quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Obesidade entre crianças e adolescentes exige olhar para prevenção, políticas públicas e engajamento familiar

O aumento do número de pessoas com obesidade no mundo tem acendido um alerta em toda a sociedade. Isso porque uma das principais características da condição é a sua associação como fator de risco para doenças crônicas, como diabetes, hipertensão e doenças cardiovasculares – que, por sua vez, estão relacionadas a piores desfechos de saúde. Para agravar o cenário, este é um fenômeno que não atinge só adultos. De acordo com o novo Atlas Mundial da Obesidade, o Brasil pode ter 50% das crianças e adolescentes entre 5 e 19 anos com obesidade ou sobrepeso até 2035 – no mundo a projeção é de 39%.

Em geral, a idade é um fator de risco para doenças crônicas não transmissíveis, mas com a obesidade se instalando cada vez mais cedo, a preocupação é que essa equação resulte em uma reação em cadeia: ao mesmo tempo em que as condições gerais de saúde da população pioram, os sistemas de saúde tendem a ficar cada vez mais sobrecarregados. Para conter essa epidemia, especialistas apontam que o problema precisa ser encarado com uma visão holística, uma vez que a obesidade é uma doença multifatorial que inclui aspectos genéticos, biológicos, ambientais e psicológicos.

Por isso, segundo Arthur Lyra, médico pediatra e gerente médico de Doenças Endócrinas Raras na Novo Nordisk Brasil, existem várias frentes necessárias de atuação. Uma delas é a alimentação: “A prevenção começa pela orientação de hábitos alimentares saudáveis. Por exemplo, fazer uma alimentação variada com consumo de cinco porções de frutas e vegetais, reduzir o consumo daqueles alimentos densamente calóricos e ultraprocessados, assim como o de bebidas açucaradas.”

Um estudo longitudinal, feito com 307 crianças em idade pré-escolar, sugeriu que o consumo de ultraprocessados tem um papel fundamental no aumento da obesidade infantil. Outro levantamento destacou evidências de que o consumo dessa classe de alimentos na infância é o segundo fator de risco mais prevalente para o desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis, atrás apenas da inatividade física. Dentre os efeitos do consumo exagerado de ultraprocessados estão o aumento da densidade energética e da carga glicêmica nas refeições, além da desregulação de sinais neurais e hormonais que controlam a sensação de fome e saciedade.

Lyra destaca ainda que os novos hábitos da vida moderna, como o excesso de uso de telas nos momentos de lazer e o sentimento de insegurança nos centros urbanos – que fez com que as brincadeiras infantis migrassem das ruas para o sofá de casa – também são componentes responsáveis pela incidência da doença. “Não há espaços coletivos suficientes para que as crianças possam brincar, como quadras e parques, e os pais não se sentem seguros para deixá-las brincar nas ruas. O resultado disso é uma criança com hábitos sedentários”, aponta.

•        Iniquidade social como fator de risco

Outro ponto que vem sendo observado com mais atenção é o impacto da realidade socioeconômica do núcleo familiar no risco de sobrepeso e obesidade na infância. O “Manual de Orientação: Obesidade na Infância e Adolescência“, organizado pela Sociedade Brasileira de Pediatria, evidencia que o “aumento da prevalência da obesidade no Brasil é relevante e proporcionalmente mais elevado nas famílias de baixa renda.”

Um estudo de coorte publicado este ano na The Lancet analisou dados sobre o Índice de Massa Corporal (IMC) de 5,75 milhões de crianças brasileiras. Os pesquisadores ressaltaram os desafios adicionais enfrentados por famílias de baixa renda no acesso a áreas de lazer e à prática de atividade física ao ar livre, o que as deixam mais vulneráveis, além de pontuar a importância de mais estudos sobre a prevalência da doença em países de média e baixa renda.

De acordo com Louise Cominato, chefe do ambulatório de obesidade infantil do Instituto da Criança (ICR), que pertence ao Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), essa iniquidade é observada no dia a dia:

“As famílias de renda mais elevada têm a informação de que obesidade é uma doença e de como preveni-la, além de um acesso regular ao pediatra. Isso permite que o profissional oriente desde cedo mudanças de hábitos de vida que evitam a evolução para obesidade. As crianças advindas de núcleos familiares com renda mais baixa costumam chegar ao consultório com uma obesidade mais agravada, não há acesso à informação e tampouco o acompanhamento regular com um profissional de saúde, que se perde ao longo da infância. É uma diferença muito grande.”

