República em risco — a disputa entre os
poderes pelo orçamento
O orçamento público é
mais do que uma simples ferramenta administrativa, ele é a espinha dorsal do
planejamento e da execução das finanças de um país, desempenhando um papel
essencial na gestão econômica e social. A Lei Orçamentária Anual (LOA) reflete
a organização do sistema orçamentário, mas deve ser entendida como parte de um
sistema mais amplo e complexo, composto por planos e programas que estabelecem
as diretrizes e prioridades para a alocação de recursos.
A constitucionalização
das finanças públicas trouxe a matéria orçamentária para o centro do
ordenamento jurídico, estabelecendo que ela deve ser guiada pelos princípios
constitucionais. Nesse contexto, as instituições orçamentárias passaram a ter
um papel fundamental na realização dos objetivos delineados pela Constituição.
O orçamento público,
portanto, não é apenas um instrumento técnico, ele se tornou a mais importante
lei material após a Constituição, unificando a atividade financeira do Estado e
influenciando diretamente o bem-estar coletivo. No entanto, essa centralidade
do orçamento também expõe uma série de desafios, como o risco de politização
excessiva e a complexidade de garantir que os recursos sejam alocados de
maneira eficiente e justa. A importância do orçamento exige uma gestão rigorosa
e transparente, mas também uma constante vigilância para que ele não se torne
uma ferramenta de poder concentrado nas mãos de poucos.
O ciclo orçamentário
(que abrange desde a elaboração até a avaliação e controle) e seu processo se
insere em um sistema de freios e contrapesos, onde cada poder desempenha um
papel específico e limitado. O papel do Presidente da República é apresentar um
plano de governo que reflete sua plataforma eleitoral, enquanto o Congresso
Nacional tem a responsabilidade de aperfeiçoar essa proposta, garantindo que
ela atenda às demandas nacionais de forma equitativa.
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Emendas impositivas —
o que está se discutindo?
As emendas
parlamentares, prerrogativas constitucionais do Legislativo, são ferramentas
cruciais para a modificação das propostas orçamentárias enviadas pelo
Executivo. Elas permitem ao Congresso influenciar diretamente na alocação dos
recursos públicos, transformando-se em instrumentos essenciais para assegurar
que as prioridades regionais e setoriais sejam contempladas no orçamento.
No entanto, a
natureza jurídica do orçamento levanta questões complexas sobre a distribuição
de competências no exercício do poder financeiro e sobre o equilíbrio de poder
entre o Legislativo e o Executivo. Embora o orçamento seja tradicionalmente
visto como um documento autorizativo, que simplesmente permite ao Executivo
realizar despesas, a questão de se o Governo pode ou deve deixar de executar
uma lei aprovada permanece um tema de intenso debate.
Este cenário nos
conduz a uma reflexão necessária sobre os freios e contrapesos que garantem o
equilíbrio entre os Poderes. Como assegurar que o Executivo respeite a vontade
popular, expressa por meio de seus representantes, na alocação dos recursos
públicos? Como evitar que as emendas parlamentares se transformem em meros
instrumentos de barganha política, enfraquecendo a autonomia do Legislativo?
Essas seriam as questões que um analista alheio às singularidades do processo
de conformação histórico brasileiro poderia formular. Porém, aqueles que estão
familiarizados com a força centrífuga deflagrada a partir da ação das elites
locais, que, desde o processo de colonização atuam, através de seus braços
econômicos e políticos, em prol de projetos de poder patrimonialistas. Do mesmo
modo, aqueles que dependem do Estado para o sucesso de seu empreendimento, se
esforçam para eleger seus correligionários para garantir a efetiva
representação de seus empreendimentos. Este esforço, em um contexto no qual as
doações privadas para candidatos foram limitadas e os recursos de campanha se
tornaram majoritariamente públicos, passa a depender da capacidade de cada
partido de eleger deputados e, em menor escala, senadores para o Congresso
Nacional.
Não obstante, uma vez
eleitos esses legisladores poderão irrigar com recursos públicos não apenas as
dinâmicas eleitorais que estruturam seus projetos de poder, mas também seus
diferentes empreendimentos, utilizando, para isso, as emendas parlamentares. Por
este motivo, o patrimonialismo, enquanto apropriação do Orçamento Público para
cofres privados, não indica uma dinâmica alheia ao Estado, mas uma sangria que
é deflagrada a partir de dentro, pelos atores políticos. Por este motivo, esta
dinâmica tem como condição a conquista de mandatos eletivos através de
processos eleitorais, que se tornam objeto central dos esforços daqueles que
desejam perpetuar seus projetos de poder. É um ciclo que envolve uma
triangulação de recursos entre os membros do Congresso Nacional e seus aliados
nos municípios onde estabelecem seus projetos de poder, sendo a dimensão
territorial um elemento importante que reforça seu caráter centrífugo e pouco
republicano, uma vez que, se cada grupo se preocupa apenas com seu território,
não há construção do comum, nem do público.
