Viver e morrer nos presídios brasileiros
As prisões no Brasil,
um dos países com maior número de pessoas encarceradas no mundo, são um
caldeirão de enfermidades e morte. Quem passa uma temporada atrás das grades
corre de duas a sete vezes mais risco de contrair uma doença infecciosa (em
especial a tuberculose) e de morrer do que o resto da população da mesma idade.
Também experimenta uma probabilidade duas a seis vezes maior de ser morto em
brigas e outras situações violentas ou de, aparentemente, tirar a própria vida,
em particular se for jovem. A possibilidade aumentada de adoecer, espalhar
enfermidades e morrer não cessa com o fim da pena. Os riscos continuam mais
elevados por anos após o retorno à vida em liberdade, antes de se igualarem aos
de quem nunca foi encarcerado, e têm algumas especificidades. Por exemplo, é
alta a taxa de óbitos por agressão e homicídio após a saída da prisão,
diferentemente do que ocorre em países de alta renda, como Austrália, Suécia ou
Estados Unidos, onde os ex-detentos morrem mais em decorrência de intoxicação
por álcool e uso de drogas, segundo estudo publicado em abril na revista The
Lancet.
O cenário nacional –
tenebroso e, de certo modo, já imaginado – começou a ser mais bem delineado nos
últimos anos graças a uma série de estudos realizados por médicos, enfermeiros,
psicólogos, antropólogos, historiadores e sociólogos interessados em conhecer
como vivem e morrem os presos brasileiros. Muito do que se sabe hoje sobre o
tema resulta de estudos iniciados na década passada por equipes como a dos
infectologistas Julio Croda, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(UFMS) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e Jason Andrews, da Universidade
Stanford, nos Estados Unidos, que vêm identificando a frequência e os padrões
de disseminação de doenças infecciosas nos presídios nacionais, além das causas
de morte dentro e fora da prisão. Ou das análises do grupo liderado pela médica
sanitarista Ligia Kerr, da Universidade Federal do Ceará (UFC), que em 2014
começou a avaliar a saúde física e mental das mulheres presas, e da socióloga
Maria Cecília de Souza Minayo e da psicóloga Patricia Constantino, ambas da
Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fiocruz, que recentemente mapearam
as condições de vida e saúde de idosos em presídios do estado do Rio de
Janeiro.
O quadro que se
desenha a partir desses trabalhos indica que o sistema prisional brasileiro, de
modo similar ao de outros países, falha em cumprir as obrigações legais no que
diz respeito às pessoas privadas de liberdade mantidas sob a guarda do Estado. Em
vez de oferecer instalações adequadas ao cumprimento da pena, além de acesso à
saúde e à educação, a fim de “proporcionar a harmônica integração social do
condenado e do internado”, como estabelece a Lei de Execução Penal nº 7.210, de
1984, as prisões do país levam ao agravamento da saúde dos encarcerados. “No
ordenamento jurídico brasileiro atual, não existe pena de morte, mas nossos
cárceres parecem sentenciar muitos detentos à morte”, avalia Cíntia Rangel
Assumpção, agente federal de execução penal e coordenadora-geral de Cidadania e
Alternativas Penais da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), do
Ministério da Justiça e Segurança Pública. “Esse efeito está ligado à nossa
ideia, como sociedade, de que a pena é uma forma de vingança.”
Para alguns
especialistas, o sistema carcerário intensifica as mazelas da sociedade por
concentrar a população socialmente marginalizada e com menos acesso a recursos
econômicos, educacionais e de saúde. De acordo com o Sisdepen, a ferramenta de
coleta de dados do Sistema Penitenciário Brasileiro, e com a versão mais
recente do “Relatório de informações penais”, havia 642.491 homens e mulheres
mantidos em presídios no país no segundo semestre de 2023. Deles, quase 66%
eram pretos e pardos; 60% tinham entre 18 e 34 anos; e 59% não haviam
completado os nove anos do ensino fundamental. “Em geral, são pessoas sem
qualificação profissional, que tiveram pouquíssimas oportunidades de inserção
no mercado de trabalho”, conta Assumpção.
