'Esquerda da América Latina não sabe o que
fazer com esta criatura indecifrável que é o chavismo'
No momento em que
aumenta a pressão internacional por
uma recontagem transparente e auditável dos votos das eleções de domingo
(28/07) na Venezuela, os presidentes de
equerda de países latino-americanos se encontram divididos.
De um lado, o
presidente do Chile, Gabriel Boric, foi o primeiro a exigir "total transparência das atas de apuração e de todo processo
eleitoral", logo após de ter exposto suas
dúvidas em relação ao resultado divulgado pelo Conselho Nacional Eleitoral
(CNE) da Venezuela, que deu vitória ao presidente Nicolás Maduro.
México e Colômbia se
juntaram ao Chile e disseram que iriam esperar pelos resultados definitivos. O
presidente Luiz Inácio Lula da Silva seguiu linha parecida ao condicionar o
reconhecimento do resultado à apresentação das atas eleitorais.
Já países como
Bolivia, Nicarágua e Honduras preferiram parabenizar Maduro por seu
"triunfo obtido sem objeções".
O cientista político
argentino José Natanson, autor de Venezuela. Ensayo sobre la
descomposición, analisa como o "fracasso da Venezuela" nestes últimos
anos impacta a esquerda da América Latina.
"Existe uma
esquerda nostálgica que acredita que a Venezuela segue o projeto de Hugo Chávez
e que age como se isto fosse acertado", disse o diretor da revista Le
Monde Diplomatique, de tendência de esquerda, na sua edição intitulada Cone
Sul, que analisa o chavismo nos últimos dez anos.
Apesar de países como
Brasil, México e Colômbia declararem que esperam que os resultados sejam
analisados por uma "auditoria independente", a chancelaria
venezuelana divulgou um comunicado na segunda-feira (29/07) classificando como
"declarações e ações de ingerência" as posições de Argentina, Chile,
Costa Rica, Perú, Panamá, República Dominicana e Uruguai e exigiu a "retirada imediata" de seus diplomatas do país.
Também ordenou a volta
imediata dos representantes diplomáticos venezuelanos baseados naqueles sete
países latino-americanos.
De Buenos Aires, José
Natanson conversou sobre a Venezuela com a BBC News Mundo, o serviço em
espanhol da BBC.
LEIA A ENTREVISTA:
·
Qual a leitura que
você faz do anúncio feito pelo CNE sobre os resultados na Venezuela?
José
Natanson - Até agora, temos a declaração do chefe do
CNE que disse que Maduro ganho as eleições. Para que essa declaração se
converta em um resultado verificável faltam os dados de cada mesa e por centro
de votação.
Para que uma eleição
seja democrática, não basta que os resultados sejam públicos, eles têm que ser
verificáveis.
Até este momento estes
dados não são auditáveis. Os resultados não são verificáveis porque não se tem
acesso aos dados desagregados que é o que permite aos fiscais de mesa da
oposição verificarem se os dados da mesa X, da seção X daquela escola são compatíveis
com os resultados divulgados pelo CNE.
Por isso, as suspeitas
de fraude ganham fundamento. Eu não posso afirmar que houve fraude nem se os
resultados divulgados estão corretos, não se pode afirmar nenhuma das duas
opções até que tenhamos os dados.
A desconfiança sobre a
correção do sistema eleitoral não nasceu no processo de votação em si mas sim
no que aconteceu antes e depois das eleições.
Entretanto, desta vez
as principais suspeitas da oposição se concentram na recontagem. O que
aconteceu?
Até agora, o chavismo
já havia cometido diversas irregularidades, desde as mais banais até as mais
graves, mas nunca houve uma eleição nacional roubada na votação, por assim
dizer.
O regime já tinha
impedido candidatos de concorrer, já houve proibição de que eles viajassem de
avião, houve prisões políticas e chegaram até a fechar um hotel em que se
hospedavam candidatos da oposição.
Mas, desta vez, se
forem comprovadas as suspeitas de fraude - que não são suspeitas minhas, são
suspeitas manifestadas por alguns líderes -, o chavismo com certeza ultrapassou
uma linha que não tinha cruzado anteriormente.
Entretanto essa
comprovação ainda não foi feita, por isso temos que ter cautela.
·
No seu livro, você
define o governo de Nicolás Maduro como um "autoritarismo caótico".
Você pode explicar melhor essa definição?
Natanson
- O processo de guinada autoritária na
Venezuela não foi um processo que se desencadeou a partir de um rota
revolucionária, nem nacionalista, nem de nenhum outro tipo. Não é como o
processo soviético ou o chinês.
Na Venezuela, isso se
deu através de uma série de decisões táticas que acabaram por levar o país a um
autoritarismo caótico.
