sábado, 31 de agosto de 2024

Conspiração, crime e fake news: as controvérsias do Telegram

Aplicativo, popular tanto entre criminosos quanto entre oposicionistas de regimes autoritários, promete anonimato – mas tem graves problemas de segurança. Prisão do cofudador Pavel Durov gera preocupação na Rússia.

¬¬ Irã, 2017-2018: protestos na cidade de Mashhad denunciam corrupção, má administração e um aumento nos preços dos alimentos. Em poucos dias, as manifestações se espalham para dezenas de outras cidades e comunidades rurais do país. O governo em Teerã tem dificuldades para manter o controle da situação.

¬¬ Tailândia, 2020: depois de iniciada por um partido de oposição, a resistência ao regime militar do primeiro-ministro Prayut Chan-o-cha cresce nas universidades do país. Os protestos rapidamente se multiplicam, levando as autoridades a declarar estado de emergência.

¬¬ Belarus, 2020: uma nação governada há décadas por um autocrata realiza eleições presidenciais. Após a votação, o ditador Alexander Lukashenko anuncia ter sido reeleito. Seguem-se meses de protestos em massa.

Todas essas mobilizações, assim como várias outras, têm um fator em comum: foram amplamente organizadas através do aplicativo Telegram.

<><> Anonimato e grupos de tamanho ilimitado

O serviço de mensagens se tornou um dos mais populares do mundo desde que foi cofundado, em 2013, por Pavel Durov – que virou alvo da Justiça na França .

Mais de 900 milhões de pessoas utilizam o Telegram, que se orgulha de regular conteúdo com rigidez bem menor do que os demais aplicativos de mensagem. A plataforma também é capaz de funcionar com conexão de internet em velocidade extremamente baixa, como ocorre quando os governos tentam bloquear sua utilização.

Além disso, o aplicativo permite a formação de grupos com até 20.000 participantes, o que possibilita a mobilização rápida de uma quantidade enorme de pessoas.

O aplicativo promete aos usuários um nível particularmente alto de anonimato. Apesar da necessidade de os usuários registrarem um número de telefone celular ao abrirem seus perfis, diferentemente do concorrente WhatsApp eles podem adotar um nome de usuário que pode impedir que os demais membros de um determinado grupo possam ver o número cadastrado. Todas essas funções fazem com que a ferramenta seja bastante interessante para determinados grupos – seja para o bem ou para o mal.

<><> Fake news, propaganda e extremismo

Os interessados não são apenas os grupos de oposição que vivem sob regimes autoritários. O Telegram, por exemplo, também se tornou a plataforma favorita dos negacionistas da covid-19 em 2020.

Após o Parler – a plataforma preferida dos extremistas de direita e radicais para disseminar conteúdo da ultradireita – ser temporariamente fechado, o Telegram passou a ser a nova ferramenta favorita da extrema direita, com o surgimento de inúmeras campanhas de desinformação e fake news.  

O Telegram também atrai criminosos cibernéticos, Pavel Durov é acusado, entre outras coisas, de permitir que o crime organizado floresça em sua plataforma, sem impedir a distribuição de material de pornografia infantil, e de acobertar esses crimes.

A prisão de Durov gerou uma situação incômoda, na qual o Kremlin – que tem inúmeros canais no Telegram – se queixou com a mesma intensidade das principais lideranças de oposição na Rússia. Georgia Alburov, colaboradora de Alexey Navalny, o líder oposicionista morto na prisão, chegou ao ponto de afirmar que a detenção de Durov representa um "duro golpe contra a liberdade de expressão".

<><> Falhas graves de segurança

Ainda assim, a plataforma não é tão segura e anônima quanto imagina a maioria dos usuários. É, na verdade, exatamente o oposto disso.

"Pode perguntar a quem quiser nos círculos de segurança e todos vão dizer que o Telegram está muito atrás de outras plataformas no que diz respeito à confidencialidade de conteúdo", afirma Jürgen Schmidt, que dirige o portal Heise online, com notícias da área da tecnologia da informação.

