No final de maio,
prefeitos e assessores ganharam destaque nas mídias sociais devido à sua
presença em uma boate em Brasília, perto da Esplanada dos Ministérios, onde
eles se divertiram com garotas de programa em festas regadas a uísque. Embora a
repercussão tenha refletido o sentimento antipolítico e moralista predominantes
no debate público, ela ofuscou um evento mais importante que ocorria na mesma
semana na capital, com a presença do Presidente Lula, do vice-presidente
Alckmin, presidentes da Câmara e do Senado, e quase vinte ministros.
Estamos falando da XXV
Marcha dos Municípios a Brasília ou, simplesmente, “Marcha dos Prefeitos”, que
ocorreu entre os dias 20 e 23 de maio de 2024 no maior centro de convenções da
cidade. A Marcha é um evento anual organizado pela Confederação Nacional de
Municípios (CNM) com o objetivo de promover o diálogo entre os líderes
municipais e as autoridades do Legislativo e do Executivo federal para discutir
questões de interesse dos municípios e buscar soluções para os desafios
enfrentados na administração municipal.
Durante os quatro dias
do evento, acompanhamos de perto as atividades, os debates, as conversas de
corredor e as interações entre prefeitos e deputados. Conversamos com mais de
90 prefeitos e prefeitas, observamos de perto as palestras temáticas, as reuniões
de bancadas estaduais e atividades não incluídas na programação da Marcha, como
as visitas dos prefeitos e vereadores aos gabinetes dos deputados nos anexos
III e IV da Câmara.
Em Brasília, pudemos
constatar que os membros dos três poderes se organizam para recepcionar os
gestores municipais. Para os prefeitos, é a chance de fortalecer vínculos,
apresentar demandas e resolver problemas. Muitos chegam a Brasília com agendas
de reuniões com ministros, intermediadas por deputados ou senadores, e recebem
a ajuda de seus assessores para “destravar” burocracias nos ministérios. Como
nos disse um prefeito de Minas Gerais, “sempre tem esse contato com os
deputados, mas, nesse período, é melhor, pois eles ficam mais à disposição dos
prefeitos”.
Neste artigo, trazemos
uma descrição das atividades e interações que presenciamos na Marcha dos
Municípios, e uma discussão sobre seu significado para os gestores municipais.
Em ano de eleição municipal, em que as atenções se voltam para os políticos locais
e suas alianças em Brasília, a Marcha é uma oportunidade ímpar para ampliar
nossa compreensão sobre o funcionamento do federalismo brasileiro, o poder
local e as relações intergovernamentais no Brasil.
- Marchar para onde?
Para quem está
familiarizado com eventos como a Marcha do MST ou a Marcha da Maconha, nos
quais ativistas caminham de um ponto a outro gritando palavras de ordem, a
Marcha dos Municípios pode causar estranhamento. Isso porque o evento não
envolve nenhum deslocamento de pessoas de um ponto a outro. Ele ocorre em um
centro de convenções de Brasília, na Asa Sul, e conta com uma estrutura
bastante profissionalizada. Em um prédio com três andares, uma multidão de
prefeitos(as), vereadores(as), assessores(as) e secretários(as) municipais
participam de várias atividades, circulam pelos corredores e espaços de
convivência, fazem vídeos e fotos para divulgar em suas redes sociais, visitam
os estandes dos patrocinadores e resolvem problemas no posto de atendimento dos
ministérios. No enorme auditório onde ocorreram a abertura, o encerramento e
outras mesas principais, três telões de alta resolução e um potente sistema de
som permitiam acompanhar os debates à distância. Durante a tarde, os
participantes assistiam a palestras e capacitações sobre temas relevantes para
os municípios, como a nova lei de licitações e emendas parlamentares.
Nas primeiras edições
da Marcha, os prefeitos e outras lideranças locais se concentravam na Esplanada
dos Ministérios e se deslocavam até o Congresso Nacional e o Palácio do
Planalto. Desde então, o evento cresceu e se profissionalizou, passando de 2
mil participantes em sua primeira edição, em 1998, para 11 mil, em 2024. Como
resultado, sua programação se diversificou e o evento passou a ser realizado em
um local fechado.
