Trabalhadores pardos e amarelos do
Centro-Oeste têm mais risco de morrer no calor
EM MEIO à mais severa
estiagem em quatro décadas e com 70% dos municípios brasileiros atingidos pela
seca, segundo dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres
Naturais (Cemaden), focos de incêndio têm se alastrado e batido recordes pelo
país.
Para além do impacto
sobre o meio ambiente e a saúde humana, uma pesquisa da Universidade Estadual
de Maringá, publicada pela revista científica Safety Science, traça um perfil
dos brasileiros vítimas de acidentes de trabalho ligados ao calor extremo.
Profissionais do
Centro-Oeste, pardos ou amarelos, entre 41 e 60 anos, estão mais associados a
episódios graves com risco de morte, quando submetidos a temperaturas acima da
média.
É o caso do mecânico
José Ilton Luiz. Pai de seis filhos, ele fazia um extra cortando cana em São
Simão, no sudoeste de Goiás, quando um incêndio se alastrou pela plantação, em
19 de outubro de 2023.
O fogo consumiu uma
área de quase 700 campos de futebol, além de tratores e caminhões. Cerca de 20
trabalhadores no local foram cercados pelas chamas. José e mais quatro morreram
asfixiados pela fumaça antes de terem seus corpos carbonizados. Outros sete
ficaram feridos.
A Polícia
Técnico-Científica de Quirinópolis (GO) concluiu que a causa mais provável do
incêndio foi uma faísca em uma estrada próxima. O fogo, então, tomou grandes
proporções devido ao vento forte e às altas temperaturas – naquele dia, os
termômetros chegaram a marcar 38.7°C .
• Racismo ambiental
Para analisar o
impacto do aumento das temperaturas nos acidentes de trabalho entre 2006 e
2019, os autores do estudo da Universidade de Maringá cruzaram duas bases de
dados: dados meteorológicos do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) e
registros de acidentes do Sistema de Informação de Agravos de Notificação
(SINAN).
Neste período, os
pesquisadores contabilizaram um total de 911.117 acidentes de trabalho –
incluindo quedas, queimaduras decorrentes de incêndios e lesões provocadas por
máquinas agrícolas.
Além de um aumento
gradual dos registros, perceberam um padrão preocupante. Acidentes com
trabalhadores brancos estavam associados a temperaturas baixas e à recuperação
total das vítimas. Já acidentes com trabalhadores pardos e amarelos tinham
vinculação com temperaturas altas e com a morte dos acidentados, caso do
mecânico José Ilton Luiz.
“Quando encontrei esse
resultado, fiquei bem chocado porque mostra um certo racismo ambiental,” afirma
Guilherme Neto Ferrari, autor principal do levantamento. Os dados reforçam que
a crise climática está atingindo a sociedade brasileira de forma desigual. “O
calor está tendo impactos diferentes nessas populações e isso é muito difícil
de comprovar. A nossa análise mostra que isso realmente está acontecendo”,
complementa.
Em 2021, um
levantamento realizado pelo Departamento de Saúde Pública da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC) já havia identificado que trabalhadores pardos
têm mais chance de morrer do que os brancos, especialmente nas regiões
Centro-Oeste e Norte.
No entanto, o estudo
dos pesquisadores de Maringá é o primeiro a levar em consideração a influência
das condições do clima sobre esses óbitos. Uma das principais técnicas é a
medição da chamada “temperatura de bulbo úmido”, que leva em consideração temperatura,
pressão atmosférica e umidade para determinar a sensação térmica real do corpo
humano.
• Trabalho de risco
Daniel Pires
Bitencourt, pesquisador da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e
Medicina do Trabalho (Fundacentro), não se surpreendeu com os perfis
identificados pela pesquisa. Ele estuda condições ambientais de trabalho há
duas décadas para a entidade, ligada ao Ministério do Trabalho (MTE) do governo
federal.
Bitencourt explica que
trabalhadores pardos e amarelos no Centro-Oeste se dedicam, na maioria, a
atividades rurais em áreas externas. Por isso, estão mais expostos aos
desastres climáticos influenciados pelo aquecimento global, como os incêndios.
Esses trabalhadores
também têm mais chance de sofrer estresse térmico. “O trabalho rural é pesado
e, junto com o calor extremo e uma vestimenta inadequada, pode elevar a taxa
metabólica para níveis perigosos”, afirma. Um quadro de exaustão, aumento no tempo
de reação e lapsos de memória tem potencial para provocar acidentes graves e,
em alguns casos, até mal súbito.
Em 2012, Bitencourt e
colegas investigaram as condições atmosféricas nos dias das mortes súbitas de
14 cortadores de cana-de-açúcar, no interior de São Paulo. O levantamento
considerou temperatura, umidade, vento e radiação solar. Eles descobriram que
10 dos óbitos ocorreram em dias com calor igual ou acima da média. Seis mortes
aconteceram em dias com temperatura recorde.
Desde então, o perigo
da sobrecarga térmica só aumentou no Norte, Nordeste e partes do Centro-Oeste
do Brasil. Em uma pesquisa de 2019, intitulada “O risco de exposição ao calor
para trabalhadores ao ar livre no Brasil”, os mesmos pesquisadores mostraram
que o trabalho mais perigoso nessas regiões envolvia cargas pesadas no período
do verão.