Nos Estados Unidos, um estudo foi além e examinou as diferenças na trajetória do IMC, nos comportamentos de saúde relacionados ao peso e no risco de excesso de peso e a associação com a dinâmica da pobreza familiar de crianças e adolescentes. Os resultados revelaram, dentre outros achados, que as crianças do grupo em situação de pobreza recorrente apresentaram um risco 1,5 vezes maior de apresentar excesso de peso.

“O levantamento americano traz evidências muito interessantes, como a prevalência da obesidade a depender da região demográfica – escolas com maior concentração de fast food em sua proximidade têm uma maior taxa de obesidade”, analisa Lyra.

•        Prevenção é um dos caminhos contra obesidade infantil

Um dos caminhos para evitar o agravamento desse panorama é a prevenção. E as ações podem começar antes mesmo do nascimento. Estudos de epigenética – mudanças genéticas que não são frutos de mutações nos genes, mas que alteram a expressão genética – têm demonstrado que o sobrepeso ou a obesidade durante a gestação, assim como a presença do diabetes, pode estar associado ao maior risco de que o bebê desenvolva obesidade na fase adulta.

“Um dos fatores que têm sido muito estudado é o peso materno”, aponta Cominato. “E não só o ganho de peso na gestação, mas até o peso da mãe quando ela engravida. Então, se houver esse cuidado de se estar em um peso adequado ao engravidar, isso também vai ser um fator de prevenção para o risco de a criança desenvolver obesidade ao longo da vida.”

A importância do aleitamento materno como fator de prevenção também já é conhecida pelos especialistas. Um dos principais estudos de revisão sobre o tema mostra que o risco de se tornar um adulto com obesidade é reduzido em até 22% quando a criança recebe aleitamento materno, principalmente quando mantido por mais de sete meses. “O papel do aleitamento materno na prevenção da obesidade é algo que tem sido reforçado cada vez mais pela Sociedade Brasileira de Pediatria, por meio de campanhas e materiais de orientação. E é um trabalho muito importante de ser feito”, reforça o gerente médico da Novo.

Essas ações trazem à tona outra característica do cenário da obesidade infantil: a importância da participação de toda a família e não apenas com foco na criança. Como a autonomia da criança é mínima ou nula no que diz respeito aos hábitos de vida, é essencial engajar o núcleo familiar para que as mudanças no estilo de vida sejam concretas e a longo prazo, segundo Lyra: “Quando você tem pais com obesidade, a tendência de que a criança também desenvolva a doença é perto de 80%, muito alta. Então, a intervenção deve ocorrer a nível familiar, senão aquele tratamento tende a não ser duradouro.”

O médico argumenta que é preciso trabalhar de um ponto de vista educacional, e cita o exemplo do uso de alimentos como recompensa por parte dos pais. “As próprias sociedades médicas desestimulam esse hábito, porque pode estimular uma relação ruim da criança com a comida a longo prazo”, lembra. Dentre as ações de apoio estão orientações na leitura de rótulos dos alimentos, informações adequadas sobre a fase de introdução alimentar e porções de alimento.

•        Treinamento médico ainda é insuficiente

Para essa engrenagem da prevenção funcionar, os profissionais de saúde precisam estar capacitados. Entretanto, o reconhecimento do sobrepeso como fator de risco e a identificação e abordagem no consultório são barreiras que precisam ser superadas. Oficializada como doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS) apenas em 2013, a obesidade ainda é uma condição sub estudada nas escolas de medicina, o que se reflete em uma prática clínica carente de conhecimento especializado.

“Ainda há crença na falsa premissa de que o sobrepeso não é uma questão a ser abordada na infância, pois supõe-se que ao entrar na adolescência a criança vai crescer e emagrecer, e isso não é verdade para grande parte dos casos”, explica Arthur Lyra. “É preciso acompanhar desde cedo, porque esse é o momento de se investir em hábitos de alimentação saudável e de exercício físico. É preciso apostar no treinamento desses profissionais do ponto de vista de saúde pública.”

Quando o profissional de saúde identifica o excesso de peso na criança, há um outro desafio: comunicar o quadro e fazer com que a família compreenda os riscos que isso representa. Contudo, por razões culturais e sociais, é comum que o peso elevado seja compreendido como sinal de fartura e sinônimo de acesso à alimentação, principalmente em comunidades de baixa renda. Ainda não há uma compreensão ampla de que apesar do peso na balança, a criança com sobrepeso ou obesidade pode apresentar uma carência nutricional, por exemplo.

