A República em seu labirinto: Congresso
empoderou-se em um sistema corrupto e disfuncional
Olhando para a
história das instituições, o poder Executivo sempre foi predominante no nosso
presidencialismo hipertrofiado. Em particular, o Executivo sempre teve a
responsabilidade de definir o Orçamento Federal. O predomínio do Executivo
exacerbou-se durante os 21 anos de ditadura, que manteve sob controle os outros
dois poderes, eventualmente intervindo na composição e na forma de atuação
destes últimos. Esta extrema centralização do poder gerou na sociedade a
necessidade de reequilibrar as forças, que se traduziu em uma forte redução do
poder do Executivo na Constituinte de 1988. Não vou entrar nos detalhes da
legislação então promulgada, mas apenas registrar que o Congresso passou a
interferir pesadamente na definição do orçamento proposto pelo Executivo.
Soma-se a esta nova
distribuição de poderes um dado marcante na redemocratização: a pulverização
dos partidos, fruto de anos de redução artificial da representação política em
um bipartidarismo forçado, e a própria anulação do fazer político. Ao se tirar
a tampa da panela de pressão com a revogação do Ato Institucional número dois,
surgiram agremiações em profusão, em sua quase totalidade sem identidade
programática e respondendo a composições de forças políticas locais que se
somavam em partidos nacionais que eram pouco mais do que aglomerados
oportunistas.
Três exceções marcaram
este período de reorganização partidária: o Partido dos Trabalhadores (PT), o
Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) e o Partido Democrático
Trabalhista (PDT). Este último carregou uma mistura de adesões sem princípios,
com definições programáticas de caráter nacionalista, muito centrado na figura
de seu criador e líder carismático, Leonel Brizola. Os dois primeiros eram
partidos com definições programáticas mais abrangentes, o primeiro mais à
esquerda, exprimindo posições voltadas, sem muita precisão, à construção de um
país socialista e o segundo mais voltado a um desenvolvimento econômico de
caráter liberal, muito embora tivesse, inicialmente, pelo menos, posições
reformistas do ponto de vista social. Não por acaso, o PSDB e o PT foram
protagônicos ao longo de um largo período, de 1993 a 2016, disputando todas as
eleições presidenciais. Também não por acaso, ambos os partidos não conseguiram
eleger bancadas na Câmara e no Senado que dessem suporte coerente à execução
dos programas de seus eleitos para a presidência da República.
A fragmentação
partidária não se manifestava apenas pelo número de partidos, mas também pelas
inúmeras divisões internas em cada um. O maior deles, o PMDB, aglutinou antigos
opositores ao regime militar oriundos de tudo quanto é nuance política, da
direita (o clã Barbalho) ao centro-esquerda (Miguel Arraes), passando por
políticos do centro democrático (Pedro Simon) e um grande número de
fisiológicos que aderiram ao partido quando este foi para o governo Sarney. O
sistema eleitoral herdado do regime militar e não alterado pela Constituinte
privilegiou os políticos que se elegiam pelos chamados “rincões”. Em pequenos
ou mais atrasados Estados, sobretudo do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, mas
também em áreas rurais de outras regiões, o controle do eleitorado por
oligarquias locais seguia vigente, como já fora antes no regime militar. E
nestes Estados, o número de eleitores por deputado eleito era muito menor do
que nos Estados mais populosos e desenvolvidos do Sudeste e do Sul. Este
casuísmo eleitoral permitiu a dominância de políticos paroquiais, com “currais
eleitorais” nos rincões. Nada disso faciliatava a formação de partidos com
identidade política e programática nacionais.
Nos seus 8 anos de
governo, o presidente Fernando Henrique Cardoso teve que depender de alianças
de partidos para poder governar com o apoio do Congresso. Isto gerou, entre os
estudiosos da política, o conceito de “presidencialismo de coalizão”. FHC governou
com um forte apoio de partidos menos definidos programaticamente, mas
ideologicamente conservadores e identificados com o liberalismo, como o Partido
do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e o Partido Frente Liberal (PFL).
Estes partidos (e outros de menor expressão) não davam seu apoio a um programa
do PSDB, mas buscavam um lugar ao sol nas benesses do poder. A distribuição de
cargos e nomeações de parentes e apaniguados de deputados e senadores foi a
moeda de troca para o apoio. O caso mais notório, porque exigia maioria de 2/3
do Congresso para aprovar um Projeto de Emenda Constitucional, foi a
instituição da reeleição para cargos executivos. A compra de votos para
assegurar a reeleição de FHC só não resultou em um processo judicial porque o
controle dos instrumentos pelo executivo era forte. O PT, o PSB e o PDT ficaram
clamando no deserto, denunciando a patifaria. Mas o mais importante é que se
estabeleceu um precedente e os políticos fisiológicos de todos os lados
começaram a lamber os beiços e afiar as garras.