Outro fator de risco
são as altas taxas de trabalho autônomo ou informal – bastante comum no meio
rural e realidade de 44,5% da população preta ou parda, segundo dados do IBGE
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Nestas condições, empregados
e empregadores nem sempre seguem normas de segurança do trabalho. “Esses
indivíduos ganham por produção e podem negligenciar sinais de risco do calor
para não comprometer o seu ganha-pão,” explica.
• Cada vez mais calor
O ano de 2023 foi o
ano mais quente já registrado no Brasil, com 9 ondas de calor em todo o país. O
Centro-Oeste, especificamente, tem esquentado acima da média global, cerca de
0,5 °C por década – os dados são do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(INPE). A explosão dos termômetros tem sido particularmente alarmante em Goiás.
Se a temperatura do
planeta ficar 2°C mais alta que a do período pré-industrial, cenário possível a
partir de 2034, o Centro-Oeste brasileiro será uma das regiões mais afetadas do
mundo. Previsões da Nasa apontam para aumento da seca, perda da umidade relativa
do ar e maior risco de “fire weather”, ou seja, condições propícias a
incêndios.
“Precisamos
urgentemente de novas tecnologias, políticas públicas e uma nova organização do
trabalho. Hoje no Brasil, em determinadas situações já é inviável o trabalho em
todo o turno diurno”, afirma Bitencourt, da Fundacentro.
As normas
regulamentadoras NR-15 e NR-21, do Ministério do Trabalho e Emprego, já preveem
vestimenta adequada e pausas programadas. Mas não considera atividades ao ar
livre no calor extremo como insalubre com direito a adicional no salário–apenas
trabalhos em ambientes fechados ou com luz artificial.
Em nota, o MTE afirmou
que a fiscalização das normas de segurança cabe aos auditores-fiscais do
Trabalho, que “verificam se o empregador identificou todos os riscos envolvendo
os trabalhadores expostos ao calor e adotou as medidas de prevenção necessárias
ao conforto térmico ou diminuição da exposição a esse risco.”
• Combinação perigosa
Inconformado com a
morte de José Ilton Luiz, o seu irmão Josemar Francisco da Costa resolveu
investigar por conta própria as causas do incêndio trágico no sudoeste de
Goiás. Passou semanas visitando canaviais na região – de São Simão a
Paranaiguara.
“Precisava saber o que
matou o meu irmão,” conta. Ele, que também já trabalhou em plantações de
cana-de-açúcar, chegou à mesma conclusão que os especialistas: “Nos canaviais,
quando está muito quente, qualquer faísca já era”.
Para Paulo Vittor P.
Silva, perito responsável pela investigação do incêndio em São Simão, a
combinação do calor extremo com a baixa umidade e com o tipo de vegetação dos
canaviais está ficando cada vez mais perigosa. Silva tem percebido um aumento
considerável de incêndios nos municípios da região. “Somente em julho nós fomos
acionados 10 vezes para esse tipo de ocorrência. É um aumento de 78% em relação
ao mesmo período do ano passado”, afirma
Parte do problema é
que o calor faz as chamas ficarem mais fortes e queimarem mais rápido. “Quando
as temperaturas estão mais baixas, o fogo arde mais lentamente e dá tempo de
conter antes que atinja uma área grande, e o mais importante, dá tempo de salvar
vidas”, finaliza.
¨ Cientistas querem banir o termo “savanização” para colapso da
Amazônia
O Brasil perdeu ⅓ da vegetação natural só nas últimas quatro décadas e metade dessa destruição se concentrou na Amazônia, demonstram alarmantes dados do
MapBiomas divulgados esta semana por ((o))eco.
O desmate imparável e
a crise do clima empurram o bioma ao “ponto de não retorno”, quando ele poderá colapsar e perder a
capacidade atual de manter biodiversidade, fontes de água e chuva e populações
urbanas e rurais.
Essa drástica mudança
foi taxada de “savanização”, apostando que a floresta se tornaria algo similar
à “savana brasileira”, o Cerrado. Contudo, cientistas de instituições
brasileiras e internacionais querem o termo banido.
Em artigo na revista
Perspectives in Ecology Conservation, eles encontraram 481 estudos onde a
“savanização” era associada a florestas
desmatadas ou degradadas, “reforçando os preconceitos contra as savanas
naturais”.
Os pesquisadores
lembram que o Cerrado é a maior e mais rica savana do mundo, “mas recebe menos
atenção e recursos para a conservação”, e que há uma negligência multissetorial
com o bioma, mesmo ocupando ¼ do Brasil.
“Propomos abandonar o
uso de ‘savanização da Amazônia’, promovendo o apoio e a atenção que o Cerrado
precisa”, ressaltam os cientistas.
Críticas à expressão
já constavam em artigo dos pesquisadores Annabelle Stefânia
Gomes e Fabian Borghetti, da Universidade de Brasília (UnB), na obra ‘Uma
viagem pelo sertão: 200 anos de Saint-Hilaire em Goiás (2021)’.
Os autores lembram que
o desmate e outros impactos não levam a “uma simples troca de matas nativas por
savanas nativas”, como “tem sido amplamente difundido nos meios sociais e
acadêmicos”.
Pelo contrário, para
eles isso resultaria numa vegetação que não representaria nem uma floresta e
nem uma verdadeira savana, sendo mais pobre em biodiversidade e mais fraca para
manter fontes de água e regular o clima.
“Savanas que se formam
com desmatamento, fogo e invasão de espécies exóticas apresentam baixa riqueza
de espécies, não representam a vegetação nativa e tampouco executam seus
serviços ecossistêmicos”, avisam.
Fonte: Repórter Brasil/((O))eco
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