Pelo menos até agora,
a Venezuela não era e não é uma ditadura num sentido clássico.
Na Venezuela, a
oposição não está totalmente obliterada como em Cuba. Existem três governadores
de oposição e mais de cem prefeitos opositores que governam, mesmo que com
muita dificuldade.
A Venezuela não tem um
sistema de partido único institucionalizado como o sistema soviético, o chinês
ou o sistema cubano. Mas o país também não é uma democracia liberal pluralista
e republicana por tudo o que sabemos.
Por isso, eu acredito
que o país vive transitando entre esses momentos intermediários, em que por
vezes se abre, em outros se fecha completamente, em outros é mais autoritário e
em outros menos.
·
Você vê a Venezuela
migrando para um sistema de um só partido, como em Cuba?
Natanson
- Não acredito, porque a sociedade
venezuelana vivenciou por décadas a democracia plena e próspera e portanto não
toleraria um sistema de partido único como o de Cuba.
E, além disso, a
Venezuela precisa continuar passando a imagen - pelo menos na aparência - de
que é uma democracia republicana, porque só assim consegue manter algumas
alianças internacionais importantes.
Me parece que por essa
razão foi criado este sistema híbrido, tão opaco e tão pouco explícito.
Os principais aliados
de Maduro como a Rússia, China, Cuba e Nicarágua não exigem que seja uma
democracia republicana, porque eles mesmos não são, mas isso pode ser feito por
outros países da América Latina e por setores empresariais.
·
Diante desse cenário
de incertezas, você vê um risco de fratura interna?
Natanson
- As Forças Armadas estão tão entranhadas no
governo que é muito difícil acreditar na possibilidade de uma ruptura vertical
dos militares.
Pode haver
dissidências - de fato existem mais de cem militares detidos por tentarem se
rebelar -, mas não há sinais de uma ruptura em larga escala no interior do
governo, porque na verdade todos estão implicados.
·
E como você vê as
reações da esquerda na América Latina?
Natanson - A esquerda na região está dividida, não sabe o que fazer
com esta criatura indecifrável que é o chavismo.
Existe uma esquerda
nostálgica que acredita que a Venezuela dá continuidade à etapa de Hugo Chávez
e que age como isso fosse acertado.
Essa é uma esquerda
mais emocional, que poderia ser descrita como irreflexiva, mas não pretendo
desqualificá-la. Posso entender que figuras como Evo Morales se sintam
agradecidos pelo chavismo.
Também existe o caso
de Cuba e da Nicarágua, que são países com regimes autoritários, que
possivelmente saibam o que aconteceu com as eleições, mas não se importam com o
caráter democrático e que precisam da Venezuela.
De outro lado, estão
os novos líderes da esquerda latinoamericana, como Gabriel Boric e Gustavo
Petro, que percebem que o que acontece na Venezuela é diferente dos primeiros
anos de governo Hugo Chávez.
E eu acredito que
Lula, Pepe Mujica e Andrés Manuel López Obrador acabaram por entender isso
depois de algumas idas e vindas.
·
Como você analisa as
declarações dadas pelo presidente do Chile?
Natanson - Boric é um dos novos líderes da esquerda latinoamericana.
Foi ele quem, antes de tudo isso, já dizia que se houver violação de direitos
humanos no Afganistão, na Arábia Saudita ou na Venezuela, todas são violações
de direitos humanos e ponto final.
Não é por acaso que
foi [a ex-presidente do Chile] Michelle Bachelet a autora do primeiro relatório
que documenta a violação de direitos humanos na Venezuela.
Também é interessante
ver o silêncio estrondoso de Lula e a cautela da abordagem de López Obrador.
(Nota da redação:
Nesta terça-feira (30/7), Lula se posicionou pela primeira vez sobre o
resultado da eleição venezuelana, em entrevista à TV Centro América. Ele cobrou
a divulgação das atas eleitorais: "É normal que tenha uma briga. Como
resolve essa briga? Apresenta a ata. Se a ata tiver dúvida entre a oposição e a
situação, a oposição entra com um recurso e vai esperar na Justiça o processo.
E vai ter uma decisão, que a gente tem que acatar.")
O Brasil enviou Celso
Amorim a Caracas, depois do ex-chanceler se reunir nos Estados Unidos com Jake
Sullivan (responsável pela Segurança Nacional no governo Joe Biden) e depois
que Maduro criticou Lula por ter criticados as ameaças do presidente da Venezuela
de que haveria um "banho de sangue no país", caso fosse derrotado nas
eleições.
·
Como você vê o papel
do Brasil?
Natanson
- Lula sempre foi muito pragmático. Me parece
que seu papel no processo eleitoral da Venezuela continua sendo construtivo.