A eleição de Lula
colocou o PT e os partidos que o apoiaram no segundo turno, PSB, PDT e PCdoB no
governo, mas claramente não no poder. A maioria da Câmara e do Senado era de
oposição conservadora, muito embora a vertente mais importante era a fisiológica
e muitos estavam prontos a aderir; por um preço, é claro. A posteriori soube-se
que o “primeiro-ministro” de Lula, José Dirceu, propôs a solução tucana para
governar, chamando o PMDB e alguns partidos de centro direita para o governo,
mas que Lula e o PT não toparam esta “compra de votos” no atacado. Esta
proposta de frente de governo fazia sentido do ponto de vista pragmático, até
porque o PT e o presidente Lula já tinham abandonado as propostas mais ousadas
do programa da campanha antes mesmo da eleição, com o manifesto que ficou
conhecido como “Carta aos brasileiros” e que poderia ser melhor intitulada como
“Carta aos banqueiros”. A nomeação de Palocci (inspirador e provável autor da
carta) como ministro da Fazenda e de alguns ministros ligados a setores econômicos
fortes com apoio de bancadas importantes como Roberto Rodrigues e Luiz Fernando
Furlan, vinculados ao agronegócio, mostravam uma intenção de buscar conciliar
interesses de setores da classe dominante. Foi uma manobra mal concebida, pois
mesmo com barretadas seguidas a estes setores, o reflexo no Congresso não era
automático, faltava a mediação política.
O governo Lula não
teve dificuldades em aprovar seu primeiro projeto parlamentar importante, a
Reforma da Previdência, já que o seu caráter de retrocesso de direitos era
visto com simpatia pelo empresariado, pela mídia e pela maioria dos
parlamentares. Para os setores mais à esquerda do PT, o choque foi grande e
levou ao racha que criou o PSOL, mas o impacto foi mais aparente do que de
fundo. O PT, inclusive várias de suas alas mais esquerdistas, entubou a crise,
engoliu em seco e seguiu no governo, aceitando que era o preço a pagar para
avançar com os programas sociais. Daí para frente foi preciso fazer mais para
garantir os votos necessários ao governo. Foi quando surgiram os pagamentos
dirigidos a alguns partidos e à deputados individualmente, que ficaram
conhecidos como “mensalão”. Como o próprio presidente Lula admitiu mais tarde,
o governo fez “o que todos fizeram antes”, ou seja, pagamentos a um “caixa
dois”. Considerado um crime menor, esta forma de corrupção dos parlamentares,
feita com recursos públicos, acabou gerando a primeira grande crise dos
governos petistas, com direito a julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, que
condenou um punhado de deputados e, sobretudo, três personagens importantes do
PT: José Dirceu, José Genoíno e o tesoureiro Delúbio Soares.
A eleição de Dilma
Roussef não foi acompanhada por uma melhoria na força parlamentar dos partidos
de esquerda, que continuaram amplamente minoritários. O problema de governar em
minoria parlamentar continuou presente e o modelo de compra de apoios manteve-se
semelhante, só que em escala maior. Recursos da Petrobras e outras empresas
estatais foram desviados em larga escala para comprar, não mais no varejo, mas
no atacado, envolvendo partidos fisiológicos que abundavam no Congresso. A
moeda de troca eram contratos das estatais com empreiteiras poderosas que, é
claro, ganhavam, através de superfaturamentos de projetos, muito mais do que
pagavam a partidos e congressistas individuais. Tudo isso explodiu no inquérito
chamado de Lava Jato, amplamente explorado pela mídia para destruir o governo
Dilma, que estava fortemente hostilizado pelo empresariado por suas orientações
heterodoxas na economia. Apesar disto, Dilma se reelegeu (batendo o tucano
Aécio Neves no fotochart) e teria completado o seu segundo mandato não fosse o
rompimento com o personagem chave do fisiologismo, o presidente da Câmara
Eduardo Cunha. Os parlamentares beneficiários da distribuição de benesses não
teriam dado ouvidos ao clamor da mídia incensadora do nefando Sérgio Moro, se
não tivesse havido o impasse entre Cunha e o PT e a decisão do primeiro de
aderir ao golpe.