- Todos juntos somos fortes
Além da
profissionalização e do apoio verbalizado ao presidente da CNM, Paulo
Ziulkoski, o que se destaca é o forte senso de identidade coletiva que as
sucessivas participações na Marcha e os contatos frequentes com a confederação
parecem ter incutido nos gestores locais. Isso ficou evidente na frequência com
que os temas da chamada “pauta municipalista” apareceram, de forma espontânea,
em nossas conversas. Como muitos relataram, eles estavam ali para “demonstrar,
juntos, a força do movimento municipalista”. “Isoladamente, não conseguimos as
coisas, então é importante se unir pra ter essa demonstração de força”, disse
um prefeito de Santa Catarina.
Eles acreditam que,
unidos, podem pressionar o governo federal e as bancadas parlamentares para
influenciar votações no Congresso que afetam os municípios. Mais de uma vez, o
presidente da CNM os orientou nesse sentido: “conversem com seus deputados, façam
pressão”. Assim, nesta semana, mais do que partido, ideologia ou região, o que
parecia importar eram os “interesses dos municípios” e seus problemas comuns.
Neste ano, as
principais demandas da pauta municipalista eram relativas à desoneração da
folha de pagamentos e ao pagamento dos precatórios e das dívidas
previdenciárias. Estas foram apresentadas na cerimônia de abertura pelo
presidente da CNM, diretamente ao presidente Lula, que, ao se comprometer a
atender às reivindicações, transformou em aplausos as vaias recebidas no início de sua fala.
A questão climática se
destacou na programação da Marcha, impulsionada pelo recente desastre no Rio
Grande do Sul. Muitos prefeitos gaúchos participaram do evento pedindo “mais
recursos e a desburocratização dos já empenhados”. O tema foi abordado
nos discursos do presidente Lula,
do presidente da CNM e da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Mas, em
nossas conversas com prefeitos de outros estados o tema quase não apareceu,
indicando que a pauta ainda não entrou no radar dos gestores municipais.
As prefeitas também
estavam convencidas da importância da união para compartilhar estratégias e
fortalecer a representatividade feminina. Elas participaram de várias
atividades voltadas para mulheres previstas na programação. Apesar do baixo
percentual de 12% de prefeitas eleitas em 2020, sua presença na marcha era
significativa. Elas relataram desafios de gênero que enfrentam cotidianamente e
transcendem região, partido e ideologia. Uma prefeita de Minas Gerais relatou
que seu grupo retirou o apoio à sua reeleição para apoiar um candidato
masculino, e uma jovem prefeita da região Sul contou dos comentários frequentes
sobre sua vida pessoal e aparência.
- “Com o pires na mão” e “Tudo acontece no município”
De olho nos crachás
que continham nome, município e estado, chamou nossa atenção a ausência de
prefeitos de capitais e grandes cidades. A grande maioria dos municípios
brasileiros são de pequeno porte, e ficou claro que o evento é voltado para
eles. São municípios que enfrentam carências em recursos e infraestrutura,
dependendo quase inteiramente de transferências governamentais de outros
níveis. Os gestores desses municípios destacaram a importância da Marcha para
trocar experiências, receber capacitação e acessar informações. Eles valorizam
a oportunidade de conhecer produtos e soluções exibidos nos estandes dos
patrocinadores, como materiais didáticos, ambulâncias e sistemas de
digitalização de documentos. Segundo um vendedor, muitos prefeitos que conhecem
os produtos por meio da Marcha, mais tarde realizam a compra.
