O papel da
escrita à mão e o futuro do Ensino
As crianças devem aprender a escrever com as próprias mãos na
escola? O caráter autoevidente de nossa resposta tornou-se uma questão genuína
em uma era de telas onipresentes e digitação contínua. A escrita à mão corre o
risco de se tornar uma habilidade obsoleta, associada ao romantismo mofado do
escritor “autêntico” ou à lenta reflexão do intelectual. Para os alunos e uma
parcela cada vez maior de professores, a escrita à mão parece uma imposição
conservadora dos mais velhos sobre os mais jovens, como aprender a usar uma
régua de cálculo na era da calculadora digital.
A questão nos faz refletir sobre os próprios objetivos da
educação. Ela serve para preparar as crianças para o mundo e seu “modo de
existência com uso intensivo de telas” ou para tentar oferecer algo melhor,
arriscando sermos hipócritas quanto à nossa própria incapacidade de produzir
esse mundo possível? A escrita à mão é um símbolo da confluência dos ideais de
alfabetização em massa e individualidade – a ampla disponibilidade do meio da
autoexpressão, de certa forma liberada da padronização dos tipos. A palavra
escrita à mão no papel oferece uma imagem da resiliência do mundo frente à sua
desmaterialização no mundo digital, a fantasia de um traço autêntico contra a
ameaça constante e crescente de que o que lemos na tela seja estritamente uma
fabulação das máquinas.
A escrita à mão oferece a libertação da tela, mas exige uma
disciplina que os alunos dificilmente percebem como uma libertação. O penoso
processo de aprender a formar letras é considerado por alguns, como o psicólogo
Ronald Kellogg, que adota o termo homo symbolificus do romancista Walker Percy,
como uma espécie de berço da civilização. Como muitos de seus inconvenientes, a
escrita à mão é constitutiva das sociedades humanas administradas e, no
entanto, como Michael Tomasello nos lembra, ela está longe de ser natural. Em
outras palavras, as crianças não adquirem espontaneamente a escrita da mesma
forma que assimilam a linguagem falada de seu ambiente. A escrita à mão,
portanto, é uma submissão às regras de legibilidade semelhante à submissão dos
instintos às exigências da sociabilidade. Seu papel fundamental na educação é
um produto da modernidade.
No entanto, conforme relatado em um estudo amplamente citado, os
professores têm sido relutantes em impor a “instrução formal sobre escrita”,
preferindo a exploração conduzida pelas próprias crianças para estimular “o
interesse das crianças pela escrita”. Em seu ensaio de 1965 “The Decline of
Handwriting” (O declínio da escrita à mão), E. A. Enstrom sugere que essa
relutância começou já na década de 1930. Ele admite que “a rigidez severa não
tem lugar na escola e deveria ter sido eliminada sem luto. Entretanto, a
permissividade total é igualmente difícil de defender”. Contudo, como os
professores não estão dispostos a impor algo às crianças, sem o surgimento
espontâneo, essa relutância coloca em risco a própria capacidade de aprendizado
das crianças. Aprender o quê? E para que fim? Tanto os professores quanto os
alunos percebem a crescente distância entre o ensino da escritas e seus
propósitos.
• Traçando
uma linha
A escrita à mão, assim como a negação ou a proteção das telas,
passou a simbolizar algo não declarado: a obediência da criança a uma tarefa
que muitos adultos não realizam rotineiramente. Como escreve Madeleine
Heffernan, “a escrita à mão está passando por uma espécie de crise de
identidade, e não são apenas os alunos, que cresceram digitando e enviando
mensagens de texto, que estão questionando sua relevância”. O aprendizado com a
escrita à mão, de acordo com um estudo, ocorre em média apenas 30 minutos por
semana. Se quisermos que as crianças em idade escolar aprendam a escrever à
mão, devemos refletir se o desejo de que elas tenham essa fuga do mundo digital
não implica em nossa desesperada resignação a ele. Ao ensinarmos a escrita à
mão, mas raramente a praticarmos, corroemos a própria justificativa para
fazê-lo.
Os alunos, convidados a fazer um desenho sobre “o que a escrita
significava para eles”, retrataram “a si mesmos em uma sala de aula, recebendo
ordens para escrever à mão, pensando que estavam entediados, que aquilo não
fazia sentido e que não queriam fazê-lo”. A ansiedade em relação à habilidade
de escrever à mão aumentou com a constatação de que os alunos não estão
preparados e não têm a disposição necessária para concluir uma prova escrita.
No entanto, o regime de testes estandardizados dificilmente é uma justificativa
profunda para impor o aprendizado pela escrita. Angus Holland relata que uma
escola em Sydney oferece “treinamento fora do horário escolar sobre postura,
fortalecimento das mãos e mobilidade” a fim de preparar os alunos para as
provas. Os acadêmicos insistem que “os alunos devem se envolver na tarefa, e
não escrever com o único objetivo de atender às exigências do professor”. Isso
sugere que os alunos não confiam na exigência do professor.