Ao contrário de aplicativos como o WhatsApp ou o Signal, o conteúdo no Telegram não tem criptografia ponto-a-ponto, ou seja, entre os telefones de quem emite e de quem recebe a mensagem. No caso do Telegram, a criptografia ocorre entre o emissor da mensagem e o servidor e entre o servidor e o receptor. 

"O Telegram às vezes é pouco claro ao comunicar isso", disse Schmidt à DW. "Eles falam sobre encriptar todas as mensagens, mas isso vale somente para o caminho entre o aparelho do usuário e o servidor. Uma vez no servidor, elas são decriptadas no formato de texto."

<><> "Um pesadelo em privacidade"

Apesar de ser, de fato, possível mudar as configurações para permitir a criptografia ponto-a-ponto, isso não é algo simples, além de não funcionar para todos os tipos de chats.

"Isso significa que, por princípio, tudo o que é escrito no aplicativo é armazenado nos servidores do Telegram, ao qual Durov e sua equipe têm acesso", explica Schmidt, que em um de seus artigos classifica o aplicativo como "um pesadelo em termos de privacidade".

Não se sabe, contudo, onde esse servidores estão localizados, assim como quem tem acesso às informações neles armazenadas. O Telegram não divulga a localização de seus servidores.

<><> Um passo à frente da lei?

Mas porque o Telegram é tão popular entre tantos movimentos de oposição a governos autoritários?

"Não há uma explicação técnica", diz Schmidt.

"Ao contrário da maioria dos outros aplicativos de mensagens, o Telegram não tem origem nos Estados Unidos, onde muitos ainda pensam que agentes da 'malvada NSA' [Agência de Segurança Nacional dos EUA] estariam envolvidos."

Ele diz que a empresa é administrada por um russo "que ganhou credibilidade ao deixar seu país para evitar a pressão do regime".

<><> Mudanças suscessivas de sede

Também é peculiar o fato de que Durov parece não manter a empresa em um mesmo lugar por muito tempo. Ao sair da Rússia, ele mudou o Telegram para Berlim, na Alemanha, depois para Londres, no Reino Unido, e Singapura, antes de se instalar em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.

"É claro que é possível especular que ele se mude tanto para evitar os agentes da lei. Até hoje, o endereço do Telegram em Dubai é visto de maneira favorável pelos usuários da plataforma, o que dá mais credibilidade a Durov, uma vez que ele não pode ser tão facilmente perseguido pelas autoridades da Alemanha ou dos EUA".

Mas isso também traz sérias consequências para os usuários, diz Schmidt. "Eles não têm chance de obter acesso ao Telegram", observou.

A Plataforma foi criada com isso em mente. "Pode-se perceber isso de maneira positiva se você se tornar alvo de algum procurador de Justiça, por exemplo. Mas, isso pode trazer desvantagens para alguém que se tornou vítima de golpistas online."

"Pessoalmente, eu me manteria bem longe do Telegram ao tratar de qualquer coisa remotamente confidencial", concluiu o especialista em TI.

 

¨      O que está em jogo na disputa entre Musk e o STF

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), deu nesta quarta-feira (28/08) prazo de 24 horas para o bilionário Elon Musk, dono da rede social X (ex-Twitter), indicar um representante legal da empresa no Brasil, sob pena de "imediata suspensão" da plataforma em caso de descumprimento.

A operação da plataforma também foi condicionada ao pagamento de multas já impostas pelo descumprimento de ordens judiciais anteriores.

A intimação foi postada pela conta do STF no próprio X, em resposta a uma postagem de 17 de agosto da equipe de relações governamentais internacionais da empresa, que acusava Moraes de não "respeitar a lei ou o devido processo legal".

De acordo com informações veiculadas pelo portal G1, Moraes bloqueou ainda contas da empresa Starlink Holding, que também pertence a Musk. O ministro considerou na semana passada que existe um "grupo econômico de fato" chefiado por Musk e, em 18 de agosto, determinou o bloqueio de todos os valores financeiros da empresa para garantir o pagamento das multas aplicadas pela Justiça brasileira contra a rede X.

