Renildo Souza: Marx e a financeirização
Nas três últimas
décadas, o tema da financeirização tem sido abordado insistentemente, sobretudo
por autores marxistas. Mas quais são
algumas pistas da financeirização da lavra do próprio Marx? O objetivo deste
artigo é escavar a ancestralidade teórica marxiana da finança. A análise se
restringirá à Seção V do livro III d’O capital. Marx, no caso desse livro,
explica o nível concreto da distribuição da mais-valia, nos marcos da
enormidade e variedade de fenômenos e contingências da vida social em seu conjunto
no capitalismo.
Problemas diversos
como a crise de 2008, as políticas de austeridade fiscal, as ameaças
neofascistas, as catástrofes ambientais e a espoliação social, bem como a
reestruturação tecnológica e produtiva das cadeias de valor, intensificaram o
debate sobre a financeirização. As finanças tornaram-se onipresentes na
contemporaneidade. Essa constatação, com ares de consenso entre marxistas, é,
porém, desafiada pelas dificuldades teóricas em se apreender a natureza e o
alcance do fenômeno.
Como explicar a
financeirização, como superar seus desafios de sua interpretação? A
financeirização é mero aumento, mudança quantitativa nos ativos financeiros,
mais do mesmo, sobretudo por conta dos volumes exponenciais do capital fictício
atualmente? A mencionada onipresença e o seu próprio processo de transformações
aceleradas dificultam a consolidação interpretativa sobre a financeirização.
A partir da tautologia
de que tudo faz parte de tudo e tudo importa, corre-se o risco de se embaralhar
a compreensão de fenômenos distintos. A aproximação de alguns traços
estruturais comuns entre diferentes objetos do capitalismo contemporâneo tende
a confundir, de certa forma, o caráter da financeirização, uma lógica
transformada de acumulação de capital, com o neoliberalismo, uma doutrina
política e ideológica. Nesse mesmo sentido, as abordagens conceituais sobre a
digitalização da economia, uma transformação tecnológica contemporânea central,
podem também dificultar a identificação da qualidade própria das finanças hoje.
Do muito que Marx
elaborou, o traço mais distintivo é a acumulação de mais-valor. Lênin disse que
o principal traço distintivo da fase imperialista do capitalismo, desde o fim
do século XIX, eram os monopólios. E agora, sem prejuízo da centralidade do pensamento
de Marx e de Lênin, o que dizer? Na arena das interpretações gerais, mais
globais, não faltam exemplares na praça. A qualificação de capitalismo
neoliberal é centrada na crítica à desregulação institucional e desestatização,
na denúncia da voracidade do mercado. A noção de capitalismo especulativo
parasitário reflete aspectos cruciais e verdadeiros, mas especulação e
parasitismo são as entranhas da lógica e da vida do capital. A proposição do
tecnofeudalismo parece ser uma fetichização dos monopólios tecnológicos.
• Centralidade financeira
Em outro âmbito, a
abordagem do tema do capital financeiro é também sobrecarregada de problemas,
cuja fonte é a economia vulgar, como protestava Marx. A finança é embrulhada
nas mais variadas visões e justificativas. É um um campo minado de interesses
do capital. Tem impacto apologético avassalador propagado pelos meios de
comunicação de massas. A má-fé dos banqueiros, como dizia Marx, é uma cavalaria
de assalto permanente sobre as mentes e os corações da população, através da
mídia e dos governos.
A época atual, marcada
pela centralidade financeira, enseja estímulos adicionais para a confusão e a
falsidade das ideias acerca do dinheiro e do capital. Diante da maré montante
de mistificação neoliberal, torna-se necessário aguçar a crítica e repisar a
compreensão da economia monetária do capitalismo. Voltar ao básico, o qual, em
vez de negado, está sendo reafirmado, sob transformações, pelo capitalismo
financeirizado. E voltar à história. Neste sentido, Marx tem algo de
fundamental a nos dizer neste século XXI.