Algo mudou na relação entre as gerações. Os jovens, com razão,
olham com desconfiança para a incompetência cínica das respostas do mundo
adulto aos problemas que ele mesmo criou. Hannah Arendt, ao diagnosticar “A
Crise da Educação”, descreveu como “os educadores aqui se posicionam em relação
aos jovens como representantes de um mundo pelo qual eles deverão se
responsabilizar, embora eles próprios não o tenham criado, e mesmo que possam,
secreta ou abertamente, desejar que ele fosse diferente do que é”. É um hábito
comum, embora maligno, impormos aos professores a responsabilidade de consertar
os males do mundo por meio da massa maleável de crianças.
As crianças, entretanto, não são uma massa maleável e
incorporam, desde o momento do nascimento, o mundo como nós, adultos, o
criamos. Para Arendt, há partes desse mundo que reservamos para a proteção da
infância na criança, e há partes que designamos para a introdução da criança no
mundo e do mundo na criança, sendo elas coisas frágeis. Essa última parte é a
escola – um microcosmo da sociedade com alguns cantos arredondados e bordas
suavizadas. No entanto, a fantasia de que se trata de um espaço isolado das
corrupções do mundo é um desserviço à necessidade da criança de descobrir seu
lugar e sua orientação no mundo, e nega até que ponto a responsabilidade por
nosso mundo recai sobre nós, para que vivamos e o melhoremos para essas
crianças.
• Desenhando
um círculo
Uma crise de justificação, sugere Arendt, “que arranque as
fachadas e elimine os preconceitos”, também nos permite “explorar e investigar
o que quer que tenha sido desnudado da essência da questão”. Uma crise testa
nossas razões, eliminando o que é dado como certo pela tradição ou pelo senso
comum. Para Arendt, “o desaparecimento dos preconceitos significa simplesmente
que perdemos as respostas nas quais normalmente confiamos sem sequer perceber
que originalmente eram respostas a perguntas”. Enquanto os críticos
conservadores tendem a catastrofizar e normalmente endossam uma reação
sustentada em novas versões de velhas justificativas, Arendt adverte que uma
“crise se torna um desastre somente quando respondemos a ela com julgamentos
pré-formados, ou seja, com preconceitos”.
De acordo com Enstrom, os professores das décadas de 1920 e 30
“se rebelaram contra métodos arbitrários” de ensino de escrita. Ele admite que
eles “provavelmente se justificavam,
embora as práticas de sala de aula, que evoluíram de anos de experiência de
ensino bem-sucedida, fossem suficientemente sólidas para que as crianças
aprendessem a escrever rápido e corretamente. Muitas práticas, como exercícios
de repetição, foram, sem dúvida, usadas sem uma compreensão clara de sua
finalidade.”
A necessidade de justificativa explícita corroeu uma prática
cujos méritos implícitos haviam sido construídos durante um longo período. A
autoridade do método não vinha do conhecimento de sua justificativa ou
propósito, mas de seu sucesso. No entanto, à medida que a sociedade mudou, a
concepção de sucesso mudou junto com ela, levando os professores a questionar a
base de seu currículo.
Os estudiosos insistem que, em geral, as habilidades de escrita
estão associadas a “vários aspectos do desempenho acadêmico” e a atributos como
“habilidades visuais e motoras”. A escrita à mão pode, portanto, contribuir
indiretamente para uma ampla gama de resultados desejáveis. Por outro lado,
pode ser simplesmente um sintoma de uma boa educação, na qual ela é ensinada de
forma eficaz junto com todo o resto. A ligação entre a escrita à mão e um buquê
de outras “habilidades” desagregadas – ou, mais comumente, funções cognitivas –
tende a fragmentar o aluno em partes mecanicamente manipuláveis, cada uma delas
lubrificada por métodos educacionais inovadores. Esse modelo é adequado para
órgãos como a Comissão de Produtividade, com seu fetiche por medidas e resultados
quantificáveis. Mas, assim como a perspectiva que transforma mentes em
cérebros, esse modelo está desvinculado de uma concepção mais ampla do aluno
como membro de nosso mundo compartilhado.
Além disso, ela não serve como justificativa, porque trata a
habilidade como qualquer peça mecânica que pode ser substituída se você
encontrar outra que desempenhe a mesma função. Precisa de habilidades motoras
finas? Tente pintar, praticar esportes ou caligrafia. Essas justificativas
neuropsicológicas parcimoniosas ignoram o papel que a escrita, e a escrita à
mão, desempenha – ou não desempenha – em nosso mundo social, de uma forma que
torna óbvio que caligrafia e escrita à mão não são a mesma coisa. Os efeitos
medidos pela pesquisa neuropsicológica são, de qualquer forma, vagos ou
sugestivos, na melhor das hipóteses. Como diz Laura Dinehart, relacionando a
escrita à mão e comportamento: “Em sua forma mais básica, a escrita à mão é o
exercício de controle motor fino, e diz-se que as atividades motoras finas
estimulam o córtex pré-frontal, uma área do cérebro que abriga elementos de
autorregulação e função executiva”.
