares na praça. A qualificação de capitalismo neoliberal é centrada na crítica à desregulação institucional e desestatização, na denúncia da voracidade do mercado. A noção de capitalismo especulativo parasitário reflete aspectos cruciais e verdadeiros, mas especulação e parasitismo são as entranhas da lógica e da vida do capital. A proposição do tecnofeudalismo parece ser uma fetichização dos monopólios tecnológicos.

•        Centralidade financeira

Em outro âmbito, a abordagem do tema do capital financeiro é também sobrecarregada de problemas, cuja fonte é a economia vulgar, como protestava Marx. A finança é embrulhada nas mais variadas visões e justificativas. É um um campo minado de interesses do capital. Tem impacto apologético avassalador propagado pelos meios de comunicação de massas. A má-fé dos banqueiros, como dizia Marx, é uma cavalaria de assalto permanente sobre as mentes e os corações da população, através da mídia e dos governos.

A época atual, marcada pela centralidade financeira, enseja estímulos adicionais para a confusão e a falsidade das ideias acerca do dinheiro e do capital. Diante da maré montante de mistificação neoliberal, torna-se necessário aguçar a crítica e repisar a compreensão da economia monetária do capitalismo. Voltar ao básico, o qual, em vez de negado, está sendo reafirmado, sob transformações, pelo capitalismo financeirizado. E voltar à história. Neste sentido, Marx tem algo de fundamental a nos dizer neste século XXI.

As explicações de Marx sobre o capital portador de juros e o capital fictício estão concentradas na mencionada seção V. Cabe ressalvar, desde logo, que há uma inestimável contribuição de Friedrich Engels, responsável pela edição do livro III (também do livro II), 11 anos depois da morte de Marx, o qual tinha deixado esboços, como se sabe.

Engels lamentou: “A dificuldade principal se deu na seção V, que também trata do assunto mais intricado de todo o livro. (…) Não temos aqui, portanto, uma primeira versão acabada nem sequer um esquema cujos contornos se pudessem completar, mas apenas um começo de elaboração que, em mais de uma oportunidade, desemboca num amontoado caótico de notas, observações e materiais em forma de extratos”. Após três tentativas fracassadas de preencher lacunas e desenvolver fragmentos apenas indicados, Engels decidiu apenas “ordenar o máximo possível o material existente e fazer os acréscimos mais imprescindíveis”.

Apesar de todos os percalços, a mencionada seção V, com seus 16 capítulos, fornece o ponto de partida e algumas pistas tanto teóricas quanto metodológicas para a abordagem do capitalismo financeirizado dos nossos dias. Marx expõe e critica as falsas teorias monetárias, recorrendo às disputas entre os autores (muitos deles, banqueiros) do currency principle (escola das contrapartidas metálicas) quanto do banking principle (escola bancária). A elaboração de Marx, desde a Inglaterra, baseia-se tanto nos fatos econômicos, nas fases do ciclo industrial e nas crises, quanto na crítica ao discurso de banqueiros e economistas em depoimentos nas Comissões de Inquérito do Parlamento.

Na citada seção V, Marx discute as relações e a unidade entre as esferas da circulação e da produção. Esclarece os aspectos imanentes e os externos do processo de valorização no capitalismo. Faz, em referência às partes e ao todo, as distinções entre transações individuais e isoladas e as situações globais, coletivas, inclusive para os ganhos e perdas de valor. Esclarece a importância e as implicações das distintas formas de valor. Demonstra a evolução, as contradições e as tendências do sistema de crédito. Insiste sempre na análise centrada nas circunstâncias históricas, identificando etapas e fases.

Explica, considerando a aparência e a essência da realidade, o fetichismo do dinheiro e a natureza capitalista do modo de produção. Expõe, pela interação e desdobramento dos fenômenos, como o capital portador de juros impulsiona tanto a acumulação quanto a especulação e as crises. Elabora, dialeticamente, o conceito do capital fictício como ilusão e existência. Reafirma, com toda força, sem tergiversar: apenas o trabalho vivo cria valor e mais-valor.

A financeirização tornou a relação capitalista ainda mais exterior e mais fetichista, além do que Marx já se assombrava com a forma capital portador de juros. Em vez de relação social, o capital aparece ainda mais despudoramente como simples coisa. O conceito de capital fictício, especialmente, alcançou relevância extrema nas condições em que se configura o capital desde as duas últimas décadas do século XX.