As explicações de Marx
sobre o capital portador de juros e o capital fictício estão concentradas na
mencionada seção V. Cabe ressalvar, desde logo, que há uma inestimável
contribuição de Friedrich Engels, responsável pela edição do livro III (também
do livro II), 11 anos depois da morte de Marx, o qual tinha deixado esboços,
como se sabe.
Engels lamentou: “A
dificuldade principal se deu na seção V, que também trata do assunto mais
intricado de todo o livro. (…) Não temos aqui, portanto, uma primeira versão
acabada nem sequer um esquema cujos contornos se pudessem completar, mas apenas
um começo de elaboração que, em mais de uma oportunidade, desemboca num
amontoado caótico de notas, observações e materiais em forma de extratos”. Após
três tentativas fracassadas de preencher lacunas e desenvolver fragmentos
apenas indicados, Engels decidiu apenas “ordenar o máximo possível o material
existente e fazer os acréscimos mais imprescindíveis”.
Apesar de todos os
percalços, a mencionada seção V, com seus 16 capítulos, fornece o ponto de
partida e algumas pistas tanto teóricas quanto metodológicas para a abordagem
do capitalismo financeirizado dos nossos dias. Marx expõe e critica as falsas
teorias monetárias, recorrendo às disputas entre os autores (muitos deles,
banqueiros) do currency principle (escola das contrapartidas metálicas) quanto
do banking principle (escola bancária). A elaboração de Marx, desde a
Inglaterra, baseia-se tanto nos fatos econômicos, nas fases do ciclo industrial
e nas crises, quanto na crítica ao discurso de banqueiros e economistas em
depoimentos nas Comissões de Inquérito do Parlamento.
Na citada seção V,
Marx discute as relações e a unidade entre as esferas da circulação e da
produção. Esclarece os aspectos imanentes e os externos do processo de
valorização no capitalismo. Faz, em referência às partes e ao todo, as
distinções entre transações individuais e isoladas e as situações globais,
coletivas, inclusive para os ganhos e perdas de valor. Esclarece a importância
e as implicações das distintas formas de valor. Demonstra a evolução, as
contradições e as tendências do sistema de crédito. Insiste sempre na análise
centrada nas circunstâncias históricas, identificando etapas e fases.
Explica, considerando
a aparência e a essência da realidade, o fetichismo do dinheiro e a natureza
capitalista do modo de produção. Expõe, pela interação e desdobramento dos
fenômenos, como o capital portador de juros impulsiona tanto a acumulação
quanto a especulação e as crises. Elabora, dialeticamente, o conceito do
capital fictício como ilusão e existência. Reafirma, com toda força, sem
tergiversar: apenas o trabalho vivo cria valor e mais-valor.
A financeirização
tornou a relação capitalista ainda mais exterior e mais fetichista, além do que
Marx já se assombrava com a forma capital portador de juros. Em vez de relação
social, o capital aparece ainda mais despudoramente como simples coisa. O conceito
de capital fictício, especialmente, alcançou relevância extrema nas condições
em que se configura o capital desde as duas últimas décadas do século XX.
• Capital portador de juros
Se o dinheiro é
convertido em capital portador de juros, ele passa a ser uma mercadoria
especial, que é emprestada, em vez de vendida por um valor equivalente, ao
capitalista em função. Essa mercadoria sui generis tem o valor de uso de
permitir, como capital, a geração de lucro decorrente da mais-valia. Com o
capital portador de juros, a forma dinheiro corresponde ao conteúdo de capital.
Ele teve que ser desembolsado como capital em funcionamento na compra de meios
de produção ou de mercadoria, respectivamente pelo capital industrial ou
comercial. Pelas mãos do prestamista, não há metamorfose de mercadoria nem
reprodução do capital.
Esses processos
dependem do prestatário do capital portador de juros, ou seja, o capitalista em
atividade comercial, em um caso, ou industrial, em outro. Quando passa a ser
capital realizado, o dinheiro já rendeu mais-valor ao seu proprietário, porque
houve apropriação de uma parte do lucro, a qual é batizada com o nome de juros.
