sábado, 31 de agosto de 2024

Laís Martins: ‘Elon Musk não desafia apenas o STF – mas a soberania nacional’

Clientes da Starlink no Brasil receberam na noite de quinta-feira, 29, um e-mail inesperado. A empresa informava que continuaria prestando serviços, mesmo que gratuitamente, após a ordem judicial do ministro Alexandre de Moraes que congelou suas contas. A nota podia ter acabado ali, mas foi além. Criticou a “determinação infundada” e afirmou estar “comprometida em defender” os direitos dos clientes “protegidos por sua Constituição”.

Foi mais uma oportunidade que Elon Musk, o bilionário dono do Starlink e da rede social X, encontrou para bater no judiciário brasileiro – desta vez, mobilizando uma imensa base de clientes de seus satélites contra as decisões do STF.

Para especialistas ouvidas pelo Intercept Brasil, a postura de Musk deve ser entendida não apenas como um ataque ao Supremo – mas à própria soberania nacional.

“Nós podemos ter críticas às decisões de Moraes enquanto brasileiros e podemos discutir internamente. Mas o fato é que o Brasil hoje é uma democracia com instituições, com três poderes que tomam decisões sobre o que acontece no país”, diz Nina Santos, pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital, o INCT.DD.

“O que Musk faz é tentar se sobrepor a essas decisões. É dizer que ele, enquanto dono de uma plataforma digital, não é obrigado a obedecer a decisões das quais discorda”, disse Santos. “Trata-se de um empresário americano que acha que pode desrespeitar decisões de uma instituição brasileira”.

Até outubro de 2023, 90% das cidades da Amazônia tinham ao menos uma antena Starlink conectando-as à internet. Em um texto publicado em abril, Luã Cruz, coordenador de Telecomunicações e Direitos Digitais do Idec, alertou que depender exclusivamente da Starlink para garantir conexão nessas regiões poderia deixar a população “suscetíveis às vontades de um único indivíduo”. Foi o que aconteceu.

“A gente enquanto sociedade, e evidentemente com a responsabilidade maior dos poderes públicos, foi construindo essa infraestrutura de comunicação que hoje nos deixa muito vulneráveis”, analisa Santos.

Para a pesquisadora, é preciso olhar para a escalada nas tensões não como uma discordância entre Musk e o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes – mas como um episódio de desrespeito à soberania brasileira.

•        Sai X, entra Starlink

Intimado pelo perfil oficial do STF brasileiro no próprio X a indicar um representante legal no Brasil sob a pena de ter a plataforma suspensa, Elon Musk respondeu com um tweet-ameaça: uma foto de um homem calvo atrás de grades e, por escrito, a promessa de que veria Moraes preso um dia. Depois, mais tweets: uma ilustração de um rolo de papel higiênico com “Alexandre” escrito, e montagens comparando Moraes a um vilão da saga Star Wars.

Na quinta-feira, 29, a Globonews revelou que em 18 de agosto Moraes mandou bloquear os valores do grupo Starlink no Brasil como forma de garantir que o X pagasse as multas pendentes. A empresa está recorrendo no STF contra a decisão de Moraes e pede o desbloqueio das contas.

Mas Musk extrapolou os limites da corte e levou a discussão para a arena pública. Ao envolver a Starlink nos ataques ao Supremo, Musk deixou claro como  sua disputa com o STF não acaba com o iminente bloqueio do X. Ao bilionário, interessa e muito manter o Brasil como antagonista dessa liberdade de expressão absoluta que ele diz defender. Sai de cena Twitter/X, entra Starlink.

Ao dizer que a Starlink está “comprometida em defender seus direitos protegidos por sua Constituição”, Musk envolve um personagem que não cabe nessa disputa. E pior: sugere que uma empresa estrangeira, prestadora de serviços de conectividade, tem a prerrogativa de defender os cidadãos de um país democrático de suas próprias instituições.

Só que a imagem de Musk como paladino defensor da liberdade de expressão ou dos direitos democráticos, como ele diz aos clientes da Starlink, já não cola faz tempo. Quando ele diz que é este o motivo de descumprir ordens judiciais do Supremo Tribunal Federal, é só um jogo de palavras.

Se ele acreditasse nisso, não teria cumprido com as ordens de remoção de conteúdo e de bloqueio de contas do governo autoritário de Narendra Modi, na Índia.

Tampouco teria aceitado restringir conteúdos na Turquia a pedido do presidente Tayyip Erdogan. Em ambos os casos, cumpriu as ordens sem acusar censura. Qual a diferença entre a Turquia, a Índia e o Brasil de hoje? Quem está no poder no Brasil não é mais a extrema direita, com quem Musk se alinha.

