Obesidade entre crianças e adolescentes
exige olhar para prevenção, políticas públicas e engajamento familiar
O aumento do número de
pessoas com obesidade no mundo tem acendido um alerta em toda a sociedade. Isso
porque uma das principais características da condição é a sua associação como
fator de risco para doenças crônicas, como diabetes, hipertensão e doenças
cardiovasculares – que, por sua vez, estão relacionadas a piores desfechos de
saúde. Para agravar o cenário, este é um fenômeno que não atinge só adultos. De
acordo com o novo Atlas Mundial da Obesidade, o Brasil pode ter 50% das
crianças e adolescentes entre 5 e 19 anos com obesidade ou sobrepeso até 2035 –
no mundo a projeção é de 39%.
Em geral, a idade é um
fator de risco para doenças crônicas não transmissíveis, mas com a obesidade se
instalando cada vez mais cedo, a preocupação é que essa equação resulte em uma
reação em cadeia: ao mesmo tempo em que as condições gerais de saúde da população
pioram, os sistemas de saúde tendem a ficar cada vez mais sobrecarregados. Para
conter essa epidemia, especialistas apontam que o problema precisa ser encarado
com uma visão holística, uma vez que a obesidade é uma doença multifatorial que
inclui aspectos genéticos, biológicos, ambientais e psicológicos.
Por isso, segundo
Arthur Lyra, médico pediatra e gerente médico de Doenças Endócrinas Raras na
Novo Nordisk Brasil, existem várias frentes necessárias de atuação. Uma delas é
a alimentação: “A prevenção começa pela orientação de hábitos alimentares saudáveis.
Por exemplo, fazer uma alimentação variada com consumo de cinco porções de
frutas e vegetais, reduzir o consumo daqueles alimentos densamente calóricos e
ultraprocessados, assim como o de bebidas açucaradas.”
Um estudo
longitudinal, feito com 307 crianças em idade pré-escolar, sugeriu que o
consumo de ultraprocessados tem um papel fundamental no aumento da obesidade
infantil. Outro levantamento destacou evidências de que o consumo dessa classe
de alimentos na infância é o segundo fator de risco mais prevalente para o
desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis, atrás apenas da
inatividade física. Dentre os efeitos do consumo exagerado de ultraprocessados
estão o aumento da densidade energética e da carga glicêmica nas refeições,
além da desregulação de sinais neurais e hormonais que controlam a sensação de
fome e saciedade.
Lyra destaca ainda que
os novos hábitos da vida moderna, como o excesso de uso de telas nos momentos
de lazer e o sentimento de insegurança nos centros urbanos – que fez com que as
brincadeiras infantis migrassem das ruas para o sofá de casa – também são
componentes responsáveis pela incidência da doença. “Não há espaços coletivos
suficientes para que as crianças possam brincar, como quadras e parques, e os
pais não se sentem seguros para deixá-las brincar nas ruas. O resultado disso é
uma criança com hábitos sedentários”, aponta.
• Iniquidade social como fator de risco
Outro ponto que vem
sendo observado com mais atenção é o impacto da realidade socioeconômica do
núcleo familiar no risco de sobrepeso e obesidade na infância. O “Manual de
Orientação: Obesidade na Infância e Adolescência“, organizado pela Sociedade
Brasileira de Pediatria, evidencia que o “aumento da prevalência da obesidade
no Brasil é relevante e proporcionalmente mais elevado nas famílias de baixa
renda.”
Um estudo de coorte
publicado este ano na The Lancet analisou dados sobre o Índice de Massa
Corporal (IMC) de 5,75 milhões de crianças brasileiras. Os pesquisadores
ressaltaram os desafios adicionais enfrentados por famílias de baixa renda no
acesso a áreas de lazer e à prática de atividade física ao ar livre, o que as
deixam mais vulneráveis, além de pontuar a importância de mais estudos sobre a
prevalência da doença em países de média e baixa renda.
De acordo com Louise
Cominato, chefe do ambulatório de obesidade infantil do Instituto da Criança
(ICR), que pertence ao Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (FMUSP), essa iniquidade é observada no dia a dia:
“As famílias de renda
mais elevada têm a informação de que obesidade é uma doença e de como
preveni-la, além de um acesso regular ao pediatra. Isso permite que o
profissional oriente desde cedo mudanças de hábitos de vida que evitam a
evolução para obesidade. As crianças advindas de núcleos familiares com renda
mais baixa costumam chegar ao consultório com uma obesidade mais agravada, não
há acesso à informação e tampouco o acompanhamento regular com um profissional
de saúde, que se perde ao longo da infância. É uma diferença muito grande.”