A partir do segundo
dia, percebemos o esvaziamento do centro de convenções à tarde, com muitos
prefeitos aproveitando o tempo para visitar os ministérios e gabinetes de
deputados e senadores. Os prefeitos de municípios pequenos dependem dos
deputados para obter recursos por meio de emendas e programas estaduais e
federais, além de necessitar do apoio dos gabinetes para acessar agências do
executivo federal e atender às demandas dos eleitores. Os deputados, por sua
vez, precisam dos prefeitos para construírem uma boa reputação no município e
conseguirem crédito pelos benefícios canalizados. Quando bem avaliados, os
prefeitos podem transferir blocos de votos para seus aliados.
Embora a cooperação
pareça render frutos para ambas as partes, ela não é livre de problemas. Em
nossas conversas, percebemos que os prefeitos gostariam de reduzir sua
dependência em relação aos deputados e às transferências discricionárias.
Segundo um prefeito do Pará, seria melhor para o executivo municipal contar
“com aquele recurso sempre, emenda é só uma vez, é melhor ter algo garantido
todo ano”. Por isso eles se empenham para ampliar o volume de recursos
destinados aos municípios de forma automática, para que não sejam obrigados a
estar sempre com o “pires na mão”, como nos disse uma prefeita de Minas Gerais.
Como os pedidos
geralmente superam os recursos disponíveis, não é fácil para os deputados
definir quem recebe o que e quando. Nesse cálculo, contam a força do vínculo
com os aliados locais, os votos obtidos no município e os prognósticos para a
próxima eleição. Assim, é comum que nem todos fiquem satisfeitos, o que pode
motivar rompimentos e ressentimentos. Uma ideia comum é a de que, como “tudo
acontece no município”, conforme repetido muitas vezes pelos palestrantes que
queriam agradar ao público, não faz sentido que os recursos fiquem concentrados
na União.
- “Eu ajudo quem ajuda”: sobre emendas, votos e eleições
A eleição municipal
deste ano será a segunda depois da introdução das emendas impositivas. Outra
mudança que ampliou a influência do Congresso sobre o orçamento e o volume de
recursos destinados aos municípios foi a introdução das emendas de relator,
também chamadas de RP9 ou orçamento secreto. Nas conversas com os prefeitos, as
emendas impositivas foram mencionadas diversas vezes de modo espontâneo. Embora
reconheçam que elas tornaram o recebimento dos recursos mais garantido, eles
não pareciam muito empolgados com a novidade. Um prefeito da Paraíba disse que
com as emendas impositivas “melhorou muito, mas ainda assim tem que fazer
pressão”. Outro, do Mato Grosso do Sul afirmou que “o legislativo está mandando
demais no orçamento. Que isso devia ser do executivo”, fazendo eco a uma fala
recorrente do presidente Lula.
Do ponto de vista
eleitoral, o aumento no volume de recursos tende a beneficiar os prefeitos em
exercício que podem contar com melhores condições para alimentar suas redes
locais de apoio, atender às demandas da população e aumentar suas chances de se
reeleger ou eleger um sucessor. Para os municípios de pequeno porte, as emendas
podem fazer uma grande diferença: na forma
de uma ambulância, uma nova viatura para a polícia, uma quadra poliesportiva, a
reforma do posto de saúde, o asfaltamento das vias que ligam um distrito ao
centro, e por aí vai.
Em ano de eleição, o
desafio é dar o máximo de visibilidade para as realizações. Como se sabe, os
deputados tendem a se empenhar na eleição de seus aliados locais buscando
garantir um cabo eleitoral que irá mobilizar votos para o deputado dois anos
depois. Estudos mostram que um
bom desempenho na eleição municipal maximiza o desempenho nas eleições dois
anos depois. Isso reforça a ideia de que os prefeitos atuam como cabos
eleitorais para os deputados. Como disse um prefeito do Paraná “eu ajudo quem
ajuda”.
Essa cooperação
durante e entre as eleições foi tema de muitas das nossas conversas. Enquanto
alguns prefeitos optam pela exclusividade, apoiando um único deputado, outros
preferem diversificar como uma forma de “ter mais de uma fonte de recursos”,
como explicou um prefeito de Minas Gerais. Na formação de alianças o partido
não é um obstáculo, o importante é manter-se dentro do “grupo político”. Como
disse um prefeito do Amazonas com o apoio de três deputados de partidos
diferentes “na cidade todo mundo tem voto, todo mundo fica satisfeito”.