Outros estudos associam a escrita à mão a “associações
multissensoriais” que envolvem “planejamento motor, habilidades de controle e
produção e sincronização motora”. Propondo que “a escrita não é um ato que
ocorre apenas no ambiente externo observável”, mas que “envolve uma interação
de processos internos e externos”, esses estudos cada vez mais carregam o aluno
com metáforas mecânicas e computacionais. O ideal do ensino da escrita à mão,
muitos concordam, é atingir a automaticidade. Isso significa que a habilidade
se torna integrada – uma segunda natureza. Isso também significa, às vezes, que
perdemos de vista o motivo pelo qual algo nos foi ensinado. Nossa facilidade
com a caneta se torna tão natural que nos esquecemos de que essa habilidade nos
foi imposta. A escrita à mão restringe a liberdade da mão, forçando-a a entrar
em linhas predeterminadas. Um professor comenta: Você nunca sabe o que é um ‘A’
a menos que o tenha desenhado fisicamente”.
E, no entanto, considerando o ideal de automaticidade,
poderíamos facilmente afirmar que você nunca saberá o que é um “A” até que
perca qualquer noção do que significa aprender a desenhá-lo. O objetivo de
aprender a escrever, assim como o de aprender a andar, é esquecer como fazê-lo
ao fazê-lo. Isso tem a vantagem de liberar o que é importante para o
aprendizado. Com isso, há a vantagem de liberar o que os psicólogos chamam de
“processos cognitivos de alto nível, como a geração de ideias ou a seleção de
vocabulário”. Mas isso faz parecer que escrever é algo distinto do que é
escrito. Entretanto, como qualquer escritor experiente pode confirmar, o ato de
escrever é parte do que produz o vocabulário. O ato de escrever não é o ato de
fazer marcas em uma página combinado com o processo cognitivo de selecionar
palavras. Escrever é um tipo de pensamento.
Aprender a escrever, entretanto, continua sendo uma fórmula
inabalável. O traçado deselegante de linhas em círculos, a conformidade da mão
não com a vontade, mas com a exigência do professor, são necessários para
produzir uma escrita legível. Até mesmo as curvas graciosas da letra cursiva,
ensinadas aos alunos australianos desde a década de 1850, baseiam-se em
tipografias Copperplate, aplicadas a partir de modelos impressos do século
XVIII. Psicólogos e estudiosos da educação podem inventar métodos e justificativas
cuja novidade frenética os torna rapidamente obsoletos, mas é mais provável que
nosso desejo de ensinar a escrita esteja relacionado a ideais mais antigos, que
evocam a liberdade da página aberta, sem formatação e lenta, longe das
distrações da cultura das telas que nos cerca.
• Progresso
contra o futuro
Nosso desejo de que a educação melhore constantemente nos leva a
tentativas fatais de produzir o novo à força, fazendo-nos tropeçar no presente
ao tentar reivindicar nossa relevância no futuro. Também tem a tendência de
enfraquecer o senso comum, substituindo métodos antigos simplesmente porque são
antigos. A cascata de “inovações” metodológicas, finas como papel, tende a
enterrar o objetivo final da educação. Como adverte Arendt, “sob a influência
da psicologia moderna e dos princípios do pragmatismo, a pedagogia se
transformou em uma ciência do ensino em geral, de tal forma que se emancipou
totalmente do material real a ser ensinado”.
A escrita à mão complica nossas suposições sobre o progresso
educacional: uma prática antiga, quase arcaica, que é revestida de
justificativas progressivistas ansiosas que têm mais a ver com cérebros do que
com alunos como pessoas. Essas justificativas progressivistas fecham o círculo
do futuro, envolvendo-o nas próprias autossatisfações do presente. O
progressivista educacional está preso na armadilha de usar métodos cada vez
mais novos para defender o status quo, embora o progresso tenha minado tanto o
status quo quanto os métodos. Nenhum tipo de justificativa pode compensar a
alteração de nosso modo de vida.
A educação consiste, em parte, na transmissão do passado para o
futuro. O mundo adulto convida novos membros a se juntarem a ele e também se
abre para a transformação. Confundir essas tarefas – o convite ao antigo e a
abertura para o novo – significa, no entanto, que “preparar uma nova geração
para um novo mundo só pode significar que se deseja arrancar das mãos dos
recém-chegados sua própria chance de ter o novo”. Junto com o professor
autoritário, Arendt era igualmente cética em relação ao professor permissivo
que abdicava da responsabilidade de apresentar a criança ao mundo adulto. O
ceticismo de Arendt em relação aos modelos progressistas de educação é que eles
tomam como certo – de fato, tomam das mãos das crianças – a forma e a natureza
do progresso.
A escrita à mão é apenas um sinal visível da crise de nossas
práticas educacionais. A circularidade complicada de nossas justificativas
sugere que podemos estar confusos sobre o que imaginamos que a educação está
transmitindo do mundo adulto para as crianças. Nossa ambivalência é palpável
nas contradições que deixamos espalhadas como escombros de métodos educacionais
rapidamente esquecidos. Para afirmar esse processo de transmissão, e permitir
que as crianças se esforcem para sair de suas inevitáveis restrições,
precisamos, de certa forma, afirmar nosso mundo e suas formas.
Fonte: Por Scott Robinson, na Revista Ópera
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