sábado, 31 de agosto de 2024

Trabalhadores pardos e amarelos do Centro-Oeste têm mais risco de morrer no calor

EM MEIO à mais severa estiagem em quatro décadas e com 70% dos municípios brasileiros atingidos pela seca, segundo dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), focos de incêndio têm se alastrado e batido recordes pelo país.

Para além do impacto sobre o meio ambiente e a saúde humana, uma pesquisa da Universidade Estadual de Maringá, publicada pela revista científica Safety Science, traça um perfil dos brasileiros vítimas de acidentes de trabalho ligados ao calor extremo.

Profissionais do Centro-Oeste, pardos ou amarelos, entre 41 e 60 anos, estão mais associados a episódios graves com risco de morte, quando submetidos a temperaturas acima da média.

É o caso do mecânico José Ilton Luiz. Pai de seis filhos, ele fazia um extra cortando cana em São Simão, no sudoeste de Goiás, quando um incêndio se alastrou pela plantação, em 19 de outubro de 2023.

O fogo consumiu uma área de quase 700 campos de futebol, além de tratores e caminhões. Cerca de 20 trabalhadores no local foram cercados pelas chamas. José e mais quatro morreram asfixiados pela fumaça antes de terem seus corpos carbonizados. Outros sete ficaram feridos.

A Polícia Técnico-Científica de Quirinópolis (GO) concluiu que a causa mais provável do incêndio foi uma faísca em uma estrada próxima. O fogo, então, tomou grandes proporções devido ao vento forte e às altas temperaturas – naquele dia, os termômetros chegaram a marcar 38.7°C .

•        Racismo ambiental

Para analisar o impacto do aumento das temperaturas nos acidentes de trabalho entre 2006 e 2019, os autores do estudo da Universidade de Maringá cruzaram duas bases de dados: dados meteorológicos do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) e registros de acidentes do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN).

Neste período, os pesquisadores contabilizaram um total de 911.117 acidentes de trabalho – incluindo quedas, queimaduras decorrentes de incêndios e lesões provocadas por máquinas agrícolas.

Além de um aumento gradual dos registros, perceberam um padrão preocupante. Acidentes com trabalhadores brancos estavam associados a temperaturas baixas e à recuperação total das vítimas. Já acidentes com trabalhadores pardos e amarelos tinham vinculação com temperaturas altas e com a morte dos acidentados, caso do mecânico José Ilton Luiz.

“Quando encontrei esse resultado, fiquei bem chocado porque mostra um certo racismo ambiental,” afirma Guilherme Neto Ferrari, autor principal do levantamento. Os dados reforçam que a crise climática está atingindo a sociedade brasileira de forma desigual. “O calor está tendo impactos diferentes nessas populações e isso é muito difícil de comprovar. A nossa análise mostra que isso realmente está acontecendo”, complementa.

Em 2021, um levantamento realizado pelo Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) já havia identificado que trabalhadores pardos têm mais chance de morrer do que os brancos, especialmente nas regiões Centro-Oeste e Norte.

No entanto, o estudo dos pesquisadores de Maringá é o primeiro a levar em consideração a influência das condições do clima sobre esses óbitos. Uma das principais técnicas é a medição da chamada “temperatura de bulbo úmido”, que leva em consideração temperatura, pressão atmosférica e umidade para determinar a sensação térmica real do corpo humano.

•        Trabalho de risco

Daniel Pires Bitencourt, pesquisador da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), não se surpreendeu com os perfis identificados pela pesquisa. Ele estuda condições ambientais de trabalho há duas décadas para a entidade, ligada ao Ministério do Trabalho (MTE) do governo federal.

Bitencourt explica que trabalhadores pardos e amarelos no Centro-Oeste se dedicam, na maioria, a atividades rurais em áreas externas. Por isso, estão mais expostos aos desastres climáticos influenciados pelo aquecimento global, como os incêndios.

Esses trabalhadores também têm mais chance de sofrer estresse térmico. “O trabalho rural é pesado e, junto com o calor extremo e uma vestimenta inadequada, pode elevar a taxa metabólica para níveis perigosos”, afirma. Um quadro de exaustão, aumento no tempo de reação e lapsos de memória tem potencial para provocar acidentes graves e, em alguns casos, até mal súbito.

Em 2012, Bitencourt e colegas investigaram as condições atmosféricas nos dias das mortes súbitas de 14 cortadores de cana-de-açúcar, no interior de São Paulo. O levantamento considerou temperatura, umidade, vento e radiação solar. Eles descobriram que 10 dos óbitos ocorreram em dias com calor igual ou acima da média. Seis mortes aconteceram em dias com temperatura recorde.

Desde então, o perigo da sobrecarga térmica só aumentou no Norte, Nordeste e partes do Centro-Oeste do Brasil. Em uma pesquisa de 2019, intitulada “O risco de exposição ao calor para trabalhadores ao ar livre no Brasil”, os mesmos pesquisadores mostraram que o trabalho mais perigoso nessas regiões envolvia cargas pesadas no período do verão.

Outro fator de risco são as altas taxas de trabalho autônomo ou informal – bastante comum no meio rural e realidade de 44,5% da população preta ou parda, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Nestas condições, empregados e empregadores nem sempre seguem normas de segurança do trabalho. “Esses indivíduos ganham por produção e podem negligenciar sinais de risco do calor para não comprometer o seu ganha-pão,” explica.

