Entre área abandonada e empresas, moradores
da Muribeca, em Jaboatão, temem enchentes
“Eu sinto que estou
num buraco que a qualquer momento a água pode soterrar.” É assim que Taciana
Helena Silva, 39 anos, descreve a Muribeca, em Jaboatão dos Guararapes, na
região metropolitana de Recife (PE). O bairro tem a maior quantidade de áreas
de risco de alagamento do município (51 pontos), de acordo com pesquisa da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Jaboatão foi a cidade com maior
número de mortes em Pernambuco na tragédia das enxurradas de maio de 2022, que
afetou 120 mil pessoas e deixou 133 mortos no estado.
Atualmente, mais de 70
mil domicílios estão situados em áreas de risco alto ou muito alto de inundação
ou deslizamento, segundo levantamento do Centro Popular de Direitos Humanos
(CPDH) a partir de estudos do Serviço Geológico Brasileiro, obtido exclusivamente
pela Agência Pública. O levantamento aponta que, desde 2012, o investimento
público municipal em ações de redução de riscos e infraestrutura urbana foi de
apenas R$ 38,8 milhões.
Taciana mora em uma
casa com a esposa e a filha, de 14 anos, na rua Doutor Armando Tavares, rodeada
por grandes galpões logísticos, como os da Polimix Concretos, Movimenta
Logística e Armazéns Gerais e QLT – Quimitrans Logística & Transportes,
além da Mineradora Owens Illinois Recife. O casal foi para lá depois de ter
sido despejado de um prédio da Cohab na Muribeca, onde moravam desde 1985. O
conjunto habitacional tinha 70 prédios, totalizando 2,2 mil apartamentos. Eles
foram interditados por ordem judicial a partir de 1995, quando o primeiro
prédio, conhecido como “balança mas não cai”, foi esvaziado porque apresentava
falhas estruturais.
Com o passar dos anos,
o conjunto de edifícios se tornou uma espécie de bairro fantasma, com ruínas
abandonadas. Parte dos antigos moradores se instalou em imóveis que ficam entre
o conjunto habitacional, para onde são proibidos de voltar, e os grandes empreendimentos
logísticos. A expansão dessas empresas, na última década, teria aumentado os
riscos de alagamentos no bairro, de acordo com um estudo técnico realizado pela
Cooperativa Arquitetura, Urbanismo e Sociedade (CAUS) e o Somos Todos Muribeca
(STM), organizações atuantes no bairro em defesa do direito à cidade. As casas
circunscritas entre os prédios abandonados e os galpões logísticos são as mais
atingidas, segundo o estudo, e as famílias vivem com o medo constante de novos
alagamentos.
De acordo com o estudo
técnico, o pico das construções de galpões logísticos, que mobilizam
investimentos milionários, aconteceu em 2020. Até 2023, eles já ocupavam uma
área de 44 hectares, equivalente a duas Arenas de Pernambuco lado a lado,
estádio construído para a Copa do Mundo de Futebol de 2014. Mas novos
empreendimentos continuam chegando.
Os pesquisadores dizem
que, ao aterrarem uma área de várzea, historicamente alagadiça, e elevarem o
nível das construções na região, essas “empresas criaram uma espécie de funil,
contribuindo para que o escoamento da água da chuva, que alimenta os canais,
chegue com maior velocidade na comunidade, agora localizada numa parte muito
mais baixa quando se comparada ao espaço onde estão essas instalações”.
Os empreendimentos
estariam “amplificando a invasão da água das chuvas nas casas porque ocupam
áreas que ficam próximas a dois canais que alimentam o curso do Rio Jaboatão, o
Canal Vila Mariana e o Canal Três Carneiros”. Ambos cruzam a área habitada. Também
porque teriam reduzido regiões de mata, que ajudam a escoar a água.
<><> Por
que isso importa?
• Moradores do bairro da Muribeca, em
Jaboatão dos Guararapes, vivem com medo de novos alagamentos. Parte deles foram
expulsos de prédios condenados pela prefeitura, mas os novos locais de moradia
são mais vulneráveis a alagamentos, que estão piorando com a chegada de grandes
empreendimentos logísticos na região.
Emanuela Fernandes, 47
anos, moradora da Muribeca desde os seis, enfrentou todas as enchentes que
atingiram o bairro, entre 2004 e 2022. Ela também foi despejada da antiga Cohab
da Muribeca, onde, lembra, os alagamentos até “aconteciam, mas de forma mais
pontual”. No lugar onde passou a morar, que é perto da casa de Taciana, os
alagamentos são mais intensos, diz.
“Desde que esses
empreendimentos passaram a ocupar áreas próximas a nós, da comunidade, a
quantidade de alagamentos aumentou bastante. Hoje a água rapidamente fica no
joelho quando chove, porque a água vem arrastando tudo, já que estamos numa
parte muito mais baixa do que as empresas. A sensação é de encurralamento,
porque o lado onde a gente hoje mora alaga, e do outro não se pode morar.”
