A engrenagem por trás das decisões do STF:
como funcionam os gabinetes dos ministros?
Decisões de grande
repercussão do Supremo Tribunal Federal (STF) passam não só pelas mãos dos onze
ministros, mas de assessores que trabalham muito próximo a eles.
Essa dinâmica, ainda
pouco conhecida do público em geral, ganhou visibilidade nas últimas semanas
com o vazamento de mensagens privadas trocadas por assessores do ministro do
STF e ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral Alexandre de Moraes.
As conversas, tornadas
públicas pelo jornal Folha de S.Paulo, mostraram Airton Vieira, juiz instrutor
de Moraes no STF, orientando, a pedido do ministro, a produção de relatórios no
TSE sobre suspeitos de propagar desinformação sobre o processo eleitoral e
ataques a ministros da Corte.
A conduta levantou
críticas de que Moraes teria agido fora do rito processual e de forma parcial,
ao solicitar relatórios que foram, depois, usados em inquéritos criminais para
fundamentar decisões como bloqueio de contas em redes sociais, suspensão de passaporte
e congelamento de contas bancárias.
Já outros
especialistas dizem que o ministro atuou dentro do poder de polícia da Justiça
Eleitoral e apenas solicitou relatórios sobre informações públicas divulgadas
nas redes sociais — argumentos que o próprio magistrado usou em declarações
públicas para justificar sua atuação.
A BBC News Brasil
conversou com quatro ex-assessores de ministros do STF sobre como funcionam os
gabinetes na Corte. Os entrevistados evitaram entrar no mérito da atuação de
Airton Vieira e Moraes, mas ajudaram a entender melhor a dinâmica dessas
equipes de assessoramento.
A reportagem ouviu o
advogado Davi Tangerino, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) que assessorou o ministro
aposentado Ricardo Lewandowski, atual ministro da Justiça e Segurança Pública;
o advogado Felipe Fonte, professor da FGV que atuou no gabinete do ministro
aposentado Marco Aurélio Mello; e o magistrado Leandro Galluzzi, que foi juiz
instrutor dos ministro Cezar Peluso, já aposentado, e Teori Zavascki, falecido
em 2017.
Também foi
entrevistada uma advogada que atuou no gabinete de um ministro que ainda está
na Corte, mas que preferiu não ser identificada na reportagem.
Segundo os
entrevistados, são os auxiliares de maior confiança que costumam escrever, sob
orientação e revisão dos ministros, as decisões de maior impacto dos gabinetes.
Eles também
supervisionam os funcionários em postos mais baixos nos casos mais simples, o
grosso dos milhares de processos ou recursos analisados anualmente – decisões
que, muitas vezes, nem passam pelos olhos do ministro.
"Se alguém disser
que os ministros leem 100% do que eles assinam, é mentira", afirma Davi
Tangerino.
Os ex-assessores
também contam como é importante estar bem relacionado, sobretudo em meios
acadêmicos do Direito, para conseguir participar das seleções para os
gabinetes.
Uma linha jurídica
semelhante à do ministro também é esperada. Reconhecido por ser duro em ações
penais, Moraes já fez piada pública sobre a falta de garantismo – corrente do
Direito que valoriza os direitos dos acusados – do seu juiz instrutor, Aírton Vieira.
Os entrevistados
também revelam um ritmo de trabalho intenso. A ex-assessora que conversou com a
reportagem diz que o ambiente é "muito desafiador e estimulante
intelectualmente", mas também "estressante e competitivo".
"Você trabalha
100% do tempo", disse ela, lembrando que os assessores aproveitam as
portas abertas pelo cargo para publicar livros e artigos.
O cargo também pode
alavancar carreiras dos que voltam ao mercado da advocacia após um período nos
gabinetes, nota Tangerino. Não há quarentena para defensores assumirem casos no
STF, após deixarem os gabinetes, ficando ao critério do ministro se declarar ou
não suspeito para julgar processos desse profissional.
"É uma
oportunidade incrível de aprendizado. Alguns advogados depois vão abrir um
escritório e capitalizar em torno disso. Existe um jeito absolutamente
republicano de capitalizar que é dizer [aos clientes]: 'Eu tenho essa
experiência, eu conheço o Tribunal por dentro'", afirma.
"Mas também tem a
turma que pode passar a vender acesso [ao gabinete]. Então, quanto mais público
for isso [quem são os assessores dos ministros], mais se consegue
controlar", defende.