Nos Estados Unidos, um
estudo foi além e examinou as diferenças na trajetória do IMC, nos
comportamentos de saúde relacionados ao peso e no risco de excesso de peso e a
associação com a dinâmica da pobreza familiar de crianças e adolescentes. Os
resultados revelaram, dentre outros achados, que as crianças do grupo em
situação de pobreza recorrente apresentaram um risco 1,5 vezes maior de
apresentar excesso de peso.
“O levantamento
americano traz evidências muito interessantes, como a prevalência da obesidade
a depender da região demográfica – escolas com maior concentração de fast food
em sua proximidade têm uma maior taxa de obesidade”, analisa Lyra.
• Prevenção é um dos caminhos contra
obesidade infantil
Um dos caminhos para
evitar o agravamento desse panorama é a prevenção. E as ações podem começar
antes mesmo do nascimento. Estudos de epigenética – mudanças genéticas que não
são frutos de mutações nos genes, mas que alteram a expressão genética – têm demonstrado
que o sobrepeso ou a obesidade durante a gestação, assim como a presença do
diabetes, pode estar associado ao maior risco de que o bebê desenvolva
obesidade na fase adulta.
“Um dos fatores que
têm sido muito estudado é o peso materno”, aponta Cominato. “E não só o ganho
de peso na gestação, mas até o peso da mãe quando ela engravida. Então, se
houver esse cuidado de se estar em um peso adequado ao engravidar, isso também
vai ser um fator de prevenção para o risco de a criança desenvolver obesidade
ao longo da vida.”
A importância do
aleitamento materno como fator de prevenção também já é conhecida pelos
especialistas. Um dos principais estudos de revisão sobre o tema mostra que o
risco de se tornar um adulto com obesidade é reduzido em até 22% quando a
criança recebe aleitamento materno, principalmente quando mantido por mais de
sete meses. “O papel do aleitamento materno na prevenção da obesidade é algo
que tem sido reforçado cada vez mais pela Sociedade Brasileira de Pediatria,
por meio de campanhas e materiais de orientação. E é um trabalho muito
importante de ser feito”, reforça o gerente médico da Novo.
Essas ações trazem à
tona outra característica do cenário da obesidade infantil: a importância da
participação de toda a família e não apenas com foco na criança. Como a
autonomia da criança é mínima ou nula no que diz respeito aos hábitos de vida,
é essencial engajar o núcleo familiar para que as mudanças no estilo de vida
sejam concretas e a longo prazo, segundo Lyra: “Quando você tem pais com
obesidade, a tendência de que a criança também desenvolva a doença é perto de
80%, muito alta. Então, a intervenção deve ocorrer a nível familiar, senão
aquele tratamento tende a não ser duradouro.”
O médico argumenta que
é preciso trabalhar de um ponto de vista educacional, e cita o exemplo do uso
de alimentos como recompensa por parte dos pais. “As próprias sociedades
médicas desestimulam esse hábito, porque pode estimular uma relação ruim da
criança com a comida a longo prazo”, lembra. Dentre as ações de apoio estão
orientações na leitura de rótulos dos alimentos, informações adequadas sobre a
fase de introdução alimentar e porções de alimento.
• Treinamento médico ainda é insuficiente
Para essa engrenagem
da prevenção funcionar, os profissionais de saúde precisam estar capacitados.
Entretanto, o reconhecimento do sobrepeso como fator de risco e a identificação
e abordagem no consultório são barreiras que precisam ser superadas. Oficializada
como doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS) apenas em 2013, a obesidade
ainda é uma condição sub estudada nas escolas de medicina, o que se reflete em
uma prática clínica carente de conhecimento especializado.
“Ainda há crença na
falsa premissa de que o sobrepeso não é uma questão a ser abordada na infância,
pois supõe-se que ao entrar na adolescência a criança vai crescer e emagrecer,
e isso não é verdade para grande parte dos casos”, explica Arthur Lyra. “É preciso
acompanhar desde cedo, porque esse é o momento de se investir em hábitos de
alimentação saudável e de exercício físico. É preciso apostar no treinamento
desses profissionais do ponto de vista de saúde pública.”
Quando o profissional
de saúde identifica o excesso de peso na criança, há um outro desafio:
comunicar o quadro e fazer com que a família compreenda os riscos que isso
representa. Contudo, por razões culturais e sociais, é comum que o peso elevado
seja compreendido como sinal de fartura e sinônimo de acesso à alimentação,
principalmente em comunidades de baixa renda. Ainda não há uma compreensão
ampla de que apesar do peso na balança, a criança com sobrepeso ou obesidade
pode apresentar uma carência nutricional, por exemplo.