Diante desta
configuração aqueles que se dedicam à política em prol de projetos nacionais de
desenvolvimento, independentemente de seu matiz ideológico, funcionam como
forças centrípetas cuja capacidade de atuação é reduzida pela atuação das
forças centrífugas, na medida em que o Orçamento Público é limitado. No
entanto, os ocupantes do Executivo Nacional gozam de algumas prerrogativas
orçamentárias que reforçavam tais capacidades. É o caso, por exemplo, do
caráter incompleto do nosso federalismo, posto que a transferência de
competências para os entes federativos não veio acompanhada de proporcional
repasse tributário, deixando-os em certa medida dependentes de uma boa relação
com a Presidência da República.
Outro exemplo de
prerrogativa diz respeito ao próprio processo de elaboração da Lei Orçamentária
Anual (LOA), no qual ao Executivo cabia o papel da iniciativa legal, ainda que
os legisladores pudessem propor emendas ao projeto enviado. Essa prerrogativa vem
sendo ameaçada, bem como a possibilidade de, através do Orçamento Público,
implementar políticas desenhadas à luz de projetos nacionais de
desenvolvimento, nos quais os objetivos e recompensas retomam os princípios
republicanos de comunalidade e publicidade.
·
A escalada do conflito
A Emenda
Constitucional nº 86 de 2015 marcou um ponto de inflexão nessa relação. Antes
dela, a execução das emendas parlamentares dependia quase que exclusivamente da
vontade do Poder Executivo, o que frequentemente as transformava em moedas de
troca política.
No modelo que
conhecíamos como Presidencialismo de Coalizão as emendas eram acionadas quando
parlamentares individuais membros dos partidos integrantes da coalizão de
governo se recusavam a votar conforme a orientação de seus líderes. A partir da
nova regra, que tornou obrigatória a execução de parte dessas emendas, o
impacto no orçamento público se tornou cada vez mais evidente, especialmente
com o aumento significativo dos valores envolvidos. Conforme dados da própria
Câmara, naquele ano, o montante destinado às emendas impositivas era de R$ 9,66
bilhões; em 2024, esse valor saltou para R$ 44,67 bilhões, refletindo o
crescente protagonismo do Legislativo na alocação de recursos públicos.
A EC 86/2015 foi uma
investida do Legislativo sob um Executivo que havia se fragilizado, perdendo
popularidade após as Jornadas de Junho e os eventos que a sucederam. A
normativa estabeleceu que que 1,2% da Receita Corrente Líquida (RCL) devia
atender emendas individuais, dando-lhe algum caráter de impositividade, uma vez
que o governo só poderia contingenciá-las na proporção do bloqueio de despesas
discricionárias. A decisão, orquestrada pelo então presidente da Câmara Eduardo
Cunha, foi um marco, pois iniciou um processo de escalada orçamentária através
das emendas parlamentares, representavam 6,1% das despesas discricionárias em
2014, dobrando sua proporção em 2019, ano em que superaram os 12% da RCL.
Essa mudança provocou
uma clara redefinição do equilíbrio de poder entre Legislativo e Executivo,
reforçando a independência dos parlamentares em relação ao governo e a seus
próprios partidos. No lugar deles, enquanto agentes nesses processos de
negociação com o Executivo, surge a figura dos presidentes do Senado, e,
sobretudo, da Câmara.
O presidente da Câmara
dos Deputados assume um protagonismo crucial no processo orçamentário por
diversas razões. Em primeiro lugar, é na Câmara que o processo orçamentário se
inicia, incluindo as emendas impositivas, conforme estabelecido na Constituição
(art. 66, II, b c/c art. 64). Além disso, a Câmara possui um número
significativamente maior de parlamentares em comparação ao Senado, o que exige
do presidente da Casa uma habilidade refinada para articular uma ampla gama de
interesses e demandas regionais. Isso é evidenciado pelo fato de que mais de
75% do orçamento destinado a emendas individuais é atribuído a deputados,
conforme o Art. 166, §9º-A da Constituição. Essa posição estratégica confere ao
presidente da Câmara uma influência decisiva nas negociações com o Executivo,
tornando-o um ator central na dinâmica de poder entre os dois poderes.