•        Cada vez mais calor

O ano de 2023 foi o ano mais quente já registrado no Brasil, com 9 ondas de calor em todo o país. O Centro-Oeste, especificamente, tem esquentado acima da média global, cerca de 0,5 °C por década – os dados são do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). A explosão dos termômetros tem sido particularmente alarmante em Goiás.

Se a temperatura do planeta ficar 2°C mais alta que a do período pré-industrial, cenário possível a partir de 2034, o Centro-Oeste brasileiro será uma das regiões mais afetadas do mundo. Previsões da Nasa apontam para aumento da seca, perda da umidade relativa do ar e maior risco de “fire weather”, ou seja, condições propícias a incêndios.

“Precisamos urgentemente de novas tecnologias, políticas públicas e uma nova organização do trabalho. Hoje no Brasil, em determinadas situações já é inviável o trabalho em todo o turno diurno”, afirma Bitencourt, da Fundacentro.

As normas regulamentadoras NR-15 e NR-21, do Ministério do Trabalho e Emprego, já preveem vestimenta adequada e pausas programadas. Mas não considera atividades ao ar livre no calor extremo como insalubre com direito a adicional no salário–apenas trabalhos em ambientes fechados ou com luz artificial.

Em nota, o MTE afirmou que a fiscalização das normas de segurança cabe aos auditores-fiscais do Trabalho, que “verificam se o empregador identificou todos os riscos envolvendo os trabalhadores expostos ao calor e adotou as medidas de prevenção necessárias ao conforto térmico ou diminuição da exposição a esse risco.”

•        Combinação perigosa

Inconformado com a morte de José Ilton Luiz, o seu irmão Josemar Francisco da Costa resolveu investigar por conta própria as causas do incêndio trágico no sudoeste de Goiás. Passou semanas visitando canaviais na região – de São Simão a Paranaiguara.

“Precisava saber o que matou o meu irmão,” conta. Ele, que também já trabalhou em plantações de cana-de-açúcar, chegou à mesma conclusão que os especialistas: “Nos canaviais, quando está muito quente, qualquer faísca já era”.

Para Paulo Vittor P. Silva, perito responsável pela investigação do incêndio em São Simão, a combinação do calor extremo com a baixa umidade e com o tipo de vegetação dos canaviais está ficando cada vez mais perigosa. Silva tem percebido um aumento considerável de incêndios nos municípios da região. “Somente em julho nós fomos acionados 10 vezes para esse tipo de ocorrência. É um aumento de 78% em relação ao mesmo período do ano passado”, afirma

Parte do problema é que o calor faz as chamas ficarem mais fortes e queimarem mais rápido. “Quando as temperaturas estão mais baixas, o fogo arde mais lentamente e dá tempo de conter antes que atinja uma área grande, e o mais importante, dá tempo de salvar vidas”, finaliza.

 

¨      Cientistas querem banir o termo “savanização” para colapso da Amazônia

O Brasil perdeu da vegetação natural só nas últimas quatro décadas e metade dessa destruição se concentrou na Amazônia, demonstram alarmantes dados do MapBiomas divulgados esta semana por ((o))eco. 

O desmate imparável e a crise do clima empurram o bioma ao “ponto de não retorno”, quando ele poderá colapsar e perder a capacidade atual de manter biodiversidade, fontes de água e chuva e populações urbanas e rurais.

Essa drástica mudança foi taxada de “savanização”, apostando que a floresta se tornaria algo similar à “savana brasileira”, o Cerrado. Contudo, cientistas de instituições brasileiras e internacionais querem o termo banido.

Em artigo na revista Perspectives in Ecology Conservation, eles encontraram 481 estudos onde a “savanização” era associada a florestas desmatadas ou degradadas, “reforçando os preconceitos contra as savanas naturais”. 

Os pesquisadores lembram que o Cerrado é a maior e mais rica savana do mundo, “mas recebe menos atenção e recursos para a conservação”, e que há uma negligência multissetorial com o bioma, mesmo ocupando ¼ do Brasil. 

“Propomos abandonar o uso de ‘savanização da Amazônia’, promovendo o apoio e a atenção que o Cerrado precisa”, ressaltam os cientistas.

Críticas à expressão já constavam em artigo dos pesquisadores Annabelle Stefânia Gomes e Fabian Borghetti, da Universidade de Brasília (UnB), na obra ‘Uma viagem pelo sertão: 200 anos de Saint-Hilaire em Goiás (2021)’.

Os autores lembram que o desmate e outros impactos não levam a “uma simples troca de matas nativas por savanas nativas”, como “tem sido amplamente difundido nos meios sociais e acadêmicos”.

Pelo contrário, para eles isso resultaria numa vegetação que não representaria nem uma floresta e nem uma verdadeira savana, sendo mais pobre em biodiversidade e mais fraca para manter fontes de água e regular o clima.

“Savanas que se formam com desmatamento, fogo e invasão de espécies exóticas apresentam baixa riqueza de espécies, não representam a vegetação nativa e tampouco executam seus serviços ecossistêmicos”, avisam.

 

Fonte: Repórter Brasil/((O))eco

 

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