Sergio Ferrari: ‘Mais fome do que
esperança’
Mais de 730 milhões de
pessoas sofrem de fome no mundo. 36% a mais do que há dez anos. O mundo
retrocedeu quinze anos, com níveis atuais de desnutrição comparáveis aos de
2008-2009. Os objetivos de melhorar a situação programados até 2030 já parecem
inatingíveis. Para combater essa tendência negativa, o presidente brasileiro
Lula da Silva acaba de anunciar a criação da Aliança Global Contra a
Fome e a Pobreza.
·
Situação mundial
preocupante
Um agravante
adicional: no final do ano passado, 2.8 bilhões de pessoas –quase uma em cada
três em todo o mundo– não conseguiam ter acesso a uma dieta saudável. São seres
humanos penalizados por rendimentos excessivamente baixos ou atendidos com uma
proteção social insuficiente por parte dos Estados. Destes, mais de 864 milhões
experimentaram insegurança alimentar grave, às vezes passando um dia inteiro ou
mais sem comer.
Essa complexa
realidade planetária é descrita com lucidez no Relatório anual sobre o Estado da Segurança Alimentar e
Nutricional no Mundo (SOFI
2024, por sua sigla em inglês), publicado na última quarta-feira de julho no
marco de uma reunião ministerial do G20, no Rio de Janeiro. Elaborado
conjuntamente por cinco agências da ONU [a Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura (FAO), o Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF), a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Fundo Internacional para o
Desenvolvimento Agrícola e o Programa Mundial de Alimentos] e sob o olhar
orientador da FAO, o relatório lista as causas estruturais e os fatores
determinantes desse flagelo: crises econômicas, conflitos armados e o impacto
negativo das mudanças climáticas, que, em 2023 representaram o principal fator
conspirador contra a segurança alimentar e a desnutrição.
Esses três
determinantes coincidem inevitavelmente com elementos subjacentes, como dietas
saudáveis inacessíveis, ambientes alimentares insalubres e desigualdade
persistente. O quadro da fome, conclui o Relatório, é exacerbado pelo impacto
direto da “inflação persistente dos preços dos alimentos, que continua a
corroer os benefícios econômicos de um grande número de pessoas em muitos
países”.
O relatório também
aponta que os níveis de fome permanecem catastroficamente altos pelo terceiro
ano consecutivo, após um aumento acentuado entre 2019 e 2021. Se essa tendência
continuar, a comunidade internacional não conseguirá atingir nenhum dos sete Objetivos
Globais para a nutrição projetados até 2030. Em outras palavras: teremos que
continuar esperando e esperando até garantir um mundo sem fome.
Os níveis de fome não
foram regionalmente uniformes: aumentaram na África, permaneceram
essencialmente inalterados na Ásia e diminuíram na América Latina, a única
região que também experimentou uma redução significativa na insegurança
alimentar. Se essa tendência continuar, até 2030, cerca de 582 milhões de
pessoas sofrerão de desnutrição crônica, metade delas na África.
No caso da América
Latina, a FAO destaca que essa região é um exemplo para o resto do mundo devido
aos seus investimentos em programas de proteção social. Brasil, Colômbia, Peru
e Chile têm fortes sistemas de proteção social que lhes permitem reagir rapidamente
às mudanças e direcionar efetivamente seus recursos financeiros para a luta
contra a fome, especialmente entre suas populações mais vulneráveis.
Comparativamente, a América do Sul alcançou uma recuperação mais rápida do que
outras regiões após a pandemia de covid-19. Na época da apresentação do
relatório no Rio de Janeiro, o Brasil foi justamente o principal destinatário
de elogios da comunidade internacional. Com números surpreendentes para 2023: quase 80 programas específicos promovidos por 24
ministérios, o que permitiu reduzir em 85% a insegurança alimentar grave.
Nesse contexto, e em
paralelo com o anúncio do SOFI 2024, o presidente brasileiro Lula da Silva
antecipou a sua proposta de uma “Aliança Global contra a Fome e a Pobreza” que
será lançada internacionalmente no próximo mês de novembro no âmbito de uma conferência ministerial do G20 (Grupo dos 20). Será financiado em parte pelo Brasil e com fundos
internacionais existentes. Não está descartado que outra parte desse novo
mecanismo internacional possa ser financiada com impostos sobre grandes
fortunas.
·
Existem alternativas,
falta vontade política
O SOFI 24 não para no
diagnóstico. Na verdade, avança com propostas para a comunidade internacional
em geral e para os governos em particular.
É essencial e urgente,
argumenta, transformar os sistemas agroalimentares para aumentar a resiliência
e enfrentar as desigualdades. E propõe mais e melhores financiamentos para
garantir que dietas saudáveis sejam acessíveis a todos. Apoiar grupos-chave na
luta contra a fome, como os pequenos agricultores, é uma prioridade.