•        Capital portador de juros

Se o dinheiro é convertido em capital portador de juros, ele passa a ser uma mercadoria especial, que é emprestada, em vez de vendida por um valor equivalente, ao capitalista em função. Essa mercadoria sui generis tem o valor de uso de permitir, como capital, a geração de lucro decorrente da mais-valia. Com o capital portador de juros, a forma dinheiro corresponde ao conteúdo de capital. Ele teve que ser desembolsado como capital em funcionamento na compra de meios de produção ou de mercadoria, respectivamente pelo capital industrial ou comercial. Pelas mãos do prestamista, não há metamorfose de mercadoria nem reprodução do capital.

Esses processos dependem do prestatário do capital portador de juros, ou seja, o capitalista em atividade comercial, em um caso, ou industrial, em outro. Quando passa a ser capital realizado, o dinheiro já rendeu mais-valor ao seu proprietário, porque houve apropriação de uma parte do lucro, a qual é batizada com o nome de juros. Contudo, Marx adverte de que o empréstimo pode “servir também para transações sem qualquer relação com o processo capitalista de reprodução”. É no sentido desta advertência que o capitalismo financeirizado do século XXI exacerbou a autonomia da finança em relação à reprodução do capital.

A forma externa e apartada do refluxo do capital, em face do processo efetivo de mediação no ciclo do capital, é a peculiaridade do capital portador de juros. Aparentemente, dinheiro multiplica dinheiro. Desconsidera-se a mediação, a unidade e o conjunto do movimento real e imanente do capital em seu ciclo completo D – M – D’. O capital portador de juros toma a forma de uma transação jurídica. Como um contrato, aparenta não ser determinado pelo processo de produção.

Assim, a mera forma do capital portador de juros, como D – D’, “é apenas a forma sem conceito do movimento efetivo do capital”. Essa forma do capital denuncia a natureza irracional em que consiste o capitalismo. A forma D – D’ é a “coisificação das relações de produção elevadas à máxima potência”, “mistificação capitalista em sua forma mais descarada”, “forma fetichista mais pura”, nas palavras de Marx.

•        Determinação do lucro e casualidade dos juros

A compreensão sobre o simples intercâmbio de mercadorias ordinárias não serve para a abordagem dessa mercadoria especial, a forma capital portador de juros. O que é o preço dessa mercadoria? Os juros são preço de quê? Para responder a isso, é preciso tratar das origens do lucro e dos juros e sua interação.

Marx aponta a irracionalidade, contradição e absurdo dos juros como preço do capital, como se vê na superfície e normalidade das transações de mercado. Uma determinada grandeza de capital portador de juros é uma mercadoria em certa magnitude, que tem seu valor e daí o seu preço de mercado. Mas, ao mesmo tempo, aqui no capital portador de juros, há um outro preço, de qualidade distinta, que se chama juros? Como? Por quê? Se é um outro preço, então não é expressão daquele valor do mesmo capital portador de juros. É como se houvesse duplicidade de valor e de preço. Na verdade, ao se impor, o valor de uso deste capital monetário tem esse segundo preço chamado de juros.

O lucro engendrado pelo valor de uso desse capital é repartido, de modo arbitrário e casual, entre ganho empresarial e juros. Aqui, não há qualquer lei econômica para regular essa distribuição, a não ser a concorrência entre os prestamistas e prestatários no mercado monetário. No âmbito dessa forma de transação jurídica, não existem taxa natural de juros, limites naturais de juros, subordinação a prazo de rotação efetiva do capital etc.

Mas a grandeza, o limite máximo e os possíveis cursos dos juros estão condicionados pelo lucro, determinados pela sua taxa geral, em vez de taxas de lucros de ramos específicos ou lucro extra de um capitalista. A taxa geral de lucro, por sua vez, depende da relação entre o mais-valor e o valor do capital total em razão da concorrência, mobilidade e magnitude dos capitais nos diferentes ramos e composições orgânicas.

Os juros não podem ter suas próprias leis gerais de determinação, porque são derivação do lucro médio, conforme o referido incessante movimento de equalização das taxas de lucro particulares. O capitalismo financeirizado do século XXI exacerba a casualidade dos juros, bem como preserva a tendência à taxa geral de lucro, a partir do mais-valor do capital total, conforme a teoria de Marx.

