Eberval Gadelha Figueiredo Jr.: “Elon Musk,
neofilibusteiro’
Nos últimos anos, com
o aumento da importância econômica relativa das cidades de médio porte no
Brasil, muito tem se falado sobre o fenômeno do Novo Cangaço, tipo de assalto
no qual uma quadrilha, como faziam os cangaceiros de antanho, assume o controle
de pequenas e médias cidades com o intuito de saqueá-las. O cangaço, no
entanto, não é a única modalidade de espoliação que voltou à moda.
Acontecimentos recentes apontam também para um renascimento muito mais grave da
filibustaria, e o nome do neofilibusteiro-mor é Elon Musk.
O termo “filibusteiro”
e seu cognato inglês, filibuster, tem suas origens no espanhol filibustero, que
vem, por sua vez, do holandês vrijbuiter, com o significado de pirata, corsário
ou, simplesmente, ladrão. Apesar disso, é possível afirmar, sob grave risco de
incorrer em lisonja desmerecida a figuras do naipe de Elon Mosca (sic), que o
protótipo histórico dos filibusteiros do século XIX não foram os piratas e
corsários ingleses do séculos XVI e XVII, mas sim figuras como Júlio César e
Hernán Cortés, conquistadores cujas respectivas ações na Gália e no México
foram recebidas em suas épocas de forma ambivalente pelo Senado de Roma, no
caso de César, e pela Coroa Espanhola, então encabeçada pela Casa D’Áustria, na
figura do sacro-imperador Carlos V, no caso de Cortés.
De forma semelhante a
César e Cortés, e diferente dos corsários e piratas ingleses do início da Idade
Moderna (para os quais o termo espanhol filibustero foi inicialmente
concebido), os filibusteiros do século XX e seus descendentes do século XXI
possuem ambições muito maiores, e relações muito mais ambivalentes com os
poderes oficiais do Estado. É importante ressaltar que conquista e pilhagem por
si sós não configuram um filibusteiro, de modo que chefes de estado como Marco
Aurélio e Filipe II jamais poderiam ser classificados como tal, nem mesmo com a
liberdade do anacronismo.
Stricto sensu, o
exemplo mais infame foi o americano William Walker, sujeito de corpo esquálido
e rosto pré-pubescente que fez várias tentativas de estabelecer, com o auxílio
de milícias privadas, uma colônia particular na região da América Central. Assim,
é notável a precisão do nome do inquérito das milícias digitais, no qual Elon
Musk passou a ser investigado, visto que os filibusteiros históricos nada mais
eram do que milicianos.
Muitos são aqueles que
criticam a romantização do passado, mas poucos deles pensam que podem estar
errados, e que a história humana, de fato, perde gravitas conforme avança,
ficando cada vez mais ridícula e escrachada. Cortés não era César, mas ele e
seus semelhantes, como Pizarro e Alvarado, não deixam de ser figuras um tanto
mais respeitáveis, por assim dizer, do que William Walker.
O que temos hoje em
dia é uma espécie de café coado de quarta categoria. Nossos neofilibusteiros
não têm carisma. São corpocratas sem rosto preocupados em assegurar o fluxo
contínuo das commodities, engravatados pretensamente magnânimos que movem ações
caríssimas financiadas por fundos de investimento obscuros, ou pior,
bilionários espiritualmente desempregados com tempo e dinheiro demais nas mãos,
que passam seus dias copiando e colando frases prontas sob as postagens de
usuários em suas próprias redes sociais (se um dia a automação e o desemprego
estrutural chegarem a eles, nada de valor será perdido).
Com cinco décadas de
vida nas costas, compartilham memes que sequer compreendem, na vã tentativa de
apelar para as sensibilidades estéticas das gerações mais novas. Pelo menos o
figurino de Hernán Cortés era estiloso.
Com o passar do tempo,
essas figuras também se tornaram cada vez mais apologéticas. Ao conquistar a
Gália antes de tornar-se ditador de Roma, Júlio César tratou o empreendimento,
de certa forma, como um fim em si mesmo (afinal, a conquista era o telos aristotélico
romano), mas também como forma de sanar seus próprios problemas financeiros.
