Mulheres ganham renda própria e liderança
com a natureza do Pantanal
Lá no mais profundo do
Pantanal, onde a natureza impera sob os efeitos das mudanças climáticas,
mulheres lutam para ganhar o próprio sustento, explorando o que aprenderam no
convívio com irmãs, mães ou vizinhas.
Os projetos Aguapé e
Cumbaru, em andamento na região pantaneira desde março de 2023, são destaques
dessa realidade. Ambos têm a VBIO (Vitrine da Biodiversidade Brasileira,
plataforma online que faz a captação e o destino de recursos para projetos
socioambientais) como parceira. Foi ela que atraiu o gigante na área de
cosméticos, Avon, para aplicar a Repartição de Benefícios prevista na Lei da
Biodiversidade em projetos que beneficiam o cotidiano de comunidades dessa área
do país.
“Uma das causas que a
Avon defende é o fim da violência contra a mulher”, enfatiza Mariana Giozza,
gerente de projetos da VBIO. “Por isso, apresentamos propostas de trabalho que
contemplassem tanto a biodiversidade quanto o protagonismo feminino. ” Para acertar
na escolha, a VBIO contou com a assistência da Rede Pantaneira, que representa
comunidades tradicionais da região desde 2009.
Onde as políticas
públicas não conseguem chegar, seja por descaso ou ineficácia de diferentes
esferas de governo, surge gente da terra para fazer a diferença. É o caso de
Edinalda Pereira do Nascimento, de 34 anos, secretária-executiva da Rede
Pantaneira e mãe solo de um “pantaneirinho” de 2 anos — ela diz ter preferido
investir na maternidade independente, dada a insatisfação com os homens do
lugar (“Marido? Ainda não encontrei…”).
Natural de Barão de
Melgaço, no Pantanal Norte, Edinalda conhece bem os problemas que transtornam o
dia a dia nesse oeste do Brasil, da falta de saneamento à oferta de água
potável. “Afora o machismo, que trata a mulher de modo diferente, incapaz de
liderar e ganhar o seu rendimento”, aponta.
Dedicada a dar
visibilidade às comunidades que representa, Edinalda, que cursa online o último
ano de Engenharia Ambiental na Universidade de Cuiabá, inspira resiliência às
mulheres que vivem, por exemplo, na Barra do Rio São Lourenço. Distante um dia
e meio de barco de Cáceres, porta de entrada do Pantanal Norte, em Mato Grosso,
é ali que o projeto Aguapé anima o cotidiano da associação feminina Renascer.
Fazer artesanato com o
aguapé (Eichhornia Crassipes), planta aquática que prolifera nas bacias do
Pantanal, era atividade da qual as mulheres da comunidade tinham lembrança —
herança cultural dos indígenas Guató, o último povo canoeiro da região, de quem
são descendentes. “Foi preciso a Catarina nos convencer da importância de
manter a tradição para melhorar a nossa vida com a renda da atividade”, lembra
dona Eliane, uma das líderes do projeto.
Eliane é o nome que
Leônida Aires, 57 anos e três filhas, adotou ainda pequena e “está valendo até
hoje”, diverte-se. Catarina? A irmã mais velha, “que sofreu demais nas mãos do
companheiro abusivo até tomar coragem, tempos atrás, para se separar e sobreviver
com o aguapé”, relata. Assim, o trabalho artesanal voltou aos poucos a
despertar o interesse daquelas mulheres para ganhar impulso sob a batuta da
VBIO.
A lide com o aguapé
demanda inúmeras tarefas (coleta, secagem, corte e montagem em tranças), antes
da venda sob a forma de cestos, chapéus e caixas, por exemplo. Hoje, de um
total de 24 associadas da Renascer, cerca de dez se dedicam ao aguapé. “O
número poderia ser maior, mas as irmãs de comunidade ainda são submissas ao
trabalho doméstico”, lamenta dona Eliane.
“E o projeto quer
soltar a mulher do controle masculino, essa história de macho mandar em tudo”,
emenda ela. E se ouvir o companheiro com quem vive há 25 anos reclamar, por ser
deixado de lado por causa do projeto, o que faz? “Aproveito para falar com as
mais jovens: ‘vocês precisam saber o que podem aguentar e o que não devem
deixar passar; caso contrário, quem vai se ocupar dos seus problemas?’”
