Governo bolsonarista de São Paulo mantém
site em defesa de ultraprocessados
LIGADO À SECRETARIA DE
AGRICULTURA e Abastecimento do governo de São Paulo, o Instituto de Tecnologia
de Alimentos (Ital) mantém um site para defender publicamente os chamados
“ultraprocessados” – comidas e bebidas industrializadas com aditivos e aromatizantes,
além de altos teores de gorduras, açúcar e sódio.
A página Alimentos
Industrializados foi lançada em agosto de 2023, em comemoração aos 60 anos do
Ital. De acordo com o próprio instituto, trata-se de “uma parceria
público-privada, que segue modelos internacionais de pesquisa, desenvolvimento
e inovação”. No pé do site, aparecem apenas as logomarcas de órgãos do governo
do estado de São Paulo.
Além da página, o
instituto lançou nos últimos quatro anos e meio ao menos 12 publicações que
supostamente “desmistificam” os impactos à saúde humana provocados por
ultraprocessados. Os estudos também atacam os argumentos de cientistas que
advogam a redução do consumo desses produtos.
De acordo com
pesquisas recentes, os ultraprocessados têm relação direta com desenvolvimento
de câncer, obesidade, diabetes, hipertensão e problemas cardíacos. Um artigo do
Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens/USP), da
Fiocruz e da Universidade Nacional do Chile concluiu que os ultraprocessados
causam a morte de 57 mil brasileiros por ano.
Os documentos
produzidos pelo Ital, no entanto, chamam os cientistas que questionam os
ultraprocessados de “ativistas” que “fazem suas críticas baseando-se em mitos
e, muitas vezes, em questões ideológicas”, afirma a publicação Alimentos
Industrializados – a importância para a sociedade brasileira, publicada em
2018.
“É nítido que existe
uma aproximação entre a indústria e o Ital”, afirma a nutricionista Vitória
Moraes, da organização ACT Promoção da Saúde. “Quando você tem o peso de um
instituto científico, aparentemente isento de conflito de interesses,
corroborando a sua narrativa, você legitima o seu ponto”, complementa.
Questionado pela
Repórter Brasil, o Ital não respondeu sobre