Entenda a seguir, em
três pontos, o funcionamento dos gabinetes, como os assessores são selecionados
e qual o perfil desse time.
• O funcionamento dos gabinetes
O STF produz um volume
enorme de decisões, em comparação a outros tribunais constitucionais.
A Suprema Corte
americana, por exemplo, não costuma superar cem decisões ao ano. Já o STF
concedeu 101.970 decisões em 2023, sendo 17.320 colegiadas, tomadas pelo
plenário e as duas turmas da Corte, e 84.650 individuais, proferidas pelos
ministros isoladamente.
Para dar conta desse
volume, cada gabinete tem de 30 a 40 pessoas para assessorar os ministros na
condução dos processos e na produção dos votos.
Parte da equipe é
composta por servidores concursados do STF, que ocupam os cargos de analistas e
técnicos judiciários, e parte por profissionais de fora da Corte, selecionados
pelos ministros, que podem ser advogados, acadêmicos do Direito ou servidores
de outros órgãos públicos cedidos ao Supremo, principalmente do próprio Poder
Judiciário.
Desses profissionais
convidados a integrar os gabinetes, ao menos três são juízes de primeira
instância ou desembargadores, que exercem as funções de juiz instrutor — que
atuam nas ações criminais — ou juiz auxiliar — que atuam nos demais casos.
Um dos cargos de
confiança é ocupado pelo chefe de gabinete, que gerencia seu funcionamento.
Mas as funções
consideradas mais importantes, dizem os entrevistados, são desempenhadas pelos
juízes e os assessores de ministro (dez em cada gabinete).
Parte das vagas de
assessores é ocupada por servidores concursados do STF, que recebem uma
comissão, mas a maioria costuma ficar com os profissionais de fora da Corte.
O criminalista Davi
Tangerino atuou entre 2007 e 2008 — época do recebimento da denúncia do
escândalo do Mensalão — como assessor de Lewandowski, que deixou a Corte em
2023.
Ele divide o trabalho
da equipe dos ministros em dois grupos principais. Um deles, composto pelos
servidores concursados do próprio Supremo, costuma cuidar do grosso dos
processos, aqueles casos que não demandam uma atenção aprofundada dos ministros
porque já têm jurisprudência consolidada.
Nestes casos, os
servidores replicam decisões já conhecidas dos ministros em julgamentos
anteriores semelhantes. Ainda assim, esse trabalho tem a supervisão de algum
assessor de confiança do ministro.
O outro grupo —
formado pelos assessores e juízes convocados — cuida das ações mais complexas e
sensíveis.
Esses auxiliares
costumam ser divididos por tipos de ações, como processos criminais ou as ações
originárias (que começam no STF) que abordam controle de constitucionalidade
(por exemplo, se determinada lei ou conduta fere um direito previsto na
Constituição).
"E qual é o nosso
papel? Analisar o caso e propor uma decisão para o ministro. Agora, o jeito de
fazer isso é muito diferente de um gabinete para o outro. Tem ministro que
realiza reuniões com a equipe para debater os casos", nota Tangerino
"O Lewandowski
adiantava o que ele estava entendendo provisoriamente, e eu rascunhava o voto
naquele sentido. Com o tempo, você vai entendendo o jeitão de decidir em alguns
temas, e aí fica até desnecessário [a conversa prévia]. O bom assessor tenta
espelhar o ministro, é quase um ghost writer", ressalta.
O juiz instrutor,
cargo que passou a existir apenas em 2009, tem uma função mais específica. Ele
sempre cuida de investigações e ações penais originárias — ou seja, casos
criminais que iniciam sua tramitação no próprio Supremo, como os inquéritos das
Fake News, que apura ataques mentirosos à Corte, e das Milícias Digitais, que
investiga milícias digitais antidemocráticas e seu financiamento, ambos
presididos por Moraes.
Este juiz realiza as
ações necessárias para o andamento de um processo criminal, como colher o
depoimento de suspeitos, réus e de testemunhas; autorizar diligências para
colheita de provas; e fixar prazos para o cumprimento das etapas do caso.
Antes da criação desse
cargo, a instrução processual era feita por cartas de ordem, em que os
ministros determinavam a juízes de todo o país que fizessem a coleta de provas
nas comarcas onde residiam testemunhas ou réus.
"Os assessores
próximos aos ministros, em geral, ocupam a segunda hierarquia mais alta nos
gabinetes, só perde para o do próprio ministro. Esses assessores normalmente
coordenam suas áreas", ressalta o magistrado Leandro Galluzzi, que atuou
nos gabinetes de Peluso e Zavascki de 2011 até o início 2014, principalmente
como juiz instrutor.
