“Enquanto o ônus é distribuído entre a
população, o ‘ogronegócio’ recebe os benefícios”, afirma pesquisadora
“Precisamos superar
esse debate e combater esse senso comum, que é uma grande falácia. O que
realmente necessitamos é de vontade política”, afirma Fernanda Savicki,
pesquisadora no campo da Agroecologia e Saúde Pública. Fernanda tem graduação
em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal do Paraná e doutorado em
Recursos Genéticos Vegetais pela Universidade Federal de Santa Catarina, e
co-coordenadora do GT contra Agrotóxicos e Transgênicos da Associação
Brasileira de Agroecologia, e traz uma visão crítica e atualizada sobre os
impactos do agronegócio e dos agrotóxicos na saúde coletiva.
Em entrevista à Página
do MST, Savicki aponta como está o debate sobre alimentação, a importância de
repensar o modelo atual de agronegócio. Neste sentido, ela aborda como o
agronegócio no Brasil recebe benefícios, enquanto a população arca com os
custos. E lembra que, mesmo em crises, como durante a pandemia, produtores
retêm estoques para inflacionar preços, agravando a situação.
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Confira a entrevista.
• O tema “agrotóxicos” está diretamente
relacionado ao modelo de produção agrícola adotado no país. Como o debate sobre
os agrotóxicos e os riscos à saúde tem sido feito no Brasil e no mundo hoje?
Historicamente, no
Brasil e no mundo, o tema dos agrotóxicos tem sido muito debatido a partir da
perspectiva da indústria dos agrotóxicos e do agronegócio. O lobby das
indústrias transnacionais vence o debate técnico-científico, e isso é inegável.
E não é uma característica exclusiva do Brasil. Contudo, em alguns lugares do
mundo, especialmente no Norte Global, a questão da saúde e do cuidado com a
população tem uma força maior. Então, de alguma forma, as limitações e as leis
conseguem fazer com que esse impacto seja diminuído. Se não mitigado, pelo
menos minimizado.
Já aqui no Sul Global,
por conta de toda a fragilidade da democracia e da relação dos direitos dos
cidadãos, que estão muito atrelados à forma como os governos se organizam, e
cada vez mais enfraquecidos pela força do capital, enfrentamos uma realidade diferente.
O lobby das transnacionais sobre os governos é uma realidade aqui no Brasil,
onde a bancada ruralista é a mais forte, representando um dos setores que mais
geram riquezas e têm uma imensa influência dentro do Congresso Nacional. E isso
não é de agora, mas o que vemos agora é uma ampliação dessa influência.
A lei de agrotóxicos
só existe e se manteve como tal por conta da mobilização da sociedade civil,
das instituições e organizações que têm demandado, discutido, trazido
evidências científicas, construído e mantido a legislação em vigor. À medida
que a força do controle do capital sobre o Congresso foi aumentando, o que nos
assegurava as garantias de direitos à saúde e à conservação do ambiente foi se
quebrando, enquanto outras forças se fortaleceram, resultando na chamada “Lei
do Veneno”.
Agora, vivemos uma
condição em que há uma supremacia da perspectiva do agronegócio sobre a saúde
da população e a conservação do meio ambiente. Isso se manifesta de forma clara
com o que estamos enfrentando hoje, como as queimadas no Pantanal, na Amazônia
e no Cerrado.
• Qual é o tamanho do problema quando se
fala em contaminação dos alimentos com agrotóxicos? E qual é a relação entre o
consumo de agrotóxicos e as causas de câncer?
Bem, parte da resposta
eu já dei na pergunta anterior. Mas é isso, essa correlação desigual de forças
sobre os governos enfraquece o mínimo de proteção à vida que ainda temos. Com a
flexibilização das leis e a aprovação da “Lei do Veneno”, estamos diante de um
risco iminente de superexposição aos agrotóxicos. Já temos uma exposição
absurda, mas essa superexposição afetará ainda mais a população brasileira,
tanto direta quanto indiretamente. Direta pelo contato direto com os
agrotóxicos, e indiretamente pelo acúmulo dessas substâncias no meio ambiente,
contaminando os locais onde vivemos. Isso leva a uma exposição exponencial aos
agrotóxicos, especialmente em situações de pouco ou nenhum controle sobre o uso
dessas substâncias no país.
