sábado, 31 de agosto de 2024

D. Hélder Câmara, voz profética da justiça e da paz

Numa Igreja carecida de profetas, é bom lembrar alguns dos que corajosamente deram testemunho e inspiraram a ação de tantas pessoas, crentes ou não. Um deles é, sem dúvida, o bispo Hélder Câmara (1909-1999), brasileiro, defensor intrépido dos direitos humanos e, nesse sentido, cidadão do mundo. Com o Papa Francisco abriu-se o processo da sua canonização.

O meu conhecimento direto de D. Hélder aconteceu algures na segunda metade dos anos 80, numa entrevista de cerca de uma hora, que lhe fiz como jornalista do Jornal de Notícias. Ele, então já emérito e liberto das suas funções de arcebispo de Olinda e Recife, no Nordeste do Brasil, encontrava-se em Fátima e foi lá o nosso encontro.

Era um fim de tarde, e colocaram-nos no canto de uma sala mal iluminada, num casarão inóspito, daqueles construídos para centenas ou milhares de seminaristas. Nisto entrou um homem de pequena estatura e ar frágil, e apresentou-se sem cerimónias. Se não levasse já algum conhecimento de quem se tratava, seria levado a duvidar sobre o que poderia vir daqueles “dez reis de gente”.

Mal tive tempo de dizer ao que vinha e de colocar a primeira questão. Recordo o bispo a pôr-me, logo de início, ‘no lugar’: meu caro, você vive num contexto que não lhe permite compreender o que é uma realidade de pobreza e de fabricação de pobres. Sabe que nos últimos anos há empregos permanentes de pessoas que, mesmo em pequenas quitandas, trabalham só a atualizar preços, porque no fim do dia esses preços já não são os mesmos da manhã e é preciso recomeçar?! E, à medida que os preços sobem, encurta-se o número dos que os podem suportar.

Mas, dessa entrevista, recordo, acima de tudo, a transformação súbita da pessoa entrevistada, à medida que falava: a descrição da situação dos que lhe batiam à porta a pedir apoio ou simplesmente para desabafar e a denúncia de um sistema que infernizava a vida de cada vez mais pessoas e aumentava o número dos pobres era ilustrada com casos e nomes e com tal veemência e proximidade, que era difícil deixar alguém indiferente. As palavras eram como que ilustradas e reforçadas pela agitação do corpo e pela expressividade do rosto e das mãos, a ponto de, por várias vezes, me ter dado uma palmada na perna, para enfatizar algo que queria que eu registasse. Saí da entrevista com a dificuldade de pôr por escrito o calor e a força do que ouvira, mas tocado por um verdadeiro seguidor de Jesus.

Curiosamente, este 11º filho de uma família de 13, da classe média, foi um convertido à causa da justiça e da paz, já que os primeiros passos de padre, nos anos 30 do século passado, o viram próximo a ideologias autoritárias e extremistas que vingavam na Europa. Mas o contacto com a realidade, a descoberta de autores como Maritain e, sobretudo, já nos anos 60, a participação em grupos sobre “a Igreja dos pobres”, no Concílio Vaticano II, fizeram-no reler o evangelho e mudar de vida.

Quando o Papa Paulo VI o envia para a capital do Nordeste (Recife), em 1964, ele começa desde o início, a definir um caminho que coloca “nas mãos de Deus” (o seu lema episcopal): deixa o “palácio episcopal” e vai viver num espaço simples e despojado, concretizando, desse modo o que descobriu e propôs aos padres conciliares, em Roma.

Hélder Câmara estava na mesma linha de coerência quando veio a assinar, em Roma, a 16 de novembro de 1965, com 39 padres conciliares, o documento “Pacto das Catacumbas”, o qual começava com este compromisso:

“Nós, Bispos, reunidos no Concílio Vaticano II, esclarecidos sobre as deficiências da nossa vida de pobreza segundo o Evangelho; incentivados uns pelos outros, numa iniciativa em que cada um de nós quereria evitar a singularidade e a presunção; unidos a todos os nossos Irmãos no Episcopado; contando sobretudo com a graça e a força de Nosso Senhor Jesus Cristo (…) comprometemo-nos ao que se segue: 1) Procuraremos viver em sintonia com o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue. (…)”.

Nesse documento, os subscritores assumiam ainda o compromisso de servir os pobres, lutar pela justiça, ajudar os que sofrem, cooperar mais do que liderar… Em suma, fundar “uma Igreja pobre para os pobres”.

Uma tal opção custou caro ao bispo de Olinda e Recife, desde logo porque, em abril de 1964, os militares fizeram um golpe de estado e instituíram um regime ditatorial altamente repressivo, para o qual o prelado nordestino passou a constituir um perigo, pela ação que começou a desenvolver. Foi justamente nesse serviço aos pobres que procurou ser de promoção e libertação das pessoas, que o levou, um dia, a concluir : “Quando eu dou comida aos pobres, chamam-me de santo, mas quando pergunto porque são pobres, chamam-me de comunista”.

Ele tinha claro que o referencial da sua ação era “o reino das bem-aventuranças”, não este ou aquele regime. E assim explicava, numa das circulares que escrevia e difundia regularmente através da rádio: “Quem ama, de fato, a democracia, não pode temer a conscientização. Conscientização não é despertar de consciência crítica? Como é possível chamar de comunista a quem se entrega ao trabalho de conscientizar, se o comunismo, ditadura de esquerda, teme tanto a conscientização quanto as ditaduras de direita?”.

Assim como o bispo Hélder Câmara nunca fugiu da dimensão política da ação humana, também nunca desvalorizou a transformação da própria Igreja de que era membro destacado. Ele teve um papel ativo no lançamento da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e, mais tarde, no processo que conduziu à estrutura do Conselho Episcopal Latino-americano e Caribenho, o CELAM, que tanta importância teve naquele subcontinente e fora dele.

Além de profeta, Hélder Câmara também foi um místico que enraizava a sua ação na oração e na meditação do evangelho, muitas vezes a altas horas da noite; e foi também um poeta, que traduzia em poemas os seus sofrimentos e os do seu povo, mas também o sonho de um mundo melhor e mais justo.

 

Fonte: 7Margens

 

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