“Portanto, a taxa geral de lucro é determinada por causas totalmente diversas e muito mais complicadas do que a taxa de juros de mercado, que se deve direta e imediatamente à relação entre oferta e demanda (…)”. A graça disso tudo é que os financistas enxergam tangibilidade, inteligibilidade e racionalidade no assim chamado preço do dinheiro, apesar da volatilidade e bolhas, enquanto titubeiam, perplexos, diante do curso da taxa geral de lucro, uma matéria nebulosa aos seus olhos, como já notava Marx.

•        Condenação meramente moral

Capital portador de juros, como capital usurário, já era a forma, e os juros, já eram a sua subforma, antes do capitalismo. Capital de empréstimo e capital comercial fazem parte da história antediluviana do capital. Marx, para discutir sua época, sentiu necessidade de relembrar a origem antiga do capital dinheiro, bem como de sua condenação moral. As épocas e as formas e a natureza do comércio do dinheiro são muito diferentes na comparação entre os modos de produção.

Entretanto, sempre houve e há uma propensão muito fácil para a condenação meramente moral do negócio com o dinheiro, em face dos privilégios reais desse tipo de negociante. Na Idade Média, é bem conhecida a condenação da usura pela Igreja Católica. Martinho Lutero indignava-se: “Tal usura não haverá de devorar o mundo em poucos anos?”.

Os imensos juros usurários arruinaram os donos de terra, ajudaram a expropriar os pequenos produtores – camponeses e artesãos – e levaram à forte concentração de capital monetário. Para Marx, no capitalismo, o sistema de crédito desenvolvido, por meio dos bancos, foi uma resposta, sem conotação moral, contra a usura. Constituiu-se a subordinação do capital portador de juros às exigências das condições do modo de produção capitalista. Já não havia espaço para a voracidade dos juros usurários sobre o mais-valor inteiro. A destinação do dinheiro era para o capitalista explorar o trabalho alheio na produção.

E hoje? A financeirização, correspondente à produção capitalista avançada, já pode expropriar quem já está expropriado, os assalariados. Para isso, criou-se um tipo novo de escravidão por dívida através dos cartões de crédito, das hipotecas, do crédito estudantil, do crédito para o consumo individual, inclusive alimentos etc. Marx reconhecia que a classe trabalhadora era extorquida escandalosamente, por exemplo nos empréstimos para suas casas, mas ele avaliava que essa era uma exploração secundária, ao lado da exploração original, localizada no processo de produção. A usura empobrecia, mas conservava o modo de produção pré-capitalista. A financeirização preserva o capitalismo ao acumular gigantescas massas de riqueza financeira para uma ínfima minoria, englobando, pelo mercado, a tudo e a todos em transações financeiras.

•        Capitalismo sem juros

Marx, em sua época, criticava a fundamentação equivocada de Proudhon sobre o empréstimo de dinheiro. Os juros eram sobrepostos ao valor da mercadoria, para além dos salários, julgava Proudhon. Ele não atinava para o conceito de preço de produção no processo de concorrência e transferência de valor em função da tendência de formação da taxa média de lucro entre os capitais diversos em composição orgânica, dentro de uma economia em que já existia normalmente o capital portador de juros. Para ele, tratava-se de um acréscimo postiço dos juros. Ele pensava que isso que interditava o acesso dos operários aos frutos do seu trabalho. Era desse modo, ele supunha, que o preço da mercadoria ultrapassava a grandeza dos salários.

Proudhon não percebia que os juros já eram derivação do lucro, decorrente do mais-valor criado pelos trabalhadores na produção das mercadorias. Esse capital de empréstimo já participava do adiantamento para a compra de capital produtivo no processo de reprodução. Proudhon não compreendia o lugar dos salários na forma valor da mercadoria. Ademais, sem entender a forma do capital portador de juros, Proudhon protestava porque o capital emprestado retornava ao seu proprietário e, ainda para piorar, refluía acrescido de juros. Em sua comparação com o comércio de mercadorias, ele não percebia que, no caso do capital portador de juros, o prestamista faz a cessão (temporária) de uma soma de valor, sem a contrapartida do recebimento de seu equivalente, explicou Marx.

Capitalismo sem juros? Produção de mercadorias, mas com crédito gratuito, como queria Proudhon? Capitalismo maduro hoje, sem financeirização? Essa polêmica de Marx com Proudhon ensina muito sobre os desejos piedosos neste século XXI por um tipo de regulação da finança que conduza ao projeto ilusório de um capitalismo humanizado e produtivo.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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