Não havia grande
preocupação em forjar um discurso legitimador que escapasse de uma realpolitik
quanto à segurança das fronteiras romanas. Em sua conquista do México, Hernán
Cortés agia, supostamente, em nome da Coroa Espanhola, mas é amplamente sabido
que suas ambições privadas de fama e fortuna colocaram-no várias vezes em
oposição às ordens régias (ao contrário do que dizem os hispanistas de hoje,
embriagados que estão por um imaginário neoconservador moralizante e
completamente anacrônico, a preocupação humanitária com os sacrifícios humanos
era no máximo um mero detalhe).
William Walker
legitimava seus empreendimentos com os devaneios febris de um Destino
Manifesto, muito em voga na época. Hoje, Elon Musk esperneia contra decisões
judiciais brasileiras fazendo uso da retórica de defesa da “liberdade de
expressão”, apresentando-se como amigo e libertador das massas brasileiras que
julga serem oprimidas pela folclórica “ditadura do judiciário”.
O fato é que vivemos
em tempos muito apologéticos. Toda e qualquer ação imperialista hoje em dia
exige aquilo que os israelenses chamam de hasbará, “explicação”, ou seja, é
preciso fazer besteira primeiro e explicar-se depois, não necessariamente nessa
ordem. Isso ocorre porque os poderes constituídos do atual status quo se
enxergam sempre como bons moços. Seus eventuais conflitos têm sempre um teor
paternalista, pedagógico e/ou humanitário.
Todos sabem, por
exemplo, que a invasão dos EUA ao Afeganistão foi feita com o único e exclusivo
intuito de assegurar os direitos das pobres meninas e mulheres afegãs. Se por
vezes essas meninas e mulheres são atingidas pelas balas, pelas bombas, ou mesmo
pelos avanços sexuais indesejados dessas forças de intervenção militar
beneficente, é apenas um fruto infeliz do acaso. Quaisquer inimizades
schmittianas que o Ocidente venha a ter são prontamente disfarçadas pelo véu
popperiano do “Paradoxo da Intolerância”: não se pode tolerar o intolerante.
Mas é claro, o intolerante é sempre o outro.
Apesar de suas
bravatas, nem mesmo figuras erráticas como Elon Musk fogem desse padrão,
devendo sempre deixar encobertos quaisquer interesses particulares escusos. Por
isso mesmo, em seu discurso, a desobediência às ordens do judiciário brasileiro
não é movida por desdém e ganância, mas por coragem e compaixão.
Neofilibusteiros adoram apresentar-se como salvadores de pátrias que sequer são
suas. Assim, VMusk não declara o povo brasileiro como seu inimigo, mas o gesto
não deve ser recíproco. Contra certos inimigos, o caminho para a vitória não
passa pela conciliação.
O final de William
Walker foi bastante trágico. Ou não. Depende do ponto de vista. Após uma última
tentativa fracassada de conquistar a América Central, William Walker foi
capturado e fuzilado pela marinha britânica em Honduras. Anos antes, havia sido
derrotado pelas forças do general hondurenho Florencio Xatruch, jurista de
formação, um sujeito de cabelo e barba cheios e vistosos.
Elon Musk deveria
aprender com o exemplo de William Walker. Assim como Deleuze imagina “um Hegel
filosoficamente barbudo, um Marx filosoficamente glabro, do mesmo modo que uma
Gioconda bigoduda”, não é difícil imaginar um novo Xatruch, brasileiro, literalmente
sem barba e cabelo, pelo qual Elon Musk vem sendo derrotado.
• 5 perguntas para entender embate entre
Elon Musk e Alexandre de Moraes
A rede social X emitiu
nesta quinta-feira (29/08) um comunicado sobre a possibilidade de ser bloqueada
no Brasil.
A expectativa, que
gerou grande repercussão entre muitos dos mais de 22 milhões de brasileiros na
rede, surge após a plataforma declarar que não cumprirá as determinações
emitidas pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Na quarta-feira
(28/08), o ministro emitiu uma intimação direcionada ao bilionário Elon Musk,
proprietário da X (anteriormente conhecida como Twitter), exigindo que fosse
designado um representante legal no Brasil dentro de 24 horas.
