Por que não estamos prontos para a próxima
pandemia
As mudanças climáticas
provocam cada vez mais surtos de doenças, e mesmo assim o mundo continua mal
preparado para a próxima pandemia. Faltam colaboração na vigilância,
ferramentas diagnósticas e financiamento, segundo palestrantes na Cúpula Global
de Preparação para Pandemias (GPPS), que aconteceu no Brasil.
A cúpula, que durou
dois dias, contou com a presença de especialistas globais em pandemias. Tinha
como objetivo “revigorar o impulso para a preparação e resposta a pandemias” –
mas também ofereceu uma avaliação sóbria das deficiências globais.
“Mais da metade dos
patógenos estão sendo intensificados pelas mudanças climáticas. Com a
circulação global de patógenos, há um risco maior de transmissão entre
diferentes continentes”, alertou o professor Tulio de Oliveira, cientista
baseado na África do Sul e principal impulsionador da vigilância genômica de
patógenos na África.
A Etiópia está
enfrentando seu maior surto de dengue, enquanto Burkina Faso também volta a
lidar com a doença após quatro anos sem casos. Há uma nova cepa de chicungunha
e uma nova linhagem de cólera em Camarões, Tulio observou.
A interação aumentada
entre animais, humanos e o meio ambiente – em parte causada pela destruição de
habitats e migração – aumentou a mobilidade dos patógenos, afirmou Tulio na
cúpula, que foi organizada pelo Ministério da Saúde do Brasil, a Coalizão para
Inovações em Preparação para Epidemias (Cepi) e a Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz).
A OMS está respondendo
a 42 emergências com algum nível de importância, 15 das quais de Grau Três que
requerem assistência internacional, informou Mike Ryan, Diretor Executivo de
Emergências de Saúde da OMS.
“Hoje, estamos
monitorando mais 168 emergências de saúde em andamento ao redor do mundo,
gerenciadas em nível nacional. Também estamos buscando respostas à cólera em 30
países, mpox, gripe aviária, H5N1, dengue e febre amarela – além de múltiplas
emergências de saúde relacionadas a guerras e desastres naturais”, completou.
Segundo Ryan, “É nossa
própria conectividade que nos expõe. Somos a população humana mais conectada da
história. Vivemos principalmente em áreas urbanas densamente povoadas onde
trabalhamos, nos movemos, nos reunimos e socializamos intensamente”.
• Falhas de diagnósticos
De acordo com a
organização sem fins lucrativos FIND, dos 21 patógenos com potencial de surto,
o SARS-CoV-2 é o único para o qual existe preparação diagnóstica adequada.
Durante a cúpula, a
FIND lançou seu Índice de Preparação Diagnóstica de Patógenos (PDxRI), uma
ferramenta abrangente para avaliar a preparação diagnóstica.
“Diagnósticos rápidos
e distribuídos equitativamente são essenciais para identificar e conter uma
pandemia emergente. A FIND tem um roteiro de cinco anos, impulsionado por
parcerias, para alcançar a prontidão diagnóstica para a Missão dos 100 Dias.
Mas isso requer 100 milhões de dólares em financiamento inicial”, disse Marta
Fernandez Suarez da FIND.
A missão dos 100 Dias
se refere à necessidade de desenvolver vacinas, testes e tratamentos dentro de
100 dias de um surto e possibilitar o acesso àqueles que mais precisam para
prevenir pandemias.
“Doenças infecciosas
podem surgir rapidamente e precisamos garantir que estamos prontos para
responder de forma rápida e equitativa”, afirmou o CEO da Cepi, Richard
Hatchett.
“Se um novo
coronavírus surgisse, hoje há a possibilidade de resposta em 100 dias. Mas se
uma nova doença fosse da família dos Paramyxovirus ou Orthopoxvirus,
provavelmente não estaríamos prontos ainda. Importante, estamos nos movendo na
direção certa – mas para alcançar a Missão dos 100 Dias, precisamos avançar as
capacidades com contramedidas médicas e globalizar o acesso a essas
tecnologias”, completou.
• Falhas de acesso
Anban Pillay,
diretor-geral adjunto de Saúde da África do Sul, observou que foi cobrado de
seu país um preço mais alto pelas vacinas covid-19 do que a Europa.
“Há grandes problemas
com a conduta da indústria farmacêutica quando se trata de acesso a vacinas”,
criticou Pillay. “Elas não forneceram acesso. Aumentaram os preços. Decidiram
não fornecer estoque a certos países, mesmo que estivéssemos pagando preços mais
altos do que a Europa.”
“Então, precisamos de
um sistema global diferente para garantir o acesso a vacinas e outras
contramedidas, um sistema que seja equitativo, que esteja ligado às
necessidades reais.”