Celas lotadas e com má
ventilação, alimentação desbalanceada e acesso limitado a cuidados médicos
ajudam a transformar as prisões no que Croda, Andrews e a epidemiologista Yiran
Liu, que estuda o impacto do encarceramento sobre a saúde em seu doutorado em
Stanford, chamaram em um artigo publicado em fevereiro no Journal of Infectious
Diseases de “amplificadores institucionais” da propagação de patógenos. “Nesses
ambientes”, escreveram os pesquisadores, “surtos de tuberculose, cólera,
sarampo, caxumba, varicela, gripe e Covid-19 se espalham com velocidade
devastadora”.
“Cadeia não tem
vocação para a saúde”, resume o médico Drauzio Varella, um dos pioneiros a
tratar portadores do HIV no sistema carcerário. Desde 1989, ele atende
voluntariamente detentos em presídios da capital paulista e, com base no que
conhece sobre as cadeias de São Paulo, afirma que pouca coisa mudou. “A
situação de saúde que encontro hoje é muitas vezes igual à de 30 anos atrás na
Casa de Detenção de São Paulo”, conta o médico, que hoje atua no Centro de
Detenção Provisória Chácara Belém, no bairro de Belenzinho, na capital
paulista. “A situação costuma ser mais grave nos presídios masculinos. As celas
têm de 5 a 10 presos a mais do que o número de camas, e parte dorme no chão.
Nos centros de detenção, não há equipe interna de saúde. O estado até abre
concurso, mas médicos não se apresentam. Os salários são baixos e o ambiente é
tenso.”
A frequência das
principais infecções que atingem os detentos brasileiros começou a ser mais bem
conhecida a partir dos trabalhos de Croda e Andrews. No início dos anos 2010,
eles e colaboradores passaram a realizar rastreamentos sistemáticos das enfermidades
transmissíveis graves nos presídios de Mato Grosso do Sul, um dos estados que
proporcionalmente mais encarcera gente no país – são cerca de 650 presos em
cada grupo de 100 mil habitantes, o dobro da média nacional (320 por 100 mil).
Os pesquisadores
analisaram amostras de sangue coletadas entre março de 2013 e março de 2014 de
3,6 mil detentos (85% homens e 15% mulheres) mantidos em 12 presídios
sul-mato-grossenses. Constataram que, em média, 1,6% dos indivíduos era
portador do HIV, o vírus da Aids, uma infecção associada a comportamentos de
risco – como a prática de sexo sem proteção, a realização de tatuagens em
locais inseguros ou o compartilhamento de seringas – antes ou durante a prisão.
Essa proporção, registrada em um artigo publicado em 2015 na revista PLOS ONE,
é cerca de quatro vezes superior à da população brasileira. Estudos nacionais
anteriores já haviam detectado taxas mais elevadas, mas, em geral, realizados
em um único presídio e na década anterior.
Outro vírus encontrado
mais comumente entre detentos do que em quem nunca passou pelo cárcere é o da
hepatite C (HCV), de acordo com outro trabalho, publicado em 2017 também na
PLOS ONE. Transmitido por contato com sangue infectado (via compartilhamento de
seringas e outros objetos de uso pessoal, além de cirurgias e transfusões
sanguíneas), ele causa uma inflamação silenciosa no fígado que pode progredir
para cirrose ou câncer. No grupo acompanhado por Croda e colaboradores nos 12
presídios, 2,4% eram portadores de HCV, quase o dobro da população geral.
Também foi mais
elevada entre os presidiários a taxa de resultados positivos para os testes de
sífilis. Essa doença sexualmente transmissível é causada pela bactéria
Treponema pallidum: 9% dos homens e 17% das mulheres haviam tido a infecção em
algum momento da vida e 2% deles e 9% delas apresentavam a forma ativa da
enfermidade no momento da pesquisa, segundo dados publicados em 2017 em The
American Journal of Tropical Medicine and Hygiene.
