D. Hélder Câmara, voz profética da justiça
e da paz
Numa Igreja carecida
de profetas, é bom lembrar alguns dos que corajosamente deram testemunho e
inspiraram a ação de tantas pessoas, crentes ou não. Um deles é, sem dúvida, o
bispo Hélder Câmara (1909-1999), brasileiro, defensor intrépido dos direitos
humanos e, nesse sentido, cidadão do mundo. Com o Papa Francisco abriu-se o
processo da sua canonização.
O meu conhecimento
direto de D. Hélder aconteceu algures na segunda metade dos anos 80, numa
entrevista de cerca de uma hora, que lhe fiz como jornalista do Jornal de
Notícias. Ele, então já emérito e liberto das suas funções de arcebispo de
Olinda e Recife, no Nordeste do Brasil, encontrava-se em Fátima e foi lá o
nosso encontro.
Era um fim de tarde, e
colocaram-nos no canto de uma sala mal iluminada, num casarão inóspito,
daqueles construídos para centenas ou milhares de seminaristas. Nisto entrou um
homem de pequena estatura e ar frágil, e apresentou-se sem cerimónias. Se não levasse
já algum conhecimento de quem se tratava, seria levado a duvidar sobre o que
poderia vir daqueles “dez reis de gente”.
Mal tive tempo de
dizer ao que vinha e de colocar a primeira questão. Recordo o bispo a pôr-me,
logo de início, ‘no lugar’: meu caro, você vive num contexto que não lhe
permite compreender o que é uma realidade de pobreza e de fabricação de pobres.
Sabe que nos últimos anos há empregos permanentes de pessoas que, mesmo em
pequenas quitandas, trabalham só a atualizar preços, porque no fim do dia esses
preços já não são os mesmos da manhã e é preciso recomeçar?! E, à medida que os
preços sobem, encurta-se o número dos que os podem suportar.
Mas, dessa entrevista,
recordo, acima de tudo, a transformação súbita da pessoa entrevistada, à medida
que falava: a descrição da situação dos que lhe batiam à porta a pedir apoio ou
simplesmente para desabafar e a denúncia de um sistema que infernizava a vida
de cada vez mais pessoas e aumentava o número dos pobres era ilustrada com
casos e nomes e com tal veemência e proximidade, que era difícil deixar alguém
indiferente. As palavras eram como que ilustradas e reforçadas pela agitação do
corpo e pela expressividade do rosto e das mãos, a ponto de, por várias vezes,
me ter dado uma palmada na perna, para enfatizar algo que queria que eu
registasse. Saí da entrevista com a dificuldade de pôr por escrito o calor e a
força do que ouvira, mas tocado por um verdadeiro seguidor de Jesus.
Curiosamente, este 11º
filho de uma família de 13, da classe média, foi um convertido à causa da
justiça e da paz, já que os primeiros passos de padre, nos anos 30 do século
passado, o viram próximo a ideologias autoritárias e extremistas que vingavam
na Europa. Mas o contacto com a realidade, a descoberta de autores como
Maritain e, sobretudo, já nos anos 60, a participação em grupos sobre “a Igreja
dos pobres”, no Concílio Vaticano II, fizeram-no reler o evangelho e mudar de
vida.
Quando o Papa Paulo VI
o envia para a capital do Nordeste (Recife), em 1964, ele começa desde o
início, a definir um caminho que coloca “nas mãos de Deus” (o seu lema
episcopal): deixa o “palácio episcopal” e vai viver num espaço simples e
despojado, concretizando, desse modo o que descobriu e propôs aos padres
conciliares, em Roma.
Hélder Câmara estava
na mesma linha de coerência quando veio a assinar, em Roma, a 16 de novembro de
1965, com 39 padres conciliares, o documento “Pacto das Catacumbas”, o qual
começava com este compromisso:
“Nós, Bispos, reunidos
no Concílio Vaticano II, esclarecidos sobre as deficiências da nossa vida de
pobreza segundo o Evangelho; incentivados uns pelos outros, numa iniciativa em
que cada um de nós quereria evitar a singularidade e a presunção; unidos a todos
os nossos Irmãos no Episcopado; contando sobretudo com a graça e a força de
Nosso Senhor Jesus Cristo (…) comprometemo-nos ao que se segue: 1) Procuraremos
viver em sintonia com o modo ordinário da nossa população, no que concerne à
habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue.
(…)”.
Nesse documento, os
subscritores assumiam ainda o compromisso de servir os pobres, lutar pela
justiça, ajudar os que sofrem, cooperar mais do que liderar… Em suma, fundar
“uma Igreja pobre para os pobres”.
Uma tal opção custou
caro ao bispo de Olinda e Recife, desde logo porque, em abril de 1964, os
militares fizeram um golpe de estado e instituíram um regime ditatorial
altamente repressivo, para o qual o prelado nordestino passou a constituir um
perigo, pela ação que começou a desenvolver. Foi justamente nesse serviço aos
pobres que procurou ser de promoção e libertação das pessoas, que o levou, um
dia, a concluir : “Quando eu dou comida aos pobres, chamam-me de santo, mas
quando pergunto porque são pobres, chamam-me de comunista”.
Ele tinha claro que o
referencial da sua ação era “o reino das bem-aventuranças”, não este ou aquele
regime. E assim explicava, numa das circulares que escrevia e difundia
regularmente através da rádio: “Quem ama, de fato, a democracia, não pode temer
a conscientização. Conscientização não é despertar de consciência crítica? Como
é possível chamar de comunista a quem se entrega ao trabalho de conscientizar,
se o comunismo, ditadura de esquerda, teme tanto a conscientização quanto as
ditaduras de direita?”.
Assim como o bispo
Hélder Câmara nunca fugiu da dimensão política da ação humana, também nunca
desvalorizou a transformação da própria Igreja de que era membro destacado. Ele
teve um papel ativo no lançamento da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e,
mais tarde, no processo que conduziu à estrutura do Conselho Episcopal
Latino-americano e Caribenho, o CELAM, que tanta importância teve naquele
subcontinente e fora dele.
Além de profeta,
Hélder Câmara também foi um místico que enraizava a sua ação na oração e na
meditação do evangelho, muitas vezes a altas horas da noite; e foi também um
poeta, que traduzia em poemas os seus sofrimentos e os do seu povo, mas também
o sonho de um mundo melhor e mais justo.
Fonte: 7Margens
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