No sábado retrasado, a plataforma anunciou o fechamento do escritório no Brasil devido ao que chamou de "ameaça" e "censura" por parte do ministro, que cobrava a plataforma pelo não cumprimento de ordens judiciais anteriores que impunham à plataforma a retirada de conteúdos da rede social.

Algumas das contas alvo de bloqueio judicial eram de bolsonaristas, como o senador Marcos do Val (Podemos-ES).

O fechamento do escritório do X no Brasil, porém, não impactou o funcionamento da plataforma.

É a primeira vez que o STF intimida alguém via redes sociais, segundo informado pelo próprio tribunal ao portal g1.

Musk acusa há meses Moraes de ser autoritário em decisões para retirada de perfis da plataforma. O ministro, por sua vez, alega que age para conter a disseminação de discursos de ódio e de movimentos golpistas que ameaçam a democracia no país, como foi visto nas vésperas dos ataques de 8 de janeiro de 2023.

<><> Disputa ganhou nova dimensão com relatório no Congresso americano

A disputa entre Musk e Moraes se intensificou em abril, com a publicação de um relatório do Congresso americano que lista uma série de "demandas de censura" de Moraes.

O relatório, produzido por uma comissão presidida pelo deputado republicano Jim Jordan, ligado ao ex-presidente Donald Trump, foi elaborado com base em documentos internos da plataforma disponibilizados por Musk, e que revelariam supostos abusos em decisões do ministro. 

Segundo o documento, o STF e o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), ambos presidido por Moraes, pediram à plataforma X que suspendesse ou removesse quase 150 contas de críticos do governo brasileiro.

Moraes supostamente ordenou que as plataformas de mídia social removessem postagens e contas mesmo quando "muito do conteúdo não violava as regras [das empresas]" e "muitas vezes sem dar uma razão", aponta o relatório.

O texto afirma ainda que a "censura dirigida" não é um problema restrito aos governos "em terras distantes", e acusa a administração de Joe Biden de silenciar os críticos do governo.

O relatório foi divulgado a menos de sete meses das eleições presidenciais nos Estados Unidos. Trump é o candidato republicano 
As eleições presidenciais nos Estados Unidos estão marcadas para novembro, e Trump é o candidato republicano à Casa Branca. Pelo Partido Democrata, a candidata é a vice de Biden, Kamala Harris.

<><> Milícias digitais

Em abril, Moraes determinou a inclusão de Musk como investigado no inquérito que apura a ação de milícias digitais que atentam contra a democracia. O magistrado apontou que viu indícios de obstrução de Justiça e incitação ao crime nas ações de Musk e determinou multa diária de R$ 100 mil para cada perfil que a empresa reativar de forma irregular.

Musk usou a sua plataforma para chamar o ministro de "ditador brutal" e afirmou que iria descumprir ordens judiciais brasileiras de bloqueio de perfis criminosos na rede social. A plataforma voltou a mostrar publicações de perfis bloqueados por ordem judicial, como o da juíza aposentada Ludmila Grilo e do apresentador Monark, conforme informou a agência de checagem Aos Fatos

O perfil no X do canal Terça Livre, do ativista de extrema direita Allan dos Santos, recebeu o selo dourado na rede, mesmo com uma ordem judicial que havia determinado o bloqueio da conta em  setembro de 2021.

<><> Articulação internacional

No início de março, o deputado federal Eduardo Bolsonaro conduziu uma comitiva de deputados brasileiros para Washington (EUA), onde conversaram com parlamentares republicanos sobre como o Brasil se tornou uma "ditadura de esquerda".

Eles foram convidados para participar em uma audiência na Comissão Tom Lantos de Direitos Humanos na Câmara dos Representantes, mas tiveram que mudar os planos quando o democrata James P. McGovern, um dos dois copresidentes da comissão, vetou o evento.

Em nota à Agência Pública, McGovern afirmou que os republicanos estariam "usando o Congresso dos Estados Unidos para apoiar os negacionistas eleitorais da extrema direita que tentaram dar um golpe no Brasil".