O descumprimento dessa
ordem, de acordo com a notificação, poderia resultar na suspensão da rede
social no país.
“Nos próximos dias,
publicaremos todas as exigências ilegais do Ministro e todos os documentos
judiciais relacionados, para fins de transparência. Ao contrário de outras
plataformas de mídia social e tecnologia, não cumpriremos ordens ilegais em
segredo”, escreveu a conta de relações internacionais da plataforma.
Este é o capítulo mais
recente de um embate entre o empresário sul-africano-canadense e o ministro
brasileiro. Abaixo, relembramos os episódios que culminaram na possibilidade da
suspensão do X no Brasil.
• 1. Como embate entre Moraes e Musk
começou?
Em 8 de janeiro de
2023, uma multidão de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, insatisfeitos
com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência, invadiu o Congresso
Nacional e o Supremo Tribunal Federal, e vandalizou símbolos da República.
Após esse episódio, o
STF intensificou as investigações sobre a disseminação de conteúdos falsos e o
possível financiamento de grupos que ameaçam a democracia brasileira.
O ministro Alexandre
de Moraes, relator dos inquéritos que apuram a disseminação de fake news,
milícias digitais e atos golpistas, ordenou o bloqueio de diversos perfis em
redes sociais administrados por usuários acusados de atentar contra a
democracia brasileira e o processo eleitoral.
As ordens emitidas
pelo ministro geraram repercussão negativa entre parte dos apoiadores de
Bolsonaro e eleitores da ala direitista da política brasileira, que alegavam
que as medidas violavam o direito à liberdade de expressão.
Enquanto isso, Moraes
contou com o apoio dos demais ministros do STF, que ressaltaram que a liberdade
de expressão não deve ser confundida com a permissão para desrespeitar leis ou
promover ideais antidemocráticos.
Como proprietário da
rede social X, Elon Musk concordou com os apoiadores de Bolsonaro e acusou o
ministro brasileiro de censura. A plataforma não retirou do ar os perfis,
descumprindo as decisões do STF.
• 2. Por que Elon Musk fechou escritório
do X no Brasil?
Em 15 de agosto,
Alexandre de Moraes aumentou de R$ 50 mil para R$ 200 mil a multa diária
aplicada ao X por descumprir suas decisões. O ministro havia determinado que a
rede social bloqueasse o perfil do senador Marcos do Val (PL-ES) e de outros
investigados.
Do Val é investigado
por obstruir investigações sobre as invasões de 8 de janeiro ao Supremo e
Congresso Nacional.
Pouco depois, em 17 de
agosto, a rede social anunciou, por meio de uma publicação na própria
plataforma, o fechamento de seu escritório no Brasil, alegando ameaças de
prisão contra a responsável pela rede no país, Rachel de Oliveira Villa Nova
Conceição, por não cumprimento de decisões judiciais. Mesmo com o encerramento
das atividades administrativas, a rede social continuaria funcionando
normalmente.
Em suposto despacho
divulgado pelo X, Moraes teria afirmado que a representante da empresa no
Brasil agiu de má-fé, tentando evitar a notificação da decisão proferida nos
autos, conforme noticiado pela Agência Brasil.
Sem a localização de
representantes da empresa, o ministro Moraes teria supostamente determinado a
prisão da representante legal por desobediência à determinação judicial e
aplicado multa diária contra a funcionária, ainda segundo o documento divulgado
pelo X.
A veracidade do
despacho não foi confirmada pelo STF. Procurada pela Agência Brasil, a
assessoria de imprensa do Supremo informou que a Corte não vai se manifestar
sobre o tema.
"Como resultado,
para proteger a segurança de nossa equipe, tomamos a decisão de encerrar nossas
operações no Brasil, com efeito imediato. O serviço X continua disponível para
a população do Brasil. Estamos profundamente tristes por termos sido forçados a
tomar essa decisão. A responsabilidade é exclusivamente de Alexandre de
Moraes", disse o comunicado da rede social.