“Mas o acesso supõe
que exista algo para acessar”, observou Mona Nemer, assessora científica chefe
do governo do Canadá e presidente do Grupo de Direção da Missão dos 100 Dias.
“E claramente, quando
se trata de diagnósticos e terapêuticos – e, ouso dizer, de vacinas – para
todas as diferentes famílias virais que temos diante de nós, temos um longo
caminho a percorrer”, afirmou ela.
• Falhas financeiras
Priya Basu, do Fundo
Pandêmico, disse que o Banco Mundial conseguiu mobilizar 2 bilhões de dólares
em capital inicial de 28 contribuintes para iniciar o fundo e viu “uma demanda
tremenda e projetos de boa qualidade”.
Durante a primeira
rodada de financiamento no ano passado, os projetos “se concentraram na
coordenação e colaboração entre diferentes braços do governo – saúde, finanças,
agricultura, pecuária, meio ambiente, todos trabalhando juntos”.
Mas a demanda superou
em muito os recursos financeiros disponíveis. O Fundo levantou 850 milhões de
dólares, mas recebeu propostas de alta qualidade no valor de 7 bilhões.
“Um dos nossos maiores
desafios é, de fato, arrecadar mais dinheiro para manter esse impulso, porque
em breve veremos muitos países decepcionados, caso não recebam o dinheiro. E é
por isso que acabamos de lançar nosso esforço de mobilização de recursos de
curto prazo, na semana passada”, disse Basu.
• Progresso político nas negociações
internacionais da OMS
Em um cenário
pós-covid, grande parte do foco mundial está nos políticos que negociam um
acordo pandêmico na Organização Mundial da Saúde (OMS).
O embaixador do
Brasil, Tovar da Silva Nunes, que é vice-presidente do Conselho de Negociação
Internacional (INB) da OMS, disse à cúpula que estava confiante de que um
acordo será alcançado antes da próxima Assembleia Mundial da Saúde, em 2025.
Nunes e a embaixadora
Anne-Claire Amprou vão presidir um subcomitê sobre acesso e acesso a patógenos
e compartilhamento de benefícios (PABS), o maior ponto de discórdia nas
negociações.
“Se conseguirmos
resolver o artigo 12, as portas estão abertas para concluirmos o acordo em bom
tempo”, garantiu Nunes aos delegados.
Ele acrescentou que
não havia mais muitas discordâncias sobre as cláusulas relativas à abordagem de
Saúde Única.
“Havia uma percepção
de que uma abordagem incompleta de Saúde Única não levaria à equidade”,
explicou, acrescentando que a falta de acesso a água limpa, por exemplo, era um
fator na disseminação de certas doenças.
“Doenças transmitidas
por vetores estão claramente relacionadas ao [acesso à água]. Portanto, tem que
ser uma abordagem completa. Isso está superado. Decidimos incorporar a Saúde
Única. É um grande passo para a saúde comunitária global, desde que seja feito
de maneira muito equilibrada.”
Ryan observou que os
detalhes mais finos do PABS podem levar tempo, mas sem um amplo acordo
internacional “será muito difícil alcançar o que esta conferência se propõe”.
• Solidariedade do Sul Global
“Parcerias globais são
essenciais para o sucesso da Missão dos 100 Dias”, defendeu a ministra da Saúde
do Brasil, Nísia Trindade.
“No cenário pós-covid,
aprendemos que Pesquisa & Desenvolvimento equitativos, investimento e
acesso são cruciais para a saúde pública. Não podemos trabalhar apenas dentro
de nossos países; devemos pensar além das fronteiras. É hora de ciência, tecnologia
e inovação se unirem para políticas de saúde pública robustas. Devemos
trabalhar juntos em saúde global para que isso se torne uma realidade.”
Participantes da
cúpula do Sul Global assinaram a Declaração do Rio de Janeiro, que pede maior
colaboração entre parceiros do Norte Global e do Sul Global para superar as
disparidades no acesso a ferramentas de saúde e contramedidas em países de
baixa e média renda.
A Declaração também
insta os parceiros da saúde global a priorizar políticas de pesquisa e acesso
equitativo para focar em P&D de ponta a ponta e apoiar o estabelecimento da
Aliança para Produção, Inovação e Acesso Regional e Local, conforme discutido
dentro do marco da Presidência do G20 do Brasil.
“É hora de pensar e
projetar um mundo diferente com uma nova mentalidade para construir sistemas de
saúde globais e fortalecer a preparação e resposta a pandemias globais, com
coordenação entre o Sul Global e o Norte”, afirmou Mario Moreira, presidente da
Fiocruz, que apresentou a declaração.
Fonte: Por Kerry
Cullinan, no Health Policy Watch | Tradução: Gabriela Leite, em Outra Saúde
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