Saber como transmitir essa preocupação sem criar uma atmosfera hostil é fundamental para que a família esteja aberta para realizar as intervenções recomendadas. No primeiro Guia de Prática Clínica para Avaliação e Tratamento da Obesidade Infantil, a Associação Americana de Pediatria (AAP, na sigla em inglês) traz recomendações de como fazer isso. Dentre elas estão como pedir permissão dos pais para abordar a questão do peso, evitar rótulos – é preferível o uso de “criança com obesidade” ao invés de “criança obesa” – e utilizar termos como “peso pouco saudável” e “ganhando muito peso para a idade”, em detrimento de expressões como “obesidade” e “gordinho”.

•        Políticas públicas como catalisadores de mudanças

Toda essa complexidade e caráter multifatorial do tema demandam uma visão de política pública centrada na promoção de saúde. Passos têm sido dados nessa direção, como as novas regras de rotulagem nutricional estabelecidas pela Anvisa, que exige que alimentos ricos em gorduras, açúcares e sódio carreguem um aviso na parte frontal das embalagens.

“Foi uma luta conseguir isso no Brasil, e embora não tenha saído do jeito que queríamos, é um grande avanço e certamente vai ajudar as famílias a entenderem de maneira mais fácil o que estão consumindo. É algo que deve ter um grande impacto se aplicado corretamente”, defende a chefe do ambulatório de obesidade infantil do Instituto da Criança (ICR).

Para estimular uma alimentação mais nutritiva, o Ministério da Saúde lançou também o Guia Alimentar para a População Brasileira, que traz recomendações gerais sobre a escolha de alimentos, sugestões de combinações, orientações sobre o aspecto social do comer e propostas para os desafios de adesão ao guia.

Para Patricia Byington, gerente de Sustentabilidade da Novo Nordisk no Brasil, é preciso que as recomendações sejam materializadas: “A mudança de hábito é o grande desafio e é necessário um esforço colaborativo multissetorial para tornar as opções mais saudáveis também as mais fáceis. E quando falamos de alimentação, isso tem vários significados, como tornar o alimento mais barato, mais acessível, mais atraente e conveniente.”

Em 2021, a Sociedade Brasileira de Pediatria somou esforços ao Ministério na construção do Guia Alimentar para Crianças Menores de 2 anos, que ressalta a importância do aleitamento materno, orientações para a seleção e identificação dos grupos alimentares e dicas gerais sobre a fase de introdução alimentar. No site da pasta também é possível encontrar materiais que contemplam crianças de 2 a 10 anos de idade.

Nos últimos meses a Reforma Tributária apareceu como reforço dessas ações ao incluir em seu texto o Imposto Seletivo, que tem como objetivo desestimular o consumo de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. Dentre eles estão bebidas açucaradas – como refrigerantes e sucos industrializados.

•        Iniciativas de abordagem intersetorial

A abordagem intersetorial e as parcerias entre diferentes elos do ecossistema se apresentam como ações que complementam os esforços. Um exemplo é a iniciativa global Cities for Better Health da Novo Nordisk, que visa a promoção de um estilo de vida saudável nos centros urbanos e a prevenção de doenças crônicas. Atualmente, mais 45 cidades ao redor do mundo fazem parte da rede, incluindo Campinas, no interior de São Paulo, que desde 2023 implementa o programa “Passos para uma vida melhor”.

Por meio da ação, que envolve diferentes secretarias municipais (Saúde, Educação, Esporte e Lazer, Assistência Social e Desenvolvimento Humano, e Cultura e Turismo) e o CEASA – (Centrais de Abastecimento), os servidores participam de uma formação e, a partir disso, planejam e implementam planos de atividade física e alimentação saudável para a população.

Após um primeiro ciclo realizado em 2023, no mesmo ano o programa foi expandido e ao longo de 2024 está sendo implementado em metade dos bairros do município. Este ano a cidade de Campinas também aderiu a uma nova iniciativa global do programa Cities for Better Health, que também será implementada em outras 5 cidades de outros países com o foco voltado para a prevenção da obesidade infantil, como conta Byington:

“Vamos trabalhar em três níveis, no individual, no comunitário e no estrutural. São diferentes tipos de intervenção relacionadas a alimentação e atividade física, porque muitas vezes não depende de uma mudança da pessoa, principalmente quando falamos de criança. Depende do que está disponível nos ambientes alimentares que ela frequenta, como a cantina da escola, de quais propagandas são veiculadas, entre outros fatores que fazem parte da tomada de decisão e da construção de hábitos.”

 

Fonte: Por Isabelle Manzini, em Futuro da Saúde

 

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