• 3. Por que Alexande de Moraes ameaçou
bloquear o X?
Em resposta, Moraes
determinou no dia 29 de agosto que o X nomeasse em 24 horas um novo
representante legal no Brasil, conforme exigido pela legislação local.
A intimação foi feita
por uma postagem no perfil oficial do Tribunal na própria rede social.
O ministro advertiu
que, se a empresa não o fizesse, ele poderia determinar que a rede social fosse
imediatamente tirada do ar.
Em site oficial, o STF
afirma que ''Musk é investigado no Inquérito (INQ) 4957, que apura a suposta
prática dos delitos de obstrução à Justiça, organização criminosa e incitação
ao crime.''
Como forma de 'cobrar
multas' aplicadas contra a rede social X por descumprir decisão judicial,
Alexandre de Moraes também decidiu bloquear as contas da empresa Starlink, de
Elon Musk, no Brasil.
"Essa ordem é
baseada em uma determinação infundada de que a Starlink deve ser responsável
pelas multas aplicadas —de forma inconstitucional— contra o X", divulgou a
empresa. O STF disse "não ter essa informação".
• 4. Como Elon Musk reagiu?
Elon Musk reagiu à
determinação com uma série de posts sobre Alexandre de Moraes na rede social.
Entre as publicações, estão memes que comparam o ministro ao vilão Voldemort,
dos filmes da série Harry Potter, e outros ataques diretos, como o que diz que Moraes
é uma 'vergonha para as togas de juízes'.
Não é a primeira vez
que Musk faz postagens citando diretamente o magistrado. Em abril deste ano, o
empresário utilizou o próprio perfil no X para atacar Moraes e ameaçar não mais
cumprir suas ordens judiciais.
"Por que você
está exigindo tanta censura no Brasil?", perguntou a Musk a Moraes.
Horas depois, Musk
ameaçou reativar contas no X anteriormente bloqueadas após decisões judiciais.
• 5. Como X pode ser bloqueado?
Na quinta (29/08), o X
postou uma mensagem na plataforma sugerindo que não cumpriria a determinação de
Moraes de indicar um representante legal para a empresa no Brasil.
"Em breve,
esperamos que o Ministro Alexandre de Moraes ordene o bloqueio do X no Brasil –
simplesmente porque não cumprimos suas ordens ilegais para censurar seus
opositores políticos. Dentre esses opositores estão um Senador devidamente
eleito e uma jovem de 16 anos, entre outros", diz o comunicado da rede
social.
O processo de bloqueio
no Brasil, como em casos anteriores, começa com a Anatel, que recebe uma ordem
judicial do STF e a repassa às operadoras de telecomunicações.
A Anatel comunica a
necessidade de cumprimento da ordem e acompanha a implementação.
O bloqueio geralmente
ocorre via endereços IP, impedindo o acesso ao site. Em alguns casos, pode ser
necessário reconfigurar rotas de tráfego para evitar o acesso por IPs não
bloqueados.
O uso ainda poderia
acontecer via VPN, já que bloqueá-las completamente seria um desafio, já que
existem muitos provedores e tecnologias distintas, conforme explica o professor
de Engenharia de Computação e Ciências da Computação no Insper, Rodolfo Avelino,
em entrevista recente à BBC News Brasil.
No passado, decisões
judiciais já barraram também o uso de VPN. Em maio de 2023, Alexandre de Moraes
publicou um despacho em que ameaçava retirar o Telegram do ar por causa de uma
mensagem enviada aos usuários contra o projeto de lei que ficou conhecido como
PL das Fake News.
O bloqueio nunca
aconteceu de fato, mas no documento o ministro do STF proibiu o uso de VPN para
acessar o aplicativo caso isso acontecesse.
Entre os países que
bloqueiam o acesso ao X atualmente estão China, Irã, Coreia do Norte, Rússia,
Turcomenistão e Mianmar. O nível de controle à conexão à rede social varia de
acordo com a nação.
Fonte: A Terra é
Redonda/BBC News Brasil
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