Casuísmos legais (as
chamadas “pedaladas fiscais”) e as articulações do vice-presidente Michel
Temer, somados aos movimentos de massa da direita renascida nas manifestações
de 2013 e a gritaria cínica da mídia (que não fez nada nem de longe parecido
nos escândalos anteriores do Banrisul e outros) criaram o clima para a
defenestração de Dilma. Os fisiológicos no Congresso farejaram o fim da era
petista e completaram o quadro do impeachment da nossa primeira presidente.
Dilma ainda tentou deter a debandada, cedendo à ofensiva parlamentar para
ampliar o controle da execução do orçamento, tornando obrigatórias as emendas
individuais e de bancada. Mas foi muito tarde.
Não discuto aqui o
cinismo de todos estes personagens, a começar pelo Moro, explorando e
extrapolando um caso real de corrupção. Outros casos existiram antes sem este
estardalhaço e desenlace, mas a composição das forças políticas e econômicas
era outra e ignorou as manobras escusas de Sarney e FHC. Também foi outro o
quadro político no impeachment de Collor, já que este não tinha oposição
política nem ideológica nas classes dominantes ou na mídia. Collor caiu por
soberba, por tentar ser mais do que podia e sem fazer as concessões necessárias
ao fisiologismo. Tentou pressionar o Congresso, apelando para o “povo”, mas não
tinha base para tanto. Jânio Quadros já tinha pagado com o seu mandato uma
jogada semelhante, mas a renúncia o livrou de um impeachment. Temer governou,
no seu interregno, de acordo com banqueiros e empresários; fez um estrago nos
direitos sindicais e trabalhistas e não teve problemas em arregimentar os
partidos de direita para ter apoio no Congresso. Como ex-presidente da Câmara,
ele era versado na arte de distribuir benesses. Apesar de flagrado em
negociações de corrupção com o dono da JBS, livrou-se de qualquer percalço até
deixar a presidência.
O trauma do
impeachment (o segundo em 15 anos) deu mais fôlego ao Congresso, em um
movimento de empoderamento que foi num crescendo no governo do energúmeno, Jair
Bolsonaro. Apesar de ter uma bancada de seguidores surpreendentemente forte nas
eleições de 2018 embora espalhados em várias legendas. Bolsonaro não tinha um
partido forte que o apoiasse e tentou governar através de alianças com grupos
de interesse e ignorou os partidos. Queria governar com as bancadas BBB (Boi,
Bala e Bíblia), suprapartidárias, mas estas só se uniam em seus interesses
específicos. Tentou pressionar o Congresso, apelando diretamente a seus
seguidores, mas teve mais derrotas que vitórias, fora a Reforma da Previdência.
Com a queda vertiginosa de apoio na mídia convencional e uma crescente oposição
à sua postura na pandemia, Bolsonaro acabou se entregando nas mãos de Artur
Lira para não ser impichado e o empoderamento do Legislativo frente ao
Executivo acelerou-se. Bolsonaro, apesar da forte e sinistra base parlamentar
que dispunha, não encontrou eco para suas manobras golpistas. O instinto dos
ratos deve ter acometido os fisiológicos que puderam sentir o cheiro de
queimado. Entregar o poder ao candidato a ditador era dar um tiro no pé, deve
ter calculado a maioria. Melhor um Lula enfraquecido no governo, passível de
ser chantageado pela maioria parlamentar, do que um Bolsonaro com apoio militar
e miliciano, disposto a assumir o poder total.
E assim chegamos ao
labirinto no seu formato atual.
·
A que ponto chegamos!
As emendas individuais
dos parlamentares não são uma novidade, mas as regras da sua definição e
liberação vêm sendo modificadas ao longo dos últimos 10 anos. Inicialmente os
valores eram relativamente pequenos, condicionados a negociações com
ministérios para definir escopo e prioridades e sujeitos à vontade do Executivo
para serem liberados. E viraram moeda de troca para votações no Congresso. As
emendas individuais, hoje, aumentaram muito em valor, tornaram-se impositivas e
não passam mais por negociações sobre conteúdo e prioridades com o Executivo.
Esta mudança, aparentemente, é de caráter democrático, já que igualava o acesso
a todos os parlamentares, com os mesmos valores, anulando o balcão de negócios
do executivo na sua relação com o Congresso. Na prática, no entanto, o efeito
desta modalidade de peça orçamentária foi nefasto para o país. Não se trata
mais do Congresso alterar a Lei Orçamentária Anual, direito assegurado na
Constituição. O projeto orçamentário do Executivo responde a uma lógica macroeconômica
e social inspirada em uma estratégia de desenvolvimento e um diagnóstico das
carências maiores da população. As alterações introduzidas pelo congresso têm
sido, frequentemente, uma série de casuísmos para privilegiar setores da
economia e da população, pervertendo a matriz de programação oferecida pelo
Executivo. Apesar disso, o escopo da LOA se mantém, mais ou menos aleijado,
nacional.