A situação mais
assustadora diz respeito à tuberculose, a infecção mais letal no mundo,
responsável por 1,5 milhão de mortes a cada ano. Em três rodadas de testagens
realizadas entre 2017 e 2021, as equipes de Croda e Andrews encontraram taxas
de prevalência da infecção por Mycobacterium tuberculosis que, em casos
extremos, como os relatados em fevereiro deste ano em artigo publicado na
Clinical Infectious Diseases, chegavam a 4.034 para cada grupo de 100 mil
pessoas presas, ou seja, de 4%. Esse número é 100 vezes superior à prevalência
registrada da população não encarcerada, 40 por 100 mil.
Nesse tempo todo
investigando o comportamento da tuberculose, os pesquisadores aprenderam que
uma proporção pequena dos presos (inferior a 10%) chega ao cárcere já
infectada, muitas vezes sem manifestar a enfermidade. Também observaram que,
depois de um ano de detenção, uma em cada quatro pessoas que nunca haviam tido
tuberculose apresenta resultado positivo nos testes de detecção do bacilo.
Comparando a evolução
da ocorrência de tuberculose de 2007 a 2013 em toda a população de presos em
Mato Grosso do Sul, o médico Tarub Mabud, da equipe de Stanford, verificou que
a taxa de casos novos relatados dos recém-encarcerados era de 111 por 100 mil
pessoas. Entre presos encarcerados por 5,2 anos, a taxa era quase 12 vezes
maior. Projeções realizadas pelo grupo e publicadas em 2019 na PLOS Medicine
indicam que ela continua bem mais elevada entre essas pessoas mesmo depois de
um bom tempo após a saída do cárcere. “Leva sete anos para que a taxa de novos
casos de tuberculose entre os ex-detentos se iguale à do resto da população”,
conta o enfermeiro Everton Lemos, da Universidade Estadual de Mato Grosso do
Sul (UEMS), coautor do estudo.
Os pesquisadores já
sabiam que as altas taxas de tuberculose dos presídios não representam um
problema apenas para os detentos. Em 2013, a farmacêutica Flávia Patussi Sacchi
confrontou as características genéticas de bacilos isolados de 240 casos de
tuberculose (60 em presos ou ex-presidiários e 180 entre cidadãos da
comunidade) registrados entre 2009 e 2013 em Dourados (MS). Em 54% dos casos,
as cepas de M. tuberculosis encontradas entre quem nunca esteve atrás das
grades era geneticamente semelhante à dos detentos e ex-detentos, como relatou
à época em artigo na Emerging Infectious Diseases.
Mais recentemente, a
epidemiologista Katharine Walter, da equipe de Stanford, sequenciou o material
genético de 935 amostras de M. tuberculosis isoladas de casos ocorridos entre
2014 e 2019 nas cidades de Dourados e Campo Grande, a capital do estado. Metade
delas havia sido obtida de presos, 16% de ex-detentos e 34% de pessoas sem
história de encarceramento. Outra vez a semelhança genética entre as cepas foi
alta, sinal de que a transmissão era recente, segundo artigo na The Lancet
Global Health – Americas de 2022. Ao cruzar os dados genômicos com os da
circulação dos presos, os pesquisadores identificaram 18 prováveis episódios de
transmissão dos presídios para a sociedade.
“As transferências de
detentos entre presídios, o retorno à vida fora do cárcere e o contato com
familiares e os servidores do sistema prisional facilitam o escape para a
sociedade”, explica Croda. “Não é possível resolver o problema da tuberculose
no país, um dos que mais registram casos da doença no mundo, sem prestar o
atendimento adequado à população encarcerada.”
Nas últimas duas
décadas, a prevalência de tuberculose dobrou nas prisões da Américas do Sul.
Médicos e outros especialistas atribuem essa elevação principalmente ao aumento
do encarceramento e à consequente superlotação. De 2000 para cá, a população
prisional do Brasil cresceu quase quatro vezes e se tornou a terceira maior do
mundo. No final de 2023, somava quase 844 mil indivíduos, com aproximadamente
200 mil em regime de prisão domiciliar (com e sem monitoramento por
tornozeleira eletrônica) e pouco mais de 642 mil mantidos em 1.388 presídios,
nos quais há vagas para apenas 480 mil.