De acordo com as
agências das Nações Unidas envolvidas no Relatório, uma questão central é a do
financiamento. “A atual arquitetura de financiamento para segurança alimentar e
nutricional”, afirmam, “está muito fragmentada e precisa passar de uma abordagem
compartimentada para uma perspectiva mais holística, integral”. E insistem em
melhorar a coordenação para definir o que é essencial em termos de prioridades
nacionais e locais em termos de políticas a implementar. Portanto, a
transparência e a harmonização na coleta de dados são cruciais.
De acordo com o
Relatório, os países doadores, que por meio de sua cooperação internacional
apoiam a luta contra a fome, “devem aumentar sua tolerância ao risco e se
envolver mais em atividades de redução de riscos”. Por sua vez, os Estados
“devem sanar os déficits não cobertos por atores comerciais privados,
investindo em bens públicos, reduzindo a corrupção e a evasão fiscal,
aumentando os gastos com segurança alimentar e nutrição e considerando o
redirecionamento do apoio político”.
Um maior financiamento
para programas de alimentação implicaria, além de mais dinheiro, uma
administração mais eficiente desses fundos, bem como uma participação mais
ativa dos atores nacionais e locais na tomada de decisões para garantir que os
recursos beneficiem os pequenos produtores. O Relatório reconhece o alto custo
envolvido –bilhões de dólares a mais– na promoção de políticas transformadoras,
mas alerta que o custo da inação e da paralisia na luta contra a fome será
muito maior. A chave para um avanço concreto consiste em reorientar e
reestruturar o financiamento existente para a alimentação e para a agricultura.
·
Conquistas e desafios
Em seus comentários
sobre o Relatório, Olivier De Schutter, o especialista belga independente que
atua como Relator Especial das Nações Unidas sobre pobreza extrema e direitos
humanos e copresidente do Grupo Internacional de Especialistas em Sistemas Alimentícios
Sustentáveis (IPES-Food), enfatizou que “o sistema alimentar industrial global
é desastrosamente vulnerável a crescentes crises climáticas, econômicas e de
conflitos, e as mudanças climáticas estão atingindo os agricultores cada vez
mais”. Por isso, propôs “construir sistemas alimentícios resistentes ao clima”,
mas sem esquecer que é essencial “estabelecer níveis mínimos de proteção social
e garantir que os trabalhadores recebam salários dignos”.
Em declarações
reproduzidas pela Associação de Jornalistas pelo Planeta, De Schutter argumenta
que “desesperadamente, se necessita uma nova receita para combater a fome:
baseada na produção agroecológica diversificada de alimentos e em mercados de
alimentos localizados, em vez de cadeias alimentícias industriais globais, e em
sistemas de proteção social que garantam o direito à alimentação dos mais
pobres do mundo”.
Por sua vez, a
brasileira Elisabetta Recine, especialista em nutrição, presidente do Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) e membro do Painel
Internacional de Especialistas em Sistemas Alimentares Sustentáveis, disse que
“O aumento da fome não é inevitável. Com as ações adequadas, engajamento
profundo e implementação coordenada, podemos virar a maré da fome”. E observa
com satisfação que na América Latina foi possível reduzi-lo pelo segundo ano
consecutivo, o que mostra que, “com as políticas adequadas, os governos podem
melhorar o acesso aos alimentos e construir sistemas alimentares resilientes ao
clima”. Recine, que também é professora da Universidade de Brasília, comentou
ainda que “no Brasil, 13 milhões de pessoas foram retiradas da fome no ano
passado por meio de programas voltados sistematicamente para famílias pobres,
fornecendo refeições escolares saudáveis com produtos orgânicos cultivados por
pequenos agricultores, apoiando a agricultura familiar e implementando políticas
alimentares para as comunidades urbanas mais pobres”.
Esse conceito é aceito
pelo líder rural brasileiro Alberto Broch, presidente da Confederação das
Organizações de Produtores Familiares do Mercosul Ampliado (Coprofam). De
acordo com Broch, para quem “a fome é um problema que podemos resolver”,
milhões de pequenos agricultores em todo o mundo “estão prontos e dispostos a
construir um sistema alimentar mais resistente, sustentável e equitativo que
possa alimentar o mundo em um clima em mudança”. E ele concorda com a FAO que é
fundamental “colocar esses produtores e suas prioridades no centro das decisões
para liberar esse potencial”. Broch pede aos doadores e aos governos que
“colaborem com os agricultores familiares e com outras organizações de base
para garantir que as políticas e o financiamento respondam às suas
necessidades”.