Além disso, vemos um
aumento considerável de casos de câncer no Brasil, embora, devido ao lobby dos
agrotóxicos e às discussões sobre nexo causal, ainda não consigamos definir
essas substâncias como potencialmente cancerígenas. No entanto, já existem evidências
científicas, tanto no Brasil quanto no mundo, que apontam para essa relação.
O próprio Inca tem
realizado estudos que mostram um aumento significativo de cânceres relacionados
ao uso de agrotóxicos, como câncer de tireoide e cânceres nos aparelhos
reprodutores, tanto femininos quanto masculinos. Também há questões como
malformações fetais, abortamentos espontâneos e infertilidade, que têm
aparecido especialmente em populações mais atingidas e expostas, como os povos
originários.
Uma das coisas que
ainda consideramos com certa delicadeza, mas que logo poderemos afirmar com
mais certeza, é que, além de toda a violência que essas populações já sofrem de
outras formas, o uso intensivo de agrotóxicos como arma química está resultando
em uma castração química dessas populações. Então, além do extermínio pela
violência direta, estamos também conduzindo ao extermínio por uma violência
indireta.
• O que é a Política Nacional de Redução
de Agrotóxicos (PNaRA) e como ela está inserida neste contexto?
Em 2014, como uma
forma de organização popular, instituições de pesquisa como a Fiocruz, da qual
eu faço parte, e outras organizações, incluindo o Inca e entidades da sociedade
civil que atuam nessa área, se uniram para debater amplamente, com participação
social, a criação de um programa de redução do uso de agrotóxicos. É importante
destacar que, em nenhum momento, se fala sobre a eliminação total dos
agrotóxicos. Trata-se de um programa de redução, visando garantir minimamente a
saúde da população e a conservação dos ambientes. Essa é uma questão de
salvaguarda da população, um direito humano básico de acesso a alimentos
adequados, à vida e à saúde.
O programa está
dividido em seis eixos, cada um com uma série de medidas que nem sempre estão
relacionadas à diminuição ou restrição do uso de agrotóxicos. Algumas se
referem à regulamentação, regulação, monitoramento e a estratégias
alternativas, a agroecologia, que, vale ressaltar, não é uma estratégia
alternativa, mas sim a opção contra-hegemônica, única que nós temos coerente em
termos políticos, culturais, estruturais, sociais, econômicos e ambientais.
Então dentro dessas propostas do Pronara [Programa Nacional de Redução de
Agrotóxico], há várias medidas que podem ser adotadas a qualquer momento pelos
Ministérios da Saúde, do Meio Ambiente e da Infraestrutura. Não são
necessariamente questões voltadas à produção agrícola do agronegócio.
O Pronara foi
estabelecido para ser lançado junto com o Plano Nacional de Agroecologia e
Produção Orgânica, que regulamenta a Política Nacional de Agroecologia e
Produção Orgânica. No entanto, desde 2014, não conseguimos lançar o Pronara
devido a uma série de enfrentamentos, entre eles pelo MAPA (Ministério da
Agricultura e Pecuária), vinculados ao lobby do agronegócio, das transnacionais
e os vínculos do capital ao campo.
E o PNaRA surge
justamente para lidar com essa correlação de forças que estava difícil,
especialmente diante da “Lei do Veneno”, que desde 2002 tem sido repetidamente
discutida. Assim, o mesmo conjunto de organizações, lideradas pela Campanha
Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, reunindo toda a rede envolvida no
debate sobre agrotóxicos, junto com parlamentares e frentes políticas
comprometidas com essa pauta. Esse grupo organizou então o PNaRA, que é a
Política Nacional de Redução dos Agrotóxicos, que propõe medidas amplas e
estruturais para implementar o Pronara. Trata-se de uma política nacional que
está diretamente vinculada à política de agroecologia e produção orgânica,
visando mitigar os impactos dos agrotóxicos. Essa política chegou a ser votada
no Congresso Nacional, mas foi engavetada. Ela é uma alternativa crucial para
fazer frente à “Lei do Veneno”.
• Mas o setor do agronegócio afirma que
não é possível produzir sem veneno.
Essa é uma das
falácias do agronegócio. Temos diversos documentos construídos, inclusive junto
com a Campanha [Nacional de Luta Contra Os Agrotóxicos e Pela Vida], sobre as
falácias do agronegócio que embasaram inclusive para a “Lei do Veneno”, e essa
é uma delas. Mas já está mais do que comprovado que existem inúmeras
experiências, medidas e tecnologias capazes de fazer isso efetivamente. O que
precisamos é de vontade política.