A partir de imagens de
satélite, o estudo técnico aponta que a instalação dos galpões logísticos foi
responsável por “acentuar um dos maiores desastres climáticos ocorridos na
cidade, em 2022”.
“O que as empresas
fizeram foi justamente alterar o curso do rio, criando uma área irregular que
antes não existia, somado a concentração de chuvas em um certo período. Agora,
a comunidade é vítima de um racismo ambiental autorizado pelo poder público. O
que Muribeca virou senão um buraco?”, questiona Diogo Galvão, doutor em
geografia pela UFPE e um dos coordenadores técnicos do estudo.
• Famílias encurraladas
No fim de 2019, seu
Lula, como é mais conhecido Luiz Cláudio Gomes de Melo, 48 anos, foi despejado
do apartamento na Cohab e se instalou numa casa, com a esposa e os filhos, na
rua Cabo, próximo ao Centro de Saúde Alternativa da Muribeca (Cesam). Um ano depois,
uma decisão judicial determinou a demolição do Cesam e de cinco casas no seu
entorno. O centro foi fundado em 1998 por mulheres do bairro e atua na produção
de medicamentos à base de plantas medicinais, distribuídos para a comunidade,
sob supervisão da Fiocruz e da UFPE.
A Justiça decidiu
também que toda e qualquer construção num raio de seis metros dos prédios
interditados na Cohab da Muribeca também fosse demolida, ampliando o raio da
área inabitada. “Ao sair dos prédios da Cohab, pensávamos que o sufoco havia
passado. Porém, o medo veio quando descobrimos que o Cesam teria que ser
demolido e as casas próximas a ele também, inclusive a minha”, conta Lula.
Tanto o Cesam quanto a
igreja Batista que atua no local e as casas do entorno permaneceram depois de
uma nova decisão judicial, em fevereiro de 2020. A regularização fundiária
desses imóveis, entretanto, ainda está sendo realizada.
Após a migração dos
moradores da Cohab, por decisão judicial, a área continuou vazia e virou um
grande depósito de entulho. No processo de despejo, consta que o terreno de
mais de 210 mil metros quadrados seria “destinado a um parque municipal e
outros equipamentos públicos, sendo proibida a construção de novas unidades
habitacionais ou comerciais”. Na época, em 2019, o então prefeito Anderson
Ferreira (PL) se reuniu com o presidente do senado, na época Davi Alcolumbre
(União-AP), para tratar do assunto.
Dois anos depois, ele
lançou um plano de regularização fundiária, prometendo que durante sua gestão
800 casas do bairro da Muribeca teriam o título de legitimação. Mas, até agora,
segundo moradores ouvidos pela Pública, nenhum imóvel foi regularizado. “A
prefeitura veio aqui e recolheu os documentos necessários apenas nas casas da
quadra um. Continuamos sem resposta, mesmo cobrando por isso, tão importante
para nós”, conta seu Lula.
Hoje, Ferreira é
presidente do PL no estado e Jaboatão é gerida pelo seu antigo vice-prefeito
Mano Medeiros (PL), que é candidato à reeleição. A área dos antigos prédios
segue sem função social ou registro de obras para implantação do parque
municipal. “Retira famílias inteiras, derrubam prédios e deixa a área morta,
sendo que essa área da Cohab era a mais propícia para morar por ser a mais
plana e a que menos alaga, em comparação com a área de entorno, para onde as
famílias migram, empresas se instalam e agravam os alagamentos na comunidade”,
explica Manoela Jordão, uma das coordenadoras da CPDH.
• Alagamentos são rotina no bairro
Para conter os
alagamentos, que são constantes no bairro, os moradores passaram a adotar
algumas estratégias. Alguns aumentaram a altura da base das casas ou
construíram até uma laje. Seu Lula e Emanuela mostram móveis estragados, marcas
da água nas paredes e o estoque de tijolos no quintal de casa, que são usados
como um suporte para subir os eletrodomésticos e móveis, quando a água invade.
Mas nenhuma dessas estratégias foi suficiente para impedir inundações das casas
que ficam próximas aos galpões logísticos e foram muito atingidas nas
enxurradas de 2022.
“Eu não consigo mais
dormir em paz. O cheiro do rio engolindo minha casa não sai da minha mente,
mesmo lavando 15 vezes a casa em um único dia com sabão em pó e água
sanitária”, diz Emanuela. Ela conta que, desde 2022, quatro vezes precisou
tomar ansiolíticos e remédios para síndrome do pânico por conta do trauma das
enchentes. No ano passado, a água tomou conta da casa dela mais uma vez.
“Tive que deixar de
pagar algumas contas para colocar uma mureta na frente de casa, como um sinal
para saber o nível da água, se vai invadir ou não. Não deveria ser uma
obrigação minha, já que o que temos passado foi causado pela prefeitura e as
empresas. É por conta deles que a água engoliu minha casa e até hoje.”
Atualmente sua família ainda divide um guarda-roupa com madeira que amoleceu
totalmente nos alagamentos.