A fome, a pobreza e a
injusta redistribuição de renda em nível global são aspectos de uma mesma
realidade, atravessada por uma evidente desigualdade: 71,5% da população
mundial que em 2023 não podia comprar uma alimentação saudável está localizada
em países de baixa renda. Apenas 6,3% dessa população faminta vive em nações de
alta renda. As projeções, por outro lado, são terríveis: até o final da década
atual, quase 600 milhões de pessoas estarão cronicamente desnutridas, mais da
metade delas no continente africano. Um tema recorrente, mas não esgotado: a
fome no mundo é o triste espelho onde se vê um sistema hegemônico ilógico e
injusto, perdido em seu próprio labirinto autodestrutivo.
¨ Scott Ritter: sanções antirrussas da UE 'voltaram como
bumerangue para a Europa'
O ex-oficial de
inteligência do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA e ex-inspetor de armas da
ONU, Scott Ritter, disse à Sputnik que foram os EUA que estavam por trás da
decisão da UE de começar a sancionar a Rússia, o que ele disse estar ligado aos
Acordos de Minsk na Ucrânia — documentos que Paris, Berlim e Kiev nunca
planejaram implementar.
Os pacotes de sanções
da União Europeia (UE) contra a Rússia saíram pela culatra, tornando-se
"um dos maiores desastres econômicos da história europeia moderna",
destacou o analista Scott Ritter.
"Essas sanções,
que são projetadas para punir a Rússia, falharam em fazê-lo. Na verdade, elas
voltaram como bumerangue para a Europa. E a Europa continua avançando,
colocando mais sanções em mais sanções, enquanto a Rússia fica mais forte
economicamente", observou.
Ritter apelidou a UE
de "braço econômico de um bando de organizações e instituições, que
incluem a Organização do Tratado do Atlântico Norte [OTAN], todas servindo
fundamentalmente a mando dos Estados Unidos".
"Então as sanções
que foram implementadas pela UE foram feitas porque os Estados Unidos queriam
que a Rússia fosse isolada" e "confrontada pela Ucrânia que estava
funcionando como um representante de fato da OTAN", argumentou o ex-oficial
de inteligência.
Ritter insistiu que a
América do Norte está usando as sanções "para atingir um objetivo
estratégico maior, não apenas enfraquecendo a Rússia, mas também enfraquecendo
a Europa, para que os Estados Unidos saiam deste conflito [Ucrânia] mais fortes".
"Há décadas, o
objetivo dos Estados Unidos é livrar a Europa de seu vício em energia russa
barata. Então as sanções e a reação negativa estão alcançando esse resultado.
Talvez a Europa não perceba isso, ou não tenha acordado para a realidade de que
os Estados Unidos não são seus amigos", concluiu Ritter.
O ex-inspetor de armas
da ONU foi ecoado por Gunnar Beck, membro cessante do Parlamento Europeu pelo
partido Alternativa para a Alemanha, advogado e acadêmico especializado em
direito da UE, que disse à Sputnik que é seguro afirmar que a UE atirou no próprio
pé ao decidir impor sanções à Rússia.
"Não há dúvida de
que o impacto econômico [das sanções] é sentido em uma extensão muito maior
aqui na própria UE em comparação à Rússia. Quero dizer, a economia russa, de
acordo com os dados oficiais, está indo muito bem e parece ter se adaptado às sanções",
Beck destacou.
As sanções da UE às
matérias-primas russas, incluindo petróleo e gás, "prejudicaram
principalmente as economias europeias", que "costumavam contar com
importações de gás e petróleo previsíveis, de alta qualidade e baratas da
Rússia", de acordo com o especialista.
Essas economias, ele
continuou, "ainda não podem ficar sem importar petróleo e gás da Rússia,
mas agora estão fazendo isso por meio de países terceiros a preços muito mais
altos", enquanto a Rússia continua vendendo seu petróleo e gás.
"Então, a UE
basicamente se prejudicou com essas sanções, ou melhor, para ser mais preciso,
o bloco prejudicou enormemente a indústria europeia e os consumidores europeus.
Mas [as medidas restritivas] não parecem ter tido muito impacto na economia russa",
enfatizou Beck.
As sanções "não
tiveram o impacto que a UE esperava que tivessem", o que era previsível,
segundo o especialista.
"A UE
provavelmente subestimou o grau em que o governo russo havia se preparado para
a eventualidade de sanções, incluindo restrições de longo alcance às
importações de energia para a UE, bem como transações financeiras. Nesta
ocasião, acho que as sanções se mostraram ineficazes e falharam no que diz
respeito à Rússia", resumiu Beck.
Fonte: Tradução de
Rose Lima, em Outras Palavras/Sputnik Brasil
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