A Emenda
Constitucional nº 86/2015 deu início a um ciclo de reformas que gradualmente
reforçou a natureza impositiva do orçamento público no Brasil. Contudo, ao
invés de simplesmente abrir caminho para avanços positivos, essas mudanças
trouxeram consigo uma série de desafios e controvérsias. A EC nº 100/2019, ao
expandir a obrigatoriedade de execução para emendas coletivas, que incluem
programações de bancada dos parlamentares de Estados e do Distrito Federal,
ampliou o alcance desse modelo, mas também aumentou a pressão sobre a gestão
fiscal.
Dentro desse contexto,
diferentes tipos de emendas impactam o processo orçamentário de maneiras
distintas. As emendas individuais permitem que parlamentares direcionem
recursos para suas bases eleitorais, enquanto as emendas de bancada, de caráter
coletivo, buscam atender a interesses regionais mais amplos. Já as emendas de
comissão refletem prioridades setoriais e são propostas por comissões técnicas
ou pelas Mesas Diretoras das Casas Legislativas.
No entanto, na LDO de
2020, a introdução das emendas do relator, associadas ao chamado “orçamento
secreto”, trouxe consigo uma nova e significativa controvérsia. Essas emendas,
que permitiam a destinação de verbas federais sem identificar o congressista responsável,
foram criticadas por promoverem negociações obscuras e práticas
patrimonialistas. Em 2020 e 2021 as emendas ficaram acima de 33% dos gastos
discricionários anuais do governo federal. A falta de transparência na sua
execução gerou intenso debate, culminando na proibição dessas emendas pelo
Supremo Tribunal Federal em 2022.
O resultado desse
processo foi a consolidação de uma dinâmica de impositividade em face das
emendas apresentadas pelo Legislativo ao orçamento, deixando em aberto questões
cruciais sobre a eficiência e a equidade na distribuição dos recursos públicos.
Essas emendas reforçam inequivocamente o poder do Legislativo, suscitando
preocupações sobre a crescente fragmentação do orçamento, na medida em que este
poder não atua de maneira coesa em prol de projetos de desenvolvimento
nacional, resultando em uma canalização dos recursos públicos para esquemas
patrimonialistas de poder nas localidades em que cada deputado configura suas
bases eleitorais.
Esse embate de forças
culmina na polêmica sobre a natureza do orçamento: deve ele ser impositivo ou
autorizativo? No modelo autorizativo, o Poder Executivo detém maior controle
sobre as decisões de gasto; já no modelo impositivo, o Legislativo ganha destaque.
Não se pode discutir a natureza do orçamento sem entrar na intricada relação
entre os poderes, onde a disputa por controle e influência sobre o uso dos
recursos públicos é constante.
Paralelamente,
observa-se que a centralização das emendas impositivas no Legislativo, muitas
vezes favorecendo elites locais, tem deslocado o poder de decisão orçamentária
do Executivo, contribuindo para uma escalada do Legislativo em termos de
controle sobre o orçamento. As emendas impositivas, que originalmente visavam
garantir maior autonomia parlamentar, se transformaram em poderosas ferramentas
de barganha política, alimentando projetos de poder locais sem qualquer
incidência na construção de uma nação melhor para todos os brasileiros.
Neste contexto, o STF
tem exercido um papel fundamental na defesa da Constituição. Em 19 de dezembro
de 2023, a Ministra Rosa Weber, em decisão monocrática, proibiu o uso das
emendas do relator-geral do orçamento para criar despesas ou ampliar as programações
previstas no projeto de lei orçamentária anual, destacando que essas emendas
devem se limitar à correção de erros e omissões, conforme a Constituição (art.
166, § 3º, III, alínea “a”). Essa decisão provocou um atrito significativo
entre os Poderes Judiciário e Legislativo, ao limitar uma prática que vinha
sendo usada para moldar o orçamento de forma pouco transparente e à margem do
controle constitucional. O Legislativo rapidamente se adaptou, introduzindo as
chamadas “emendas pix” — transferências diretas aos municípios sem a exigência
de projetos específicos e sem transparência quanto à sua rastreabilidade.