Desde 2016, a Muribeca
passou a integrar uma Zona Especial de Interesse Social (Zeis) reconhecida pela
Defensoria Pública do Estado. Mas “o Plano Diretor mais recente de Jaboatão dos
Guararapes alterou o bairro da Muribeca de uma função domiciliar para uma
função logística”, explica Annelise Campêlo, uma das líderes da Comissão
Ambiental de Jaboatão. Essa mudança, que não poderia acontecer em uma Zeis,
segundo Campêlo, demarca a posição da prefeitura em contribuir para a expulsão
dos moradores.
A comissão já realizou
algumas reuniões com a Secretaria Executiva de Meio Ambiente da cidade. Nos
encontros, Campêlo levou propostas que a secretaria poderia adotar e mitigar
esse impacto provocado pelas empresas. “O que a gente ouviu da secretária Ana Paula
Pontes é um argumento muito pífio: ‘Não temos controle sobre isso’. Nas
reuniões já justificaram que as mudanças climáticas é algo quase inexistente e
que não impacta tanto assim a comunidade, porque está escrito na Bíblia que
Deus não permitiria um novo dilúvio na terra”, diz. A reportagem questionou a
prefeitura sobre a declaração, mas não obteve resposta.
A comissão também tem
feito denúncias em parceria com a CPDH e o Somos Todos Muribeca. Uma delas
chegou ao Ministério Público (MP), que notificou, em 2016, a empresa de
engenharia SAM por desvio irregular do curso do canal Mariana para facilitar
sua instalação. Com o desvio, a empresa evitava alagamentos na sua área, mas
prejudicava a comunidade vizinha, a Sapolândia, que seria mais atingida. Além
disso, “a empresa foi flagrada construindo um aterro numa Área de Preservação
Ambiental (APP), suprimindo a vegetação nativa, que funciona como uma esponja
quando há extravasamento hídrico”, diz o MP.
Ainda de acordo com o
MP, o empreendimento, que ainda está em construção, não teria licença ambiental
ou licença prévia emitida pela prefeitura. Por conta das irregularidades, em
2013 o MP expediu um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) entre a empresa SAM e a
prefeitura, assinado em 29 de dezembro de 2016. No TAC ficou estabelecido que a
obra deveria executar um serviço de drenagem. Foi obrigada também a apresentar
termos de compensação na recuperação da mata ciliar, tendo que plantar mil
mudas nativas de espécies da Mata Atlântica. Em 2020, a prefeitura paralisou as
obras da empresa SAM, já que esta se recusou durante quatro meses a repassar um
levantamento topográfico da área de instalação.
O descumprimento das
medidas resultaria em multa de R$ 120 mil. A Pública questionou o MP sobre o
cumprimento da TAC, mas ainda não teve retorno. A reportagem solicitou também a licença do empreendimento
à prefeitura e questionou a empresa sobre os pontos levantados na notificação
do MP, mas não obteve resposta. O Secretário Executivo de Saneamento e
Elaboração de Projetos de Obras Alex Ramos do município cita que o “assunto não
pode compartilhar informações, tendo em vista encontrar-se em processo tramitando
no MP”. A obra continua avançando.
Em junho deste ano, os
conflitos territoriais na Muribeca chegaram à Comissão de Cidadania da
Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (Alepe), presidida pela deputada
estadual Dani Portela (PSOL), que é candidata à prefeitura de Recife. O debate
foi solicitado pelo deputado João Paulo (PT). Na ocasião, os deputados Renato
Antunes (PL) e Nino de Enoque (PL) defenderam a conclusão da barragem do
Engenho Pereira como uma alternativa para os problemas de alagamentos na
região. A obra está paralisada desde 2014, mas para especialistas não é
considerada a solução.
Na ocasião, o
secretário-executivo de Saneamento de Jaboatão, Alex Ramos, justificou que a
“solução para o contorno dos alagamentos em Muribeca é a elevação de altura
provocada pelos aterros instalados”, contrariando o que apontam os estudos
técnicos.
“A requalificação da
drenagem deve ser pensada a partir de um sistema, não apenas no trecho que as
empresas estão instaladas, inclusive, roubando área que pertence aos bairros.
Enquanto Jaboatão considerar a solução em outros pontos senão na interferência
direta da atuação das empresas, comunidades passarão a ser extintas”, critica
Diogo Galvão, doutor em geografia pela UFPE e um dos coordenadores técnicos do
estudo sobre alagamentos na Muribeca.
As entidades que
trabalham com direito à moradia e proteção ao meio ambiente em Jaboatão dos
Guararapes dizem que o problema dos alagamentos no município não é restrito ao
bairro da Muribeca e adjacentes, como Nova Muribeca, Marcos Freire, Loteamento
Nova Prazeres, Jardim Muribeca, além de Santo Aleixo e Dois Carneiros, e
criticam a política ambiental da gestão atual da prefeitura como um todo. Eles
denunciam irregularidades na estruturação e funcionamento do Conselho do Meio
Ambiente da cidade. Criticam também a falta de transparência das informações do
conselho, como atas de reunião, que não são disponibilizadas em meio digital.
Fonte: Por Danilo
Queiróz, da Agencia Pública
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