“A resposta do Musk ao Alexandre de Moraes e, ali no início do ano ao [Presidente] Lula em alguns tweets, é uma confirmação de que ele usa o Brasil como lugar para colocar em plano suas posições políticas”, disse Bruna Santos, gerente de campanhas global na Digital Action e integrante da Coalizão Direitos na Rede.

Em pleno ano eleitoral nos Estados Unidos, Musk não esconde qual seu alinhamento político: basta passear pelo seu feed do X para ver a quantidade de posts misóginos contra a candidata democrata Kamala Harris. Em meados de agosto, o bilionário convidou o candidato republicano Donald Trump para um papo amigável (mas cheio de falhas técnicas) no X Spaces.

“Essa falta de compliance e de decoro com as autoridades brasileiras – e não só com o Alexandre de Moraes mas também com o Supremo – deixa muito claro qual a posição política do Elon Musk e que ele vai continuar desafiando essas ordens judiciais quando vierem de países com governos um pouco mais progressistas e que não fazem parte desse alinhamento político dele”, disse Bruna.

•        País de segunda classe

A falta de decoro e o descumprimento das decisões judiciais por Musk reforçam também, segundo a pesquisadora, a tese defendida há anos por acadêmicos e pela sociedade civil de que há uma disparidade no tratamento dado pelas big techs a países do Norte Global versus países do Sul Global, como o Brasil.

O embate do bilionário com o judiciário se soma a uma série de ações que corroboram essa tese, como o desmonte de equipes de moderação de conteúdo e o desmantelamento dos times de Trust & Safety, que garantem a integridade do conteúdo nas plataformas.

Como efeito colateral da desobediência do Twitter, outras empresas que operam no Brasil também seguiram ações semelhantes, como redução de investimentos e esforços no Brasil. Não quer dizer que elas irão entrar em confronto com o Supremo como faz Musk, mas que ganham margem para serem menos complacentes. “Esse precedente acaba mostrando que pode haver uma certa leniência com esse tipo de comportamento”, disse Nina.

O desafio, para a pesquisadora, é que o Supremo encontre um equilíbrio entre mostrar que existem limites para o comportamento das empresas, ao mesmo tempo em que reconheça que elas se tornaram infraestruturas centrais para a vida de muitos brasileiros.

Para a pesquisadora, a regulação de plataformas digitais precisa passar por uma regulação econômica que discuta monopólios ou oligopólios.

“Essa sobreposição de camadas que vão ficando na mão de poucas pessoas em poucas empresas do cenário internacional, muito concentradas nos Estados Unidos, e com pouquíssimas regras sobre como elas devem obedecer a legislações e decisões de outros países é um novo momento do capitalismo internacional, e que coloca desafios muito grandes”.

 

•        O que é a Starlink, de Elon Musk, que teve contas bloqueadas por Alexandre de Moraes

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou o bloqueio das contas bancárias da Starlink, empresa de internet via satélite do bilionário Elon Musk.

A medida foi estabelecida pelo ministro para garantir o pagamento de multas estipuladas pelo descumprimento de decisões sobre o bloqueio de perfis de investigados pela Corte na rede social X (antigo Twitter), que também pertence a Musk.

A decisão veio à tona após Moraes determinar na quarta-feira (28) que Musk indicasse, no prazo de 24 horas, novo representante legal do X no Brasil, sob risco de suspensão da rede social no país. O prazo venceu na noite desta quinta-feira (29) e a plataforma anunciou que não vai cumprir as ordens do ministro.

O bloqueio determinado pelo STF terá efeito nas contas da Starlink no Brasil. A medida não deve não afetar o contrato com o governo federal, mas coloca em risco a atividade da empresa em solo brasileiro.

A empresa fornece serviço de internet para áreas rurais do país e tem contratos com órgãos públicos, como as Forças Armadas e tribunais eleitorais.

Em postagem no X, a Starlink chamou as decisões de Moraes de "inconstitucionais" e alegou que pretende recorrer na Justiça.

"Esta ordem é baseada em uma determinação infundada de que a Starlink deve ser responsável pelas multas cobradas — inconstitucionalmente — contra o X. Ela foi emitida em segredo e sem dar à Starlink qualquer um dos devidos processos legais garantidos pela Constituição do Brasil. Pretendemos abordar o assunto legalmente", diz o texto.

Musk afirmou ainda que sua empresa fornecerá serviços de internet para seus usuários no Brasil de forma gratuita até que o assunto seja resolvido.

"Muitas escolas e hospitais remotos dependem da Starlink da SpaceX! A SpaceX fornecerá serviço de Internet para usuários no Brasil gratuitamente até que esse assunto seja resolvido, pois não podemos receber pagamento, mas não queremos cortar o serviço de ninguém", escreveu no X.