• Mulheres do cumbaru
A atitude decidida de
Eliane ressoa no cotidiano de Luziete Gonçalina da Silva Moraes, de 37 anos,
moradora de Poconé, no Alto Pantanal (distante 12 horas de barco da Barra do
São Lourenço). Ela trabalha há quase uma década com a coleta e a quebra do cumbaru
(Dipteryx Alata) – também chamado de baru, fruto de árvore em risco de extinção
na área de transição com o Cerrado.
Porém, a partir do
momento em que a atividade se tornou alvo da Repartição de Benefícios, a vida
de Luziete mudou. “O projeto deu poder às mulheres que vivem aqui”, resume.
“Tenho dois filhos e marido, que também trabalham com o cumbaru. Ora, o
conforto vem para todos, não é verdade?”
Tereza Rodrigues
Pereira, de 50 anos, ouve e confirma, “Luziete tirou sorte grande. O marido dá
apoio, isso não é atitude dos homens do Pantanal.”
Tereza vive em Barão
de Melgaço, distante duas horas e meia de carro de Poconé, uma das oito
comunidades integradas ao projeto da VBIO naqueles municípios. Ela participa da
coleta do cumbaru há dois anos, exatamente o período em que se separou do
marido, após 26 anos de relacionamento (“… a vida está muito melhor sem ele!”).
Hoje, quando todos da família colaboram – são cinco filhas e seis netos –, a
renda mensal chega a R$ 3 mil.
Luziete detalha o
alcance financeiro do trabalho comunitário. “Antes, o quilo do fruto inteiro
valia R$ 0,60. Agora, com a quebra, vale R$ 25.” O “ouro”, em relação ao
cumbaru, é a castanha dentro do fruto. Torrada e salgada, tem procura em todo o
Brasil.
Difícil mesmo,
contudo, foi encontrar um jeito de facilitar a quebra para a mão feminina.
“Antes, a gente perdia muito da amêndoa, usando facão”, lembra Luziete. “Mas aí
apareceu o senhor Antônio, da comunidade, que adaptou o facão à alavanca e
ficou resolvido.” A meta é fazer gente que trabalha só com a coleta, como
Tereza, adquirir habilidade para também quebrar o cumbaru. “Assim, o sustento
será maior para todos”, garante Edinalda.
Na Barra do São
Lourenço, a renda é mais instável. “Depende dos barcos que aportam por aqui”,
adianta dona Eliane. Esse pedaço de Pantanal, incluído em roteiros de pesca
esportiva, recebe turistas regularmente – é quando o artesanato vende fácil,
“dá para ganhar uns R$ 1.500 por mês”.
Para garantir a
produção, dona Eliane se levanta antes das 4h (salvo aos sábados, dia de culto
evangélico). Prepara o tereré, um tipo de chimarrão feito com água fria, e vai
para o rio. Sempre em parceria, sai à procura de tipos de aguapé para usar em
diferentes peças.
Enquanto corta a
planta – o que faz um bem danado ao meio ambiente, pois contribui para a
passagem dos raios solares e a oxigenação das águas –, Eliane mantém-se alerta.
“Tem vez que onça pula na canoa, abusada, e a gente precisa fazer o maior
barulho com o remo para que vá embora”, conta, com naturalidade. “Mas o pior é
a ariranha, que ataca sem dó, se tiver algo na canoa que deseja. ”
Na labuta com o
cumbaru, em contrapartida, o perigo se chama desgaste físico. “Temos de
carregar sacos de 50 kg, debaixo de sol forte, até o ponto onde o trator pega e
leva para a comunidade”, diz Luziete. “O braço tem de ser forte ou não
aguenta.” As árvores estão espalhadas por grandes propriedades particulares, e
os frutos são colhidos do chão. E o contato com os donos da terra, em que pé
está? “Como andam percebendo que a coleta do cumbaru dá dinheiro, já há quem
queira parte da nossa renda”, alerta.
Por enquanto, porém, a
prioridade é finalizar a criação das associações de mulheres extrativistas
(Poconé e Barão de Melgaço, com cerca de 60 integrantes) e promover melhorias,
caso do beneficiamento do cumbaru quebrado, permitindo a produção de farinha e
agregando valor e renda. Uma curiosidade: nesse projeto, homens têm
participação discreta, auxiliando as mulheres na coleta do fruto. Sinal de nova
mentalidade no Pantanal? A conferir.
Fonte: Mongabay
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