Contudo, Marx adverte de que o empréstimo pode “servir também para transações
sem qualquer relação com o processo capitalista de reprodução”. É no sentido
desta advertência que o capitalismo financeirizado do século XXI exacerbou a
autonomia da finança em relação à reprodução do capital.
A forma externa e
apartada do refluxo do capital, em face do processo efetivo de mediação no
ciclo do capital, é a peculiaridade do capital portador de juros.
Aparentemente, dinheiro multiplica dinheiro. Desconsidera-se a mediação, a
unidade e o conjunto do movimento real e imanente do capital em seu ciclo
completo D – M – D’. O capital portador de juros toma a forma de uma transação
jurídica. Como um contrato, aparenta não ser determinado pelo processo de
produção.
Assim, a mera forma do
capital portador de juros, como D – D’, “é apenas a forma sem conceito do
movimento efetivo do capital”. Essa forma do capital denuncia a natureza
irracional em que consiste o capitalismo. A forma D – D’ é a “coisificação das
relações de produção elevadas à máxima potência”, “mistificação capitalista em
sua forma mais descarada”, “forma fetichista mais pura”, nas palavras de Marx.
• Determinação do lucro e casualidade dos
juros
A compreensão sobre o
simples intercâmbio de mercadorias ordinárias não serve para a abordagem dessa
mercadoria especial, a forma capital portador de juros. O que é o preço dessa
mercadoria? Os juros são preço de quê? Para responder a isso, é preciso tratar
das origens do lucro e dos juros e sua interação.
Marx aponta a
irracionalidade, contradição e absurdo dos juros como preço do capital, como se
vê na superfície e normalidade das transações de mercado. Uma determinada
grandeza de capital portador de juros é uma mercadoria em certa magnitude, que
tem seu valor e daí o seu preço de mercado. Mas, ao mesmo tempo, aqui no
capital portador de juros, há um outro preço, de qualidade distinta, que se
chama juros? Como? Por quê? Se é um outro preço, então não é expressão daquele
valor do mesmo capital portador de juros. É como se houvesse duplicidade de
valor e de preço. Na verdade, ao se impor, o valor de uso deste capital
monetário tem esse segundo preço chamado de juros.
O lucro engendrado
pelo valor de uso desse capital é repartido, de modo arbitrário e casual, entre
ganho empresarial e juros. Aqui, não há qualquer lei econômica para regular
essa distribuição, a não ser a concorrência entre os prestamistas e prestatários
no mercado monetário. No âmbito dessa forma de transação jurídica, não existem
taxa natural de juros, limites naturais de juros, subordinação a prazo de
rotação efetiva do capital etc.
Mas a grandeza, o
limite máximo e os possíveis cursos dos juros estão condicionados pelo lucro,
determinados pela sua taxa geral, em vez de taxas de lucros de ramos
específicos ou lucro extra de um capitalista. A taxa geral de lucro, por sua
vez, depende da relação entre o mais-valor e o valor do capital total em razão
da concorrência, mobilidade e magnitude dos capitais nos diferentes ramos e
composições orgânicas.
Os juros não podem ter
suas próprias leis gerais de determinação, porque são derivação do lucro médio,
conforme o referido incessante movimento de equalização das taxas de lucro
particulares. O capitalismo financeirizado do século XXI exacerba a casualidade
dos juros, bem como preserva a tendência à taxa geral de lucro, a partir do
mais-valor do capital total, conforme a teoria de Marx.
“Portanto, a taxa
geral de lucro é determinada por causas totalmente diversas e muito mais
complicadas do que a taxa de juros de mercado, que se deve direta e
imediatamente à relação entre oferta e demanda (…)”. A graça disso tudo é que
os financistas enxergam tangibilidade, inteligibilidade e racionalidade no
assim chamado preço do dinheiro, apesar da volatilidade e bolhas, enquanto
titubeiam, perplexos, diante do curso da taxa geral de lucro, uma matéria
nebulosa aos seus olhos, como já notava Marx.