Se direcionarmos a
mesma quantidade de recursos da pasta do MAPA, que atualmente financia e
subsidia os agrotóxicos, e transferir esses valores para processos de redução
de agrotóxicos e para a agroecologia, veremos um boom de proposições,
experiências e iniciativas que certamente atenderão à demanda de produção de
alimentos no mundo. É importante lembrar que a FAO [Organização das Nações
Unidas para a Alimentação e a Agricultura] possui documentos que mostram que
hoje produzimos alimentos suficientes para uma população estimada para 2050.
Portanto, o problema
nunca foi a falta de alimento. O problema é outro: é a comida como commodity.
Quando a comida é tratada como mercadoria, ela é mal distribuída, e só quem tem
dinheiro consegue se alimentar“
Precisamos superar
esse debate e combater esse senso comum, que é uma grande falácia. O que
realmente necessitamos é de vontade política. A partir do momento em que houver
vontade política para superar o agronegócio e implementar a agroecologia,
teremos saltos imensos na qualidade da produção e na garantia do direito à
alimentação.
• Neste sentido, o MST tem se organizado
como resistência aos agrotóxicos. Quais avanços e retrocessos temos tido sobre
este assunto?
O MST é uma das
organizações que tem demonstrado isso de forma sensacional, seja na produção de
arroz orgânico, cacau na Bahia, ou em outras iniciativas. Além disso, temos
experiências de outros movimentos, como o MPA [Movimento dos Pequenos
Agricultores], com as sementes e o feijão, também do MST. Enfim, há uma série
de iniciativas no Brasil inteiro surgindo na produção de alimentos em grande
escala, na escala necessária.
Precisamos também
discutir vários aspectos além da produção de alimentos, como o consumo; como
estamos consumindo esses alimentos? O que os alimentos que estão na nossa mesa
tem a ver com a nossa cultura? É comida de verdade ou ultraprocessado? É
essencial olhar para todo o sistema agroalimentar. Por isso, não falamos mais
apenas em sistema produtivo, porque a questão do alimento não se resume à
produção. Trata-se de um sistema agroalimentar completo, que começa na tomada
de decisões sobre o que plantar, onde, para quem, e se estende até a mesa do
consumidor e da consumidora, sobre as escolhas, sobre memória e cultura
alimentar, em qualquer região do Brasil.
• Atualmente, a maioria dos agrotóxicos
que existem no Brasil são proibidos na Europa, mais de 80%. Como tem sido este
debate no legislativo, e quais as mudanças e impactos do “Pacote do Veneno” e
de outros projetos?
Essa é uma discussão
fundamental e está no cerne do enfrentamento ao “PL do Veneno” e ao lobby dos
agrotóxicos. Na Lei 7.802, de 1989, que regulamenta o uso de agrotóxicos, já se
estabelecia que os agrotóxicos banidos ou com registro cancelado em outros países,
com base em evidências científicas concretas sobre seus efeitos ou serem
potencialmente cancerígenos, teratogênicos e mutagênicos, ou disruptores
endócrinos, não poderiam ser registrados ou deveriam perder o registro no
Brasil. Portanto, era simplesmente uma questão de seguir o que estava previsto
em lei. Esse sempre foi um debate muito difícil para nós.
Visivelmente, há um
desnível nesse debate em relação à União Europeia, por exemplo, mas não só ela.
Temos agrotóxicos que são banidos na China, no Canadá, nos Estados Unidos, mas
continuam sendo usados aqui no Brasil. Mas União Europeia, que hoje possui um
dos arcabouços legislativos mais avançados nessa área, tem servido como
referência para essas discussões. No entanto, é alarmante que cerca de 80% dos
agrotóxicos utilizados no Brasil sejam proibidos na União Europeia e estejam
sendo aplicados livremente aqui, muitos deles sem a mínima regulamentação. Eles
não são monitorados na água, nem nos alimentos. Existe um fluxo de agrotóxicos
sendo utilizados sem o menor cuidado em relação à exposição da população.