Andrews vê dois
caminhos para tentar melhorar a situação: um biomédico e outro judicial. Do
lado biomédico, ele identifica a necessidade de mais investimento em recursos
para serviços de diagnóstico, prevenção e tratamento, além da adoção de medidas
que podem reduzir o risco de doenças infecciosas, como a melhoria da ventilação
natural, aumento de horas ao sol ou medidas de higienização com radiação
ultravioleta. No aspecto judicial, a saída seria buscar formas de punição
alternativas ao encarceramento para os crimes não violentos. “No Brasil, as
prisões são um importante local de recrutamento para o crime organizado.
Encarcerar mais pessoas nesse contexto não traz segurança e piora as condições
de saúde devido à superlotação.”
Enquanto estudavam a
frequência e o comportamento das doenças infecciosas nos presídios, Croda e
Andrews notaram que nesse ambiente o perfil do que leva ao óbito é diferente do
restante da sociedade. Com apoio do governo estadual, eles conseguiram acesso
aos dados de 114,7 mil indivíduos que estiveram presos em algum momento entre
2009 e 2018 em Mato Grosso do Sul. No período, houve 3.127 mortes, sendo 705
durante o encarceramento e 2.422 após a liberação. Ao cruzar as informações
sobre a causa desses óbitos com os dados de sexo, idade e data de reclusão dos
encarcerados, Yiran Liu constatou uma desproporção de óbitos por causas
violentas e suicídio, além das mortes por doenças infecciosas.
A passagem pela prisão
aumenta em 30% o risco de morrer por qualquer causa. Mas a probabilidade de
morrer em consequência de agressões ou suicídio é duas vezes maior do que na
população geral – elas foram, respectivamente, responsáveis por até 33% e 8% dos
óbitos entre os homens no cárcere. Esse risco é ainda mais alto entre os mais
jovens: nos centros de internação de adolescentes, ele é 19 vezes mais elevado
do que na população geral. “Se as prisões fossem eficazes em promover a
segurança, esperaríamos ver taxas menores de mortes por causas violentas
durante o encarceramento e após a libertação”, afirma Liu, primeira autora do
artigo que apresentou esses resultados, publicados em 2022 na PLOS Medicine.
Esse trabalho serviu de base para o estudo da The Lancet citado no início da
reportagem. “Acreditamos que o encontrado em Mato Grosso do Sul representa o
que ocorre no restante do país”, relata Croda.
Em 2023, as
professoras Maira Machado, do curso de direito da Fundação Getulio Vargas (FGV)
em São Paulo, e Natália Vasconcelos, do Insper, reuniram uma equipe de pesquisa
para analisar a razão do óbito dos presos brasileiros. Foram estudados 1.168
processos de todos os estados brasileiros que haviam sido extintos entre 2017 e
2021 em consequência da morte do condenado, 10% delas ocorridas enquanto as
pessoas se encontravam sob a custódia do Estado e o restante em média 1,5 ano
após sair do presídio.
Grosso modo, elas
foram classificadas em três categorias: naturais, acidentais e violentas. Lendo
os processos, no entanto, os pesquisadores observaram que essa distinção nem
sempre era tão nítida e muitas vezes não havia empenho em investigar a causa. “Essa
tipologia de mortes oculta fronteiras. Uma parte das mortes naturais é, em
algum grau, produzida pelo próprio sistema, ao passo que muitas mortes
violentas são naturalizadas, como se conflitos entre facções criminosas e
falhas do sistema carcerário não pudessem ser evitadas ou prevenidas”, conta o
sociólogo Rafael Godoi, da Universidade Estadual do Maranhão (Uema), um dos
autores do trabalho, que resultou no relatório “Letalidade prisional, uma
questão de justiça e de saúde pública”.
Fonte: Por Ricardo
Zorzetto, na Pesquisa Fapesp
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