Saber como transmitir
essa preocupação sem criar uma atmosfera hostil é fundamental para que a
família esteja aberta para realizar as intervenções recomendadas. No primeiro
Guia de Prática Clínica para Avaliação e Tratamento da Obesidade Infantil, a
Associação Americana de Pediatria (AAP, na sigla em inglês) traz recomendações
de como fazer isso. Dentre elas estão como pedir permissão dos pais para
abordar a questão do peso, evitar rótulos – é preferível o uso de “criança com
obesidade” ao invés de “criança obesa” – e utilizar termos como “peso pouco
saudável” e “ganhando muito peso para a idade”, em detrimento de expressões
como “obesidade” e “gordinho”.
• Políticas públicas como catalisadores de
mudanças
Toda essa complexidade
e caráter multifatorial do tema demandam uma visão de política pública centrada
na promoção de saúde. Passos têm sido dados nessa direção, como as novas regras
de rotulagem nutricional estabelecidas pela Anvisa, que exige que alimentos
ricos em gorduras, açúcares e sódio carreguem um aviso na parte frontal das
embalagens.
“Foi uma luta
conseguir isso no Brasil, e embora não tenha saído do jeito que queríamos, é um
grande avanço e certamente vai ajudar as famílias a entenderem de maneira mais
fácil o que estão consumindo. É algo que deve ter um grande impacto se aplicado
corretamente”, defende a chefe do ambulatório de obesidade infantil do
Instituto da Criança (ICR).
Para estimular uma
alimentação mais nutritiva, o Ministério da Saúde lançou também o Guia
Alimentar para a População Brasileira, que traz recomendações gerais sobre a
escolha de alimentos, sugestões de combinações, orientações sobre o aspecto
social do comer e propostas para os desafios de adesão ao guia.
Para Patricia
Byington, gerente de Sustentabilidade da Novo Nordisk no Brasil, é preciso que
as recomendações sejam materializadas: “A mudança de hábito é o grande desafio
e é necessário um esforço colaborativo multissetorial para tornar as opções
mais saudáveis também as mais fáceis. E quando falamos de alimentação, isso tem
vários significados, como tornar o alimento mais barato, mais acessível, mais
atraente e conveniente.”
Em 2021, a Sociedade
Brasileira de Pediatria somou esforços ao Ministério na construção do Guia
Alimentar para Crianças Menores de 2 anos, que ressalta a importância do
aleitamento materno, orientações para a seleção e identificação dos grupos
alimentares e dicas gerais sobre a fase de introdução alimentar. No site da
pasta também é possível encontrar materiais que contemplam crianças de 2 a 10
anos de idade.
Nos últimos meses a
Reforma Tributária apareceu como reforço dessas ações ao incluir em seu texto o
Imposto Seletivo, que tem como objetivo desestimular o consumo de bens e
serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. Dentre eles estão bebidas
açucaradas – como refrigerantes e sucos industrializados.
• Iniciativas de abordagem intersetorial
A abordagem
intersetorial e as parcerias entre diferentes elos do ecossistema se apresentam
como ações que complementam os esforços. Um exemplo é a iniciativa global
Cities for Better Health da Novo Nordisk, que visa a promoção de um estilo de
vida saudável nos centros urbanos e a prevenção de doenças crônicas.
Atualmente, mais 45 cidades ao redor do mundo fazem parte da rede, incluindo
Campinas, no interior de São Paulo, que desde 2023 implementa o programa
“Passos para uma vida melhor”.
Por meio da ação, que
envolve diferentes secretarias municipais (Saúde, Educação, Esporte e Lazer,
Assistência Social e Desenvolvimento Humano, e Cultura e Turismo) e o CEASA –
(Centrais de Abastecimento), os servidores participam de uma formação e, a partir
disso, planejam e implementam planos de atividade física e alimentação saudável
para a população.
Após um primeiro ciclo
realizado em 2023, no mesmo ano o programa foi expandido e ao longo de 2024
está sendo implementado em metade dos bairros do município. Este ano a cidade
de Campinas também aderiu a uma nova iniciativa global do programa Cities for
Better Health, que também será implementada em outras 5 cidades de outros
países com o foco voltado para a prevenção da obesidade infantil, como conta
Byington:
“Vamos trabalhar em
três níveis, no individual, no comunitário e no estrutural. São diferentes
tipos de intervenção relacionadas a alimentação e atividade física, porque
muitas vezes não depende de uma mudança da pessoa, principalmente quando
falamos de criança. Depende do que está disponível nos ambientes alimentares
que ela frequenta, como a cantina da escola, de quais propagandas são
veiculadas, entre outros fatores que fazem parte da tomada de decisão e da
construção de hábitos.”
Fonte: Por Isabelle
Manzini, em Futuro da Saúde
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