<><> O que está por trás da briga 

As suspensões desses perfis haviam sido determinadas em 2022, ano da campanha à presidência da República, e em 2023, quando houve osatos golpistas de 8 de janeiro, em Brasília. 

Em 2022, a Justiça brasileira tomou medidas mais proativas para conter ameaças à democracia. Alexandre de Moraes virou a face mais conhecida desse processo porque era o relator do inquérito sobre as milícias digitais antidemocráticas e é o atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)

O ministro determinou, no âmbito das investigações, que as redes sociais bloqueassem alguns alvos desses inquéritos, afirmando que esses investigados utilizavam as plataformas para práticas irregulares.

Perto do segundo turno, o TSE publicou resolução determinando que as plataformas digitais deveriam remover conteúdos inverídicos em até duas horas, sob pena de multa de R$ 100 mil por hora, um fato sem precedentes na Justiça brasileira. 

Essas decisões jurídicas de dois ou três anos atrás receberam críticas por terem uma redação muitas vezes ambígua, que não deixa clara a extensão do poder de polícia da Justiça Eleitoral.  

Não há informações públicas sobre todas as ações judiciais que motivaram as críticas de Musk contra Moraes. O X informou que havia sido proibido de informar quais contas foram retidas e qual tribunal ou juiz emitiu a ordem, mas em agosto publicou na rede social alguns documentos que chamou de "ordens secretas" de Moraes.

<><> VPN e Starlink

Musk ainda sugeriu como burlar um eventual bloqueio da rede social no Brasil, o que não seria um fato inédito no país. Em 2015 e em 2016, por exemplo, juízes de primeira instância determinaram o bloqueio do Whatsapp depois que a empresa se negou a conceder informações para investigações policiais. O mesmo aconteceu com o Telegram no ano passado. 

"Para garantir que você ainda pode ter acesso à plataforma X, baixe um VPN", disse o empresário em uma publicação. "Usar um VPN é muito fácil", completou.  

Ferramentas de Virtual Private Network (VPN) são serviços que mascaram a origem do acesso à internet. Ele faz com que usuários pareçam estar outro país, driblando bloqueios locais. 

Caso a Justiça brasileira determine o bloqueio do X, outra questão se impõe. Musk também é dono da Starlink, empresa de internet via satélite que tem no Brasil um de seus principais mercados. 

Segundo levantamento feito pela BBC News Brasil, a empresa é líder entre os provedores de banda larga fixa por satélite na Amazônia legal, com antenas instaladas em ao menos 90% municípios da região. 

O professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade, alertou ao podcast Café da Manhã que esse seria "um segundo debate, que a gente ainda não enfrentou no Brasil, que é um provedor de internet descumprir ordens de bloqueios de plataformas." 

<><> Reações 

Todo o embate ocorre enquanto o Congresso discute um projeto de lei para regulamentar as plataformas digitais, o chamado PL das Fake News, retirado da pauta da Câmara por falta de acordo entre parlamentares e pressão das plataformas. A União Europeia já aprovou uma norma desse tipo, que entrou em vigor em janeiro.

A briga aumentou a pressão pela regulamentação das redes sociais no Congresso. O relator do projeto de lei, deputado Orlando Silva, afirmou, em sua conta no X: "É impossível continuarmos no estado de coisas atual. As Big Techs se arrogam poderes imperiais. Descumprir ordem judicial, como ameaça Musk, é ferir a soberania do Brasil. Isso não será tolerado! A regulação torna-se imperativa ao Parlamento."

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, divulgou nota para afirmar que decisões judiciais podem ser objeto de recursos, mas jamais de descumprimento deliberado. 

Barroso diz que é público e notório que "travou-se recentemente no Brasil uma luta de vida e morte pelo Estado democrático de Direito e contra um golpe de Estado, que está sob investigação nesta corte com observância do devido processo legal".

 "O inconformismo contra a prevalência da democracia continua a se manifestar na instrumentalização criminosa das redes sociais", afirmou.

 

Fonte: Deutsche Welle

 

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