As emendas individuais
(e as outras que analisaremos adiante) ferem o espírito do funcionamento do
Executivo nacional, com uma crescente apropriação de recursos para projetos
pulverizados, dirigidos para aplicação nas bases eleitorais de cada parlamentar,
em temas e públicos escolhidos por eles. Os congressistas argumentam que eles
conhecem melhor do que o executivo as necessidades do povo, mas a lógica dos
projetos nas emendas sempre foi a visibilidade e sua conseguente apropriação
eleitoral. E, não esqueçamos, a lógica de facilitar o financiamento de empresas
executoras próximas aos proponentes. Alguns chamaram este desvio de
“municipalização do orçamento”, mas o epíteto me parece incorreto. Um orçamento
municipal trabalha, ou deveria trabalhar, em um escopo abrangendo a totalidade
dos problemas da população que nele vive. Se elaborado com participação da
vereança, ele traduz uma visão de diferentes setores que se expressam
politicamente nas eleições locais. As emendas individuais ao orçamento da União
não têm nada a ver com o orçamento municipal, mas com o interesse dos
parlamentares que as definem. É uma extrema pulverização da utilização dos
recursos.
Por outro lado, a
emenda individual tornou-se um poderoso instrumento de manipulação das
eleições, com vantagens cada vez maiores para os que buscam reeleição em
comparação com os outros candidatos. Estamos em pleno processo de formação de
“currais eleitorais” de novo tipo e os parlamentares de hoje assumem o posto
dos antigos “coronéis”, oligarcas que controlavam uma base de eleitores com a
distribuição de prendas em cada pleito. Finalmente, mas não por último, este
tipo de emendas, com recursos dirigidos a prefeituras ou, mais frequentemente,
a organizações não governamentais controladas ou próximas dos parlamentares que
as formularam, tornaram-se instrumentos de corrupção direta, com desvio de
recursos, superfaturamentos, favorecimento de empresas executoras. Uma
supermáquina de apropriação indébita de recursos públicos, corrupção diluida em
milhares de emendas ao longo dos anos.
As emendas individuais
foram seguidas pelas emendas de Bancada e de Comissão (forma de organização
temática do Congresso). Supostamente, estas emendas deveriam aprovar projetos
de caráter nacional ou regional, com temas que aparecem nas LOAs ou não. De fato,
estas emendas acabaram servindo para novas pulverizações de recursos, desta vez
em negociações internas em cada partido ou em cada comissão parlamentar, sem
qualquer referência quer às prioridades definidas nas LOAs, quer a qualquer
outra lógica estratégica para o país. Elas serviram para reforçar o poder dos
dirigentes de bancadas e de comissões, em balcões de negócios para garantir
apoios aos chefes. Logo a emenda de bancada tornou-se também impositiva,
retirando qualquer capacidade de negociação do Executivo entorno a suas
prioridades orçamentárias. Não contentes com este formato e buscando despistar
possíveis investigações do Tribunal de Contas da União, os parlamentares
criaram as emendas de relator (também conhecidas como emendas secretas) e as
emendas “PIX”. Nestas não há qualquer transparência: não se sabe quem fez a
proposta, quem recebeu o dinheiro, qual a natureza do projeto nem quem o
executa. É mole ou querem mais? Tem mais. As emendas de relator, estão
totalmente sob o controle do relator da LOA, hoje sob as asas dos presidentes
da Câmara e do Senado. Trata-se de um espetacular instrumento de controle
político das casas parlamentares por seus presidentes, dando a Lira e Pacheco o
poder de pressionar o Executivo como nunca no passado.
No frigir destes ovos,
acabamos por chegar ao descalabro atual, quando os parlamentares controlam um
orçamento (pulverizado em valores e em foco) de 50 bilhões de reais por ano,
enquanto o governo federal tem apenas 70 bilhões para investimentos não
carimbados constitucionalmente ou por alguma legislação. Enquanto isso, a
Reforma Tributária proposta pelo governo federal foi profundamente deformada
pelos parlamentares, para isentar setores da economia com os quais tem relações
ou apoio financeiro. Com isso, a fonte de recursos, já bem minguados pelas
emendas, fica ainda mais precária, já que os parlamentares decidiram
privilegiar, por exemplo, o agronegócio, com amplas isenções de impostos. Por
um lado o Congresso asfixia o Executivo enquanto, por outrol lado suga seus
recursos sem dó nem piedade. Isto não é apenas um problema do Lula ou do
governo petista. Será o problema de qualquer governo que pretenda cumprir o seu
papel constitucional.