<><> O que é a Starlink?

A Starlink é um braço da SpaceX, a companhia de exploração espacial de Elon Musk.

A empresa fornece serviços de internet por meio de uma enorme rede de satélites. Ela é voltada para pessoas que vivem em áreas remotas, onde não há infraestrutura local como cabos e postes — caso de boa parte da Amazônia.

Estima-se que mais de 6 mil satélites Starlink já foram lançados no espaço, segundo especialistas que monitoram satélites.

Segundo a própria empresa, trata-se da maior constelação de satélites do mundo, com uma base de usuários em 37 países.

Os satélites da Starlink foram colocados em órbita baixa ao redor da Terra para tornar as velocidades de conexão entre os satélites e o solo o mais rápidas possível.

Quem lança os satélites é a própria SpaceX, que usa seu foguete Falcon 9 para isso.

•        Starlink no Brasil

No Brasil, a Starlink diz ter mais de 250 mil clientes, incluindo pequenas empresas, escolas e socorristas.

Segundo a Agência Brasil, ligada ao governo federal, órgãos públicos, como as Forças Armadas e tribunais eleitorais, têm contratos com a companhia.

Reportagem do jornal O Estado de S. Paulo também afirma que a Marinha brasileira usa a internet da empresa em alguns dos principais navios da frota, alegando interesse experimental na tecnologia de Elon Musk.

A Starlink recebeu sinal verde da Anatel para operar no Brasil em 2022, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. A concessão vai até 2027.

Desde então, a Amazônia se tornou o principal mercado da empresa de Musk no Brasil.

Lançada na região em setembro de 2022, a Starlink já é líder isolada entre os provedores de banda larga fixa por satélite na Amazônia legal. Segundo um levantamento exclusivo da BBC News Brasil, até julho de 2023 a empresa tinha antenas instaladas em 90% municípios da região.

A maior parte destes clientes estão em regiões de difícil acesso na Amazônia, onde não há infraestrutura tradicional de internet de banda larga.

A Starlink possibilita avanços importantes, como a possibilidade de uso de cartões de crédito e débito e Pix em cidades que não tinham internet de alta velocidade.

Mas a expansão da tecnologia de Musk também impulsiona atividades ilegais, apontaram autoridades brasileiras à BBC News Brasil.

"O Ibama informa que se tornou recorrente encontrar antenas Starlink nos garimpos", afirmou o órgão em meados de 2023.

Imagens obtidas com exclusividade pela BBC mostram antenas da empresa de Musk junto a armas, munição e ouro recolhidos em operações da Polícia Federal e do Ibama.

Ainda segundo especialistas, o acesso à internet de alta velocidade facilitou o trabalho de garimpeiros e traficantes de madeira e drogas da região. Até a chegada da empresa, o principal meio que eles tinham em locais isolados para se comunicarem sobre a chegada de carregamentos ou operações de repressão da Polícia Federal era o rádio.

Segundo uma reportagem do jornal O Globo, a Advocacia-Geral da União (AGU) teria apresentado em abril ao STF um pedido para que a Corte emitisse uma liminar exigindo que a Starlink e pelo menos outras sete empresas que fornecem acesso à internet móvel via satélite dentro da terra indígena yanomami suspendessem seus serviços para todos os tipos de equipamentos, com exceção daqueles usados por órgãos de Estado.

O objetivo do governo seria combater a atuação do garimpo ilegal na terra ocupada pelos povos yanomami, segundo o jornal.

O domínio da empresa na conexão de regiões isoladas ainda levanta questões sobre segurança e soberania nacional, segundo especialistas brasileiros e estrangeiros ouvidos pela reportagem, especialmente depois da controvérsia recente sobre a dependência ucraniana de antenas da Starlink na guerra contra o Exército russo.

A tecnologia, ao mesmo tempo, trouxe transformações positivas a cidades e comunidades distantes dos grandes centros.

No ano passado, indígenas yanomami instalaram uma antena Starlink que agora permite a comunicação em alta velocidade entre profissionais de postos de saúde e familiares de doentes em comunidades isoladas da Terra Indígena.

"Nossa internet está funcionando perfeitamente", disse à BBC News Brasil Junior Yanomami, presidente da associação yanomami Urihi, na época.

"Tem ajudado de forma excepcional, tanto para equipe de saúde, que diariamente repassa informações e solicitações de resgate, como para os yanomami, que nos comunicam sobre tudo que acontece na região em que está instalada a internet", completou o líder indígena.

Em cidades em Roraima e no Acre, moradores também passaram a poder usar cartões de débito ou crédito — e até mesmo fazer pagamentos via Pix —, graças à estabilidade e velocidade da conexão à internet via Starlink.