"O juiz instrutor
acaba sendo responsável também pelos assessores e analistas [judiciários] que
cuidam da parte penal. Não cuida só das ações grandes, cuida também daquele
habeas corpus que chega de Pindamonhangaba. Sempre refletindo aquilo que já conhece
do [modo de decidir do] ministro", acrescenta.
A criação do juiz
instrutor veio em um contexto de alta das ações penais contra autoridades no
STF, após o escândalo do Mensalão (2005), com objetivo de otimizar o
funcionamento dos gabinetes.
Um dos primeiros a
ocupar o cargo foi o hoje senador Sergio Moro (União-PR). Ele atuou no gabinete
da ministra aposentada Rosa Weber e depois foi o juiz de primeira instância
responsável por julgar os casos derivados da operação Lava Jato.
• Como os assessores são escolhidos?
Para ser assessor de
um ministro do STF, não é preciso conhecê-lo previamente, mas é importante
estar bem conectado para que seu nome possa chegar até ele ou ela. Estudar nas
mais renomadas universidades também costuma abrir portas.
O advogado Felipe
Fonte, por exemplo, se tornou assessor do ministro aposentado Marco Aurélio em
2011, por indicação dos professores da Uerj, onde havia feito, até então,
graduação e mestrado.
Ele conta que uma das
filhas do ministro estava cursando disciplinas do mestrado na universidade e
disse que o pai procurava pessoas qualificadas para o cargo de assessor.
"Eu mandei meu
currículo através dos professores, fiz uma entrevista, e nosso santo
bateu", conta.
Fonte lembra que Marco
Aurélio tinha alguns ritos próprios no seu gabinete. Ele nunca quis o auxílio
de juízes, pois preferia ser o único magistrado em sua equipe.
Outra curiosidade é
que o ministro não escrevia votos — em vez disso, gravava suas decisões
oralmente, que eram depois transcritas por um setor de degravação do gabinete.
Isso nem sempre era
necessário. Se havia casos repetidos, em que a posição do ministro já era
sabida, os assessores redigiam os votos e enviavam para ele assinar.
"Se não [fosse um
caso já conhecido], eu escrevia um texto sugerindo argumentos e vendo como ele
queria que fosse encaminhado. Às vezes, ele pedia para que a gente redigisse
uma minuta, que sempre voltava para ele mexer. O resultado prático disso é que
o ministro Marco Aurélio era o ministro com mais processos [acumulados] no
gabinete", recorda.
O juiz Leandro
Galluzzi, do Tribunal de Justiça de São Paulo, também foi trabalhar com o
ministro aposentado Cezar Peluso em 2011 pela indicação de colegas de
faculdade, no caso dele, da Universidade de São Paulo (USP).
Antes de ser juiz, ele
havia trabalhado no Ministério da Justiça, com Márcio Thomaz Bastos, nos
primeiros governos Lula, o que também valorizou seu currículo.
"Peluso não
queria convocar um juiz que fosse conhecido dos seus filhos, pois ele tem dois
filhos juízes em São Paulo, para não parecer proteção. Então, amigos que
trabalhavam no gabinete dele e foram da minha turma na faculdade me
recomendaram, e eu fiz uma entrevista com o ministro."
Na ocasião, Peluso
presidia o STF e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão que fiscaliza o
Judiciário, e Galluzzi foi nomeado por lá inicialmente, embora sua função
principal fosse apoiar o trabalho do ministro no Supremo.
Na época, recorda, não
havia uma vaga disponível para trabalhar no STF, porque os ministros tinham
direito a dois juízes apenas (um auxiliar e um instrutor), número que subiu
para três em 2017.
Gabinetes com maior
volume de trabalho na área penal, porém, têm, excepcionalmente, mais
auxiliares. Edson Fachin, principal relator da operação Lava Jato no STF, tem
cinco (um auxiliar e quatro instrutores). Já Moraes, presidente de diferentes
inquéritos criminais, tem quatro (três auxiliares e um instrutor).
Depois, quando Peluso
deixou a presidência do STF e do CNJ, Galluzi se tornou juiz instrutor no seu
gabinete no Supremo. Com a aposentadoria do ministro em 2012, continuou por
mais um ano com seu sucessor, Teori Zavascki.
Galluzzi lembra que os
dois tinham estilos muito diferentes.