Estamos no pior dos
mundos com este Legislativo que se locupleta com os recursos públicos e, sem
qualquer constrangimento, cria dificuldades para o Executivo governar. E
denuncia qualquer limitação na ação do governo, como se não tivesse nada a ver
com ela. Não estamos em um regime parlamentarista, onde um primeiro-ministro
escolhido pelo Congresso apresenta um projeto orçamentário cuja
responsabilidade é do próprio parlamento. Em um regime parlamentarista, esta
mixórdia orçamentária seria claramente de responsabilidade do Congresso e os
eleitores saberiam de quem cobrar as desgraças. No nosso regime
presidencialista atrofiado, os eleitores cobram as desgraças do Executivo, sem
noção de que o Legislativo é o grande responsável por elas.
Para escapar deste
labirinto vai ser preciso um tsunami eleitoral capaz de criar uma base
parlamentar que decida se empenhar em uma reforma política profunda,
redefinindo as relações de força entre os poderes da República. A eliminação de
todas estas emendas casuísticas seria um passo fundamental para reestabelecer a
capacidade do Executivo governar, mas outras questões teriam que vir à baila e
todas elas espinhosas por derrubar privilégios parlamentares acumulados ao
longo do tempo. Seria preciso, por exemplo, redefinir quantos deputados teria
cada Estado, seguindo a lógica republicana de termos um só coeficiente
eleitoral em todo o país, ou seja, cada deputado seria eleito pelo mesmo número
de eleitores. Se adotada esta norma, e mantido o número atual de deputados, o
rateio significaria diminuir o número de deputados em Estados menos populosos e
aumentá-lo naqueles com mais eleitores. Imaginem a gritaria! A alternativa
seria ampliar o número total de deputados, em uma Câmara que já é muito
numerosa (e dispendiosa). Outras regras de difícil aprovação teriam que ser
aprovadas, como cláusulas de barreira mais restritivas para diminuir a
fragmentação partidária. Ou a redefinição do processo eleitoral, adotando
sistemas mais racionais como o sistema proporcional misto, com voto em listas
partidárias e em candidatos individuais.
A lista das reformas a
serem discutidas e implementadas para aperfeiçoar o nosso sistema político e
eleitoral é enorme e esbarra sempre na contradição de fundo: quem teria que
cortar na carne são os próprios congressistas, eleitos neste sistema viciado de
hoje. No meio deste caos, é importante ressaltar o papel desejável do
Judiciário, em particular do Supremo Tribunal Federal. O STF, por iniciativa do
ministro Flávio Dino, suspendeu as emendas, primeiro as de Relator e Pix e,
depois mesmo as individuais e de bancada. A posição foi endossada pelo
plenário, com o argumento da falta de transparência e falta de critério na
definição dos abjetivos, temas e escopo das emendas. No entanto, o STF não se
debruçou na entorse aplicada na legislação constitucional que dá ao Executivo o
direito de definir o ordenamento orçamentário, garantindo-se a apreciação das
duas casas na votação da LOA. O “acordo” para normalizar e regulamentar as
emendas, após negociações entre os três poderes, restringiu-se a discutir a
necessidade de critérios “técnicos” e regras de transparência, mas nada foi
feito para evitar a presente diluição dos gastos orçamentários, que quase
igualam os do Executivo, em projetos paroquiais.
A retaliação do
Legislativo contra o Judiciário aparece em vários projetos de lei que vão desde
a roubar o papel do STF como árbitro final do que é ou não legal no país até
controlar a liberação de verbas pedidas pelo Judiciário. Sem falar nas
propostas de impeachment contra ministros que não agradam os parlamentares. A
luta de foice do Legislativo para ampliar o seu poder de mando no país e
dominar o Executivo e o Judiciário não tem prazo para terminar e o que está em
jogo é algo mais profundo: qual o regime político que devemos adotar? Na
prática, estamos longe do que define a Constituição e aquilo que mais de um
referendo confirmou. O nosso regime é presidencialista, ou deveria ser. Estamos
vivendo um crescente processo paulatino de nos tornarmos um regime
parlamentarista bastardo, onde o legislativo tem todos os bonus e nenhum dos
ônus. E não há reação do STF em realção a isto.
Dar a volta neste rumo
é difícil de realizar, mas algo terá que ser feito ou a crise institucional que
atrofia o Executivo nos levará para um buraco ainda maior do que aquele onde
estamos.
Fonte: Por Jean Marc
von der Weid, em Outras Palavras
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