- Conexões multiníveis e distribuição de bens públicos
A atuação coletiva dos
gestores locais na defesa dos interesses dos municípios, capitaneada pela CNM,
assume uma forma típica de lobby que, segundo definido no portal da Câmara dos Deputados, seria a
“representação plural de interesses legítimos de empresas, categorias
profissionais e organizações junto a autoridades públicas”. A CNM se define
como uma entidade civil, apartidária, sem fins lucrativos e, como tal, está
habilitada a realizar lobby junto às instituições públicas. Por outro lado, ela
é uma organização que representa autoridades eleitas e entes da federação.
Em um estudo sobre
lobby na Câmara dos Deputados, Ciro Rezende mostrou que de
um total de 3675 organizações, a CNM estava entre as 100 instituições que mais
estiveram presentes em audiências públicas das comissões permanentes, o que
mostra o protagonismo da entidade na defesa e representação de interesses
organizados. Há controvérsias na literatura especializada sobre em que medida
as atividades de defesa de interesses organizados por parte de órgãos e atores
estatais podem ser consideradas como lobby. Mas, dada a sua frequência e
intensidade, elas merecem maior atenção dos estudiosos e da sociedade.
Outro ponto importante
diz respeito aos efeitos das dinâmicas de intermediação entre gestores locais e
políticos que atuam em outros níveis. Em grande medida, ela resulta de
incentivos do desenho institucional brasileiro combinadas a características
demográficas e socioeconômicas. Mas os impactos dessa dinâmica sobre a
competição e a democracia não são inteiramente claros. É evidente que a falta de transparência e de controle nas transferências intergovernamentais, como noticiado no
caso das emendas de relator e das emendas pix, é um problema que precisa ser
combatido. Também há o receio de que a ampliação no volume de recursos
transferidos aos municípios via emendas aumente sobremaneira a vantagem dos
atuais mandatários tornando muito difícil a vida dos desafiantes. Alguns estudos apontam que as
emendas parlamentares geram retorno eleitoral especialmente quando o deputado
as aloca para prefeitos do seu partido. Outros indicam que esses efeitos não são tão
relevantes. A eleição deste ano mostrará em que medida o controle da máquina
passou a ter mais importância na definição do resultado em comparação com as
eleições passadas.
Outra questão
relevante diz respeito ao caráter discricionário das emendas parlamentares, o
que permite que deputados escolham onde e quando alocá-las, frequentemente
guiados por critérios políticos e partidários, visando retorno eleitoral. Isso pode aumentar a desigualdade
no acesso a bens e serviços públicos, levando à crítica de que as emendas são
um gasto público ineficiente, que só interessa aos políticos. Porém, as
evidências a respeito são mistas. Alguns estudos mostram que, de
fato, os municípios mais necessitados não são os que recebem mais recursos. Mas
há evidências de que as emendas podem incidir positivamente no nível de bem estar da
população. Outras pesquisas também mostraram
que municípios mais pobres têm mais probabilidade de receber recursos via
emendas e que elas contribuem para promover inclusão e melhoria de indicadores sociais, embora esses efeitos tendam a se dissipar ao longo do tempo.
O fato importante a
destacar é que as dinâmicas de intermediação envolvendo políticos e fluxo de
recursos financeiros, informações, prestígio e votos não devem ser
consideradas, necessariamente, desvios da política democrática. Elas fazem
parte do processo político nas democracias mundo a fora com diferentes
formatos, intensidades e consequências. O desafio está em identificar quando
esses processos acarretam prejuízos para a transparência, a prestação de
contas, a competitividade e o acesso a bens e serviços públicos. Os analistas
não têm uma resposta decisiva para essas perguntas, restando aos eleitores, de
tempos em tempos, fazer seu julgamento.
Fonte: Por Marta
Mendes da Rocha e Gabrielly Costa Cardoso, no Le Monde
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