Um exemplo disso é a
substância “Atrazina”, que já foi banida na União Europeia e nos Estados Unidos
há mais de 20 anos, mas ainda é utilizada no Brasil. Ela não é monitorada na
água, e em pesquisas recentes das quais faço parte, encontramos “Atrazina” em
mais de 50% das amostras que analisamos. Isso evidencia a fragilidade da
legislação antiga e o quão perigosa é a implementação dessa nova lei, que
carece de critérios técnicos, científicos e regulatórios adequados para lidar
com os impactos na sociedade.
• E qual o impacto prático disso na vida
das pessoas?
Mais uma vez, quem vai
pagar o preço disso é a população brasileira, que já paga atualmente. O SUS, e
portanto, a população brasileira, arcará com os custos. O que vemos, por
exemplo, em todos os tratamentos oncológicos no Brasil, independentemente de onde
a pessoa vá se tratar—seja no Albert Einstein, no Sírio-Libanês, nos hospitais
privados mais caros e importantes do país—são pagos pelo SUS. Toda essa
exposição e o consequente aumento de casos resultam em tratamentos altamente
caros e onerosos para o Sistema Único de Saúde.
Com o aumento dos
casos, cujo impacto será sentido nos próximos anos, quem será sobrecarregado
novamente é o sistema tributário brasileiro. E quem sustenta de fato o SUS,
quem paga os impostos, é a população, o trabalhador e a trabalhadora
brasileira. E somos nós, novamente, que seremos onerados pelo agronegócio.
Enquanto o agronegócio se beneficia, os malefícios do setor são distribuídos
proporcionalmente entre a população brasileira.
Além disso, as
isenções fiscais e as pesquisas realizadas nas universidades federais, mantidas
pela população brasileira, beneficiam o setor privado, como Bayer, Monsanto e
outras empresas. São utilizados materiais, recursos humanos, pesquisadores,
alunos e espaços físicos mantidos pelo povo para favorecer um setor privado.
Portanto, o agronegócio recebe uma série de benefícios, enquanto o ônus é
distribuído entre a população.
Em outras palavras,
não há como o agronegócio dar prejuízo, pois ele recebe todos os incentivos e
benefícios. Quando há uma baixa no preço, não vemos distribuição de alimentos;
vemos leite sendo jogado nas estradas, tomate sendo descartado e deixado para
apodrecer. Essas situações ocorrem tradicionalmente quando os preços caem.
Um exemplo absurdo foi
a questão do arroz, quando os produtores brasileiros seguraram o estoque para
garantir um preço elevado, num momento em que o país enfrentava uma crise
extrema, precisando garantir que a população estivesse bem alimentada e saudável
para enfrentar a pandemia. O agronegócio, porém, cometeu a atrocidade de reter
o produto para garantir um preço abusivo, lucrando em cima do governo e da
desgraça da população brasileira. É com situações como essas que temos lidado,
e é contra isso que precisamos nos organizar e pensar nos enfrentamentos que
faremos.
• Como você avalia a eficácia das
mobilizações internacionais para minimizar os impactos dos agrotóxicos,
especialmente em países da América Latina e outras regiões vulneráveis?
Como você disse, há
uma organização e mobilização internacional em curso, visando internacionalizar
o debate sobre os agrotóxicos e formar um bloco de forças, não apenas na
América Latina, mas também em articulação com a União Europeia e seus
parlamentares para discutir essas questões. A maioria das sedes das indústrias
está na Europa, onde há uma rígida proibição e controle sobre o uso e produção
de agrotóxicos. No entanto,
(…) essas indústrias
se aproveitam de governos fracos e democracias ainda embrionárias em países da
América Latina, da África e de outras regiões, utilizando-os como uma “lixeira
química”, como menciona a professora Sônia Hess, uma das principais pesquisadoras
sobre agrotóxicos no Brasil.
Essas indústrias
exportam produtos e matérias-primas desses países, cheias de agrotóxicos,
enquanto mantêm uma alta restrição em seus próprios territórios. O debate atual
foca nessa questão dos dois pesos e duas medidas: rigorosas restrições na
Europa, mas nenhuma nos territórios onde os produtos são cultivados e
exportados. Esses debates estão em andamento, com uma crescente sensibilização
do Parlamento Europeu para discutir essa desigualdade e buscar formas de
mitigar os efeitos dos agrotóxicos.
Fonte: Por Fernanda
Alcântara, na Página do MST
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