Em 14 de agosto de
2024, o Ministro Flávio Dino, em decisão monocrática, impôs novas restrições ao
uso das emendas impositivas, buscando restaurar o controle do orçamento
nacional e reequilibrar o poder entre Legislativo, Executivo e Judiciário. A
decisão exige que as emendas cumpram critérios técnicos de eficiência,
transparência e rastreabilidade, e atribui ao Executivo a responsabilidade de
avaliar, de forma fundamentada, se as emendas estão aptas à execução. Além
disso, determina que a execução só ocorrerá se houver um plano de trabalho
compatível com o orçamento e plena transparência e rastreabilidade dos
recursos.
Em resposta à decisão
de Flávio Dino, os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo
Pacheco e dez partidos (PL, União Brasil, PP, PSD, PSB, Republicanos, PSDB,
PDT, Solidariedade e PT) apresentaram ao presidente do STF, Luís Roberto
Barroso, um pedido de suspensão de liminar das decisões monocráticas de Flávio
Dino. No entanto, Barroso manteve a liminar, afirmando que o plenário do STF
deveria decidir sobre o assunto. Em uma sessão extraordinária em 16 de agosto,
os ministros do STF votaram unanimemente pela continuidade da suspensão das
emendas impositivas até que o Congresso estabelecesse novas regras de
transparência. Curiosamente, os ministros Nunes Marques e André Mendonça,
indicados por Jair Bolsonaro, também votaram com Dino para suspender os
pagamentos das emendas “Pix” e impositivas. Menos de uma semana depois, em uma
reunião no Supremo, foi acordado que as emendas Pix continuariam, mas com novas
exigências, como a identificação prévia dos objetos, prioridade para obras
inacabadas, e prestação de contas ao TCU e à CGU. Decidiu-se também que as
emendas de bancada seriam direcionadas a projetos estruturantes, enquanto as de
comissão focariam em projetos de interesse nacional ou regional, definidos em
conjunto pelo Legislativo e Executivo.
A decisão recupera,
portanto, a ingerência do Executivo sobre a destinação destes recursos, que
serão canalizados para projetos nacionais, capitaneados e delineados sob a
batuta do presidente da República. Em seu terceiro mandato, assim como nos
anteriores, Lula segue apostando no desenvolvimentismo como estratégia para
aquecer a economia e aumentar a percepção de bem-estar dos cidadãos,
estimulados pelo consumo. Daí sua preocupação em aumentar a arrecadação e
conter a sangria orçamentária através das emendas.
Esse resultado
enfraqueceu a posição do Legislativo, que agora enfrenta a perspectiva de ceder
parte de seu poder nas negociações com o Executivo e o Judiciário. Como
resposta, a Câmara dos Deputados rapidamente movimentou-se para frear a atuação
do STF. A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) colocou em pauta um pacote
de medidas que visam restringir os poderes dos ministros do STF.
Entre as propostas em
discussão estava a possibilidade de o Congresso suspender decisões da Corte que
sejam consideradas uma extrapolação da função jurisdicional. Outra medida era a
“PEC das Decisões Monocráticas”, aprovada pelo Senado no ano passado, mas
paralisada na Câmara até o recente embate com o STF. Além disso, o pacote
incluía dois projetos de lei que tipificam como crime de responsabilidade dos
ministros do STF qualquer “usurpação de competência” do Legislativo ou do
Executivo. No entanto, após articulações da base governista, a CCJ adiou a
votação dessas propostas, incluindo os dois projetos de lei. Embora os projetos
estivessem em discussão na CCJ, isso não implicava que seriam levados ao
plenário da Casa para votação.
Embora as emendas
impositivas tenham sido criadas com o objetivo de fortalecer a autonomia
parlamentar, a modalidade atualmente em discussão no STF levanta sérias
preocupações quanto à falta de transparência na alocação dos recursos. A
transformação dessas emendas em ferramentas de barganha política compromete a
governabilidade e a gestão fiscal eficiente, criando um ambiente propício para
o uso indevido dos recursos públicos. É fundamental que o debate no STF leve em
consideração a necessidade de aprimorar os mecanismos de transparência e
controle, garantindo que essas emendas cumpram seu propósito original de
atender ao interesse coletivo de maneira clara e responsável.
Assim como ocorreu na
relação com as derivas autoritárias de Jair Bolsonaro e a PL do Estupro, o STF
cumpre o papel que lhe foi outorgado no arranjo neoconstitucionalista, oriundo
dos traumas oriundos da Segunda Guerra Mundial, atuando como guardião da Constituição
e dos princípios do liberalismo político em face da formação de maiorias
contrárias aos seus princípios básicos como os direitos civis e à divisão de
Poderes.
Fonte: Por Mayra
Goulart e Dayenne Oliveira, em A Terra é Redonda
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