Em abril deste ano, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência (Secom) desmentiu informações veiculadas de que o ministro da pasta, Paulo Pimenta, teria falado em rever contratos do governo federal com a Starlink.

Segundo informações do jornal O Estado de S. Paulo, um procurador do Ministério Público de Contas teria pedido ao Tribunal de Contas da União (TCU) a suspensão. A representação teria afirmado que os vínculos deveriam ser desfeitos por causa de “afronta à soberania nacional” por parte de Musk, após críticas do bilionário sul-africano ao STF e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Neste ano, com as enchentes ocorridas no Rio Grande do Sul, Musk anunciou que a Starlink iria doar mil terminais para as equipes de emergência, disponibilizando gratuitamente o uso de todos os terminais da região até sua recuperação.

Em 2022, o bilionário chegou ainda a anunciar o lançamento da Starlink para 19 mil escolas desconectadas em áreas rurais e monitoramento ambiental da Amazônia. O empresário declarou estar "super animado" para o projeto depois de apertar as mãos do então presidente Jair Bolsonaro em um resort de luxo no interior de São Paulo em maio daquele ano.

Mas a promessa não saiu do papel. Os Ministérios de Comunicações e Educação negaram, em abril deste ano, terem acordos firmados com a Starlink ou negociações em curso.

•        Segurança de dados e superlotação

A atuação da empresa é foco de controvérsia, com especialistas alertando que ela pode colocar decisões importantes sobre países e governos nas mãos de Elon Musk.

A Starlink virou alvo de debates sobre segurança de dados no mundo em setembro de 2023, quando Musk admitiu não ter permitido que o governo da Ucrânia tivesse acesso à rede Starlink para evitar relação com o que definiu como um “grande ato de guerra”.

"Se tivesse concordado com o pedido, a SpaceX (empresa que envia os satélites usados pela Starlink para o espaço) seria explicitamente cúmplice de um grande ato de guerra e escalada de conflitos", disse Musk, que foi criticado por autoridades ucranianas.

Na época, o professor T.S. Kelso, ex-chefe do Instituto de Tecnologia e da Divisão de Análise Espacial do Comando Espacial da Força Aérea dos Estados Unidos, disse à BBC News Brasil que o debate sobre soberania nacional é "especialmente significativo".

"Sistemas de comunicação são frequentemente mantidos sob controle governamental por vários motivos, da prevenção de comportamentos ilícitos à supressão de dissidências", disse naquele momento.

"É de vital importância para a segurança nacional, por exemplo, para a Defesa, ter sistemas de comunicação seguros e confiáveis. Permitir que qualquer empresa – ou indivíduo – decida unilateralmente estas questões parece ter sérias implicações para a segurança nacional", continuou.

O especialista em antropologia da tecnologia David Nemer, professor da Universidade da Virginia (EUA), concordou.

"Quando a gente fala de internet, não está falando só de Twitter ou Facebook. Falamos de serviços vitais para o funcionamento de uma cidade. Dar esse poder à Starlink é muito preocupante", avaliou naquele momento.

Colocar satélites em órbita baixa ao redor da Terra também pode levar a problemas de superlotação no espaço, afirmam especialistas

"Os satélites podem atingir outras embarcações e criar fragmentos de destroços e estes, por sua vez, podem causar muito mais danos ao voar em altas velocidades", afirmou Sa'id Mosteshar, professor do Instituto de Política e Direito Espacial da Universidade de Londres, à BBC News.

Diversos episódios de risco envolvendo satélites Starlink foram registrados, incluindo um incidente em que um deles quase colidiu com a estação espacial da China.

"Se houver muitos fragmentos, isso pode tornar a órbita baixa da Terra inutilizável no futuro", diz Lucinda King, Gerente de Projetos Espaciais na Universidade de Portsmouth.

"E podemos não ser capazes de sair da órbita baixa da Terra para órbitas mais altas, onde nossos satélites de navegação e satélites de telecomunicações estão situados."

Em seu site, a empresa afirma estar profundamente comprometida "em manter um ambiente orbital seguro, proteger os voos espaciais humanos e garantir que o ambiente seja sustentável para futuras missões na órbita da Terra e além".

Segundo a Starlink, seus satélites se movem automaticamente para evitar colisões com lixos espaciais. Também há sensores de navegação para que os equipamentos possam encontrar a melhor localização, altitude e orientação para envio de sinal de internet.

A empresa também afirma que possui operadores de prevenção de colisões disponíveis 24 horas por dia para proprietários e operadores de satélites.

 

Fonte The Intercept/BBC News Brasil

 

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