Lula é importante para
a Venezuela porque, além de ser presidente do Brasil, ninguém da esquerda vai
acusar Lula de não ser de esquerda.
Lula vai fazer todo o
possível para que o processo venezuelano se desenvolva em paz e que se conheçam
os resultados.
·
A comunidade
internacional tem capacidade de intervir?
Natanson
- Atualmente, a capacidade do Brasil e dos
EUA de interferir na situação interna da Venezuela é muito limitada.
Se eles não
conseguiram intervir em 2017, nem através das sanções impostas pelo governo
Trump, com o Grupo de Lima, ou com o isolamento internacional quase que total a
que a Venezuela vem sendo submetida, atualmente, depois que a Venezuela
recuperou em parte sua capacidade de produção petrolífera, que o país se armou
e atualizou seu sistema de alianças com a China, Rússia, Turquia, Irã e Cuba,
não acredito que haja algo significativo.
Não estou dizendo que
não vá haver pressão e que isso não vai levar a nada, mas não acredito que a
pressão internacional possa alterar o processo venezuelano se não houver
vontade de Nicolás Maduro de fazer algo diferente do que está fazendo agora.
·
Com a vitória de
Maduro declarada pelo CNE e rechaçada pela oposição, que cenários existem no
curto prazo, na sua opinião?
Natanson
- Primeiro temos que esperar até que o
Conselho Nacional Eleitoral divulgue os resultados desagregados e depois temos
que esperar que a oposição tenha acesso às atas para demostrar que os
resultados desagregados não são aqueles que aparecem nas atas.
Essas duas coisas têm
que ocorrer.
Se isso não acontecer,
teremos um típico processo que tem ocorrido na Venezuela, que é uma situação em
que não se sabe o que aconteceu nem o que está acontecendo. É típico do
chavismo, jogar com a ambiguidade.
Desde que Maduro
assumiu o poder em 2013, esse recurso da ambiguidade virou uma estratégia para
se ganhar tempo. O que não fica claro é para que se faz isso. É tão somente
para se manter no poder?
Eu acho que essa
rseistência em não divulgar os resultados é parte dessa estratégia. Se eles
realmente distorceram os resultados, agora ficam à espera, conversam com Lula,
provavelmente vão negociar com os Estados Unidos e ficam de olho nas reações
internas.
O objetivo é tão
simplesmente se manter no poder, porque, para Maduro, o custo da saída é muito
alto por mais que tenha o controle da Assembleia, controle do Tribunal Superior
de Justiça, e o controle das Forças Armadas...é altíssimo.
Para mim, sempre
mantive essa ideia de que as coisas agora iriam ser diferentes. Como acreditar
que finalmente Maduro perderia as eleições, aceitaria a derrota e deixaria o
poder de maneira pacífica.
Temos que aguardar os
resultados.
¨ Venezuela anuncia rompimento das relações diplomáticas com o
Peru
As autoridades da
Venezuela decidiram romper nesta terça-feira (30) as relações diplomáticas com
o Peru, comunicou o ministro das Relações Exteriores venezuelano, Yván Gil.
"O governo da
República Bolivariana da Venezuela decidiu romper relações diplomáticas com a
República do Peru, com base no Artigo 45 da Convenção de Viena sobre Relações
Diplomáticas de 1961", anunciou o chanceler em sua conta oficial na rede social
X.
O ministro acrescentou
que as autoridades foram obrigadas a tomar a decisão "após as declarações
temerárias do chanceler peruano que desconhecem a vontade do povo
venezuelano" e a Constituição do país.
Mais cedo, o ministro
Javier González-Olaechea afirmou que Lima reconhece Edmundo González Urrutia,
candidato da oposição, como o presidente eleito da Venezuela após denunciar uma
fraude nas eleições realizadas no último domingo (28), quando Nicolás Maduro
foi reeleito para um terceiro mandato.
Além disso, o ministro
também anunciou que o governo do Peru trabalha com outros países da região para
tomar medidas após as eleições na Venezuela e confirmou a saída do embaixador
de Caracas.
Desde a última segunda
(29), várias partes da Venezuela tiveram registros de manifestações nas ruas em
rejeição aos resultados eleitorais de domingo. O governo qualificou os
incidentes como "atos terroristas" e de sabotagem.
Nas eleições, Maduro
obteve 51,2% dos votos, contra 44,2% conquistados por González, segundo
informou o Conselho Nacional Eleitoral. A oposição não reconheceu os resultados
e anunciou González como "presidente eleito".
Países como Argentina,
Chile, Costa Rica, Peru, Panamá, República Dominicana e Uruguai se recusaram a
reconhecer a reeleição de Maduro, o que já provocou o anúncio de Caracas da
retirada imediata do corpo diplomático das localidades.
Fonte: BBC News Mundo/Sputnik
Brasil
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