• Condenação meramente moral
Capital portador de
juros, como capital usurário, já era a forma, e os juros, já eram a sua
subforma, antes do capitalismo. Capital de empréstimo e capital comercial fazem
parte da história antediluviana do capital. Marx, para discutir sua época,
sentiu necessidade de relembrar a origem antiga do capital dinheiro, bem como
de sua condenação moral. As épocas e as formas e a natureza do comércio do
dinheiro são muito diferentes na comparação entre os modos de produção.
Entretanto, sempre
houve e há uma propensão muito fácil para a condenação meramente moral do
negócio com o dinheiro, em face dos privilégios reais desse tipo de negociante.
Na Idade Média, é bem conhecida a condenação da usura pela Igreja Católica.
Martinho Lutero indignava-se: “Tal usura não haverá de devorar o mundo em
poucos anos?”.
Os imensos juros
usurários arruinaram os donos de terra, ajudaram a expropriar os pequenos
produtores – camponeses e artesãos – e levaram à forte concentração de capital
monetário. Para Marx, no capitalismo, o sistema de crédito desenvolvido, por
meio dos bancos, foi uma resposta, sem conotação moral, contra a usura.
Constituiu-se a subordinação do capital portador de juros às exigências das
condições do modo de produção capitalista. Já não havia espaço para a
voracidade dos juros usurários sobre o mais-valor inteiro. A destinação do
dinheiro era para o capitalista explorar o trabalho alheio na produção.
E hoje? A
financeirização, correspondente à produção capitalista avançada, já pode
expropriar quem já está expropriado, os assalariados. Para isso, criou-se um
tipo novo de escravidão por dívida através dos cartões de crédito, das
hipotecas, do crédito estudantil, do crédito para o consumo individual,
inclusive alimentos etc. Marx reconhecia que a classe trabalhadora era
extorquida escandalosamente, por exemplo nos empréstimos para suas casas, mas
ele avaliava que essa era uma exploração secundária, ao lado da exploração
original, localizada no processo de produção. A usura empobrecia, mas
conservava o modo de produção pré-capitalista. A financeirização preserva o
capitalismo ao acumular gigantescas massas de riqueza financeira para uma
ínfima minoria, englobando, pelo mercado, a tudo e a todos em transações
financeiras.
• Capitalismo sem juros
Marx, em sua época,
criticava a fundamentação equivocada de Proudhon sobre o empréstimo de
dinheiro. Os juros eram sobrepostos ao valor da mercadoria, para além dos
salários, julgava Proudhon. Ele não atinava para o conceito de preço de
produção no processo de concorrência e transferência de valor em função da
tendência de formação da taxa média de lucro entre os capitais diversos em
composição orgânica, dentro de uma economia em que já existia normalmente o
capital portador de juros. Para ele, tratava-se de um acréscimo postiço dos
juros. Ele pensava que isso que interditava o acesso dos operários aos frutos
do seu trabalho. Era desse modo, ele supunha, que o preço da mercadoria
ultrapassava a grandeza dos salários.
Proudhon não percebia
que os juros já eram derivação do lucro, decorrente do mais-valor criado pelos
trabalhadores na produção das mercadorias. Esse capital de empréstimo já
participava do adiantamento para a compra de capital produtivo no processo de
reprodução. Proudhon não compreendia o lugar dos salários na forma valor da
mercadoria. Ademais, sem entender a forma do capital portador de juros,
Proudhon protestava porque o capital emprestado retornava ao seu proprietário
e, ainda para piorar, refluía acrescido de juros. Em sua comparação com o
comércio de mercadorias, ele não percebia que, no caso do capital portador de
juros, o prestamista faz a cessão (temporária) de uma soma de valor, sem a
contrapartida do recebimento de seu equivalente, explicou Marx.
Capitalismo sem juros?
Produção de mercadorias, mas com crédito gratuito, como queria Proudhon?
Capitalismo maduro hoje, sem financeirização? Essa polêmica de Marx com
Proudhon ensina muito sobre os desejos piedosos neste século XXI por um tipo de
regulação da finança que conduza ao projeto ilusório de um capitalismo
humanizado e produtivo.
Fonte: A Terra é
Redonda
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