"O Peluso era um
estilo mais aberto, de reunir a equipe toda, várias vezes, juiz e assessor. Com
ele, as coisas eram menos hierarquizadas. Com o Teori, havia uma hierarquia
maior, inclusive em relação ao próprio ministro com os juízes, os juízes com os
assessores, os assessores com os analistas", conta.
"Eu tinha até
mais poder com o Teori do que eu tinha com o Peluso, embora a minha relação
fosse muito mais próxima com o Peluso nas reuniões que fazia com a equipe
toda."
• Perfil dos assessores
Os ministros,
ressaltam os entrevistados ouvidos pela BBC News Brasil, tendem a valorizar
assessores com visões e trajetórias próximas às suas, além de profissionais dos
seus Estados de origem.
Edson Fachin, por
exemplo, que é do Paraná, tem boa parte dos seus assessores de confiança cedido
por órgãos daquele Estado, enquanto o ministro Flávio Dino montou sua equipe
com vários nomes do Maranhão, seu Estado natal.
Moraes, que é
paulista, tem muitos assessores vindos de São Paulo. Conhecido por ter posições
consideradas mais rigorosas na área penal, ele buscou esse perfil ao escolher
como seu juiz instrutor Airton Vieira, magistrado que já se declarou,
inclusive, a favor da pena de morte.
Ao discursar na
cerimônia de posse de Vieira como desembargador no Tribunal de Justiça de São
Paulo, o ministro destacou "a sua serenidade, a sua competência, a sua
tecnicalidade", antes de brincar: "Eu só não posso dizer aqui o seu
garantismo [linha jurídica que valoriza os direitos dos acusados], porque aí eu
estaria mentindo demais. Nem um semigarantismo existiria no Airton”.
Segundo os
entrevistados, assessores que vêm da iniciativa privada, como advogados, tendem
a ter uma rotatividade maior nos gabinetes. Isso porque a remuneração desse
grupo não é alta quando comparada ao que ganham advogados bem-sucedidos em seus
escritórios.
Segundo o Portal da
Transparência do STF, a remuneração mais comum paga em maio (dado mais recente
disponível) a assessores de ministros sem vínculo com a Corte ou outro órgão
público era de R$ 14.539,41 brutos. O valor mais alto era de R$ 18.683,14.
Já servidores
concursados da Corte que chegam ao mesmo cargo receberam, em média, R$ 30.422
brutos no mesmo mês, segundo cálculo da reportagem a partir dos dados do STF.
Assessores cedidos de
outros órgãos públicos mantêm seus salários originais e recebem um adicional. O
valor bruto mais comum pago pelo Supremo em maio era de R$ 9.450,62.
Juízes também mantêm
seu salário normal mais um adicional, cujo valor mais comum em maio era de R$
4.076,29. Além disso, ganham diárias por estarem fora dos seu Estado de origem,
que costumam somar mensalmente R$ 10.653,50.
Para além da
remuneração, o ambiente é descrito como rico intelectualmente e uma experiência
que abre portas no mercado da advocacia e na área acadêmica, com mais oportunidades
para publicar artigos e livros. O ritmo de trabalho, recordam, é intenso.
"É um ambiente de
disputa [entre os assessores] pela atenção [do ministro] e de sarrafo bem alto.
É muito desafiador e estimulante intelectualmente. Nas reuniões, era comum um
perguntar ao outro: 'O que você vai escrever nessas férias?'", conta a
advogada entrevistada.
Por outro lado, ela
ressalta, "é um ambiente muito estressante, você trabalha 100% do
tempo", o que torna difícil "conciliar com outros aspectos da vida
pessoal".
Na sua avaliação, isso
tende a atrair pessoas mais jovens e cria desafios extras para mulheres que são
mães, por exemplo, embora existam assessoras com filhos em cargos importantes.
Esse contexto, aliado
"ao ambiente muito masculino do Poder Judiciário", contribui para a
maioria de homens nos cargos de confiança, afirma.
"O Judiciário é
um ambiente muito masculino, em geral, e, no Supremo, tem esse ambiente de
competição, de exaustão, de desafio, que torna isso mais forte. Porque,
socialmente, homens tendem a se colocar de forma mais assertiva",
acredita.
"Isso é um
desafio para muitas mulheres. Então, já tem um viés de seleção de que tem que
ser alguém que tem esse perfil, ou que adquira esse perfil, para conseguir se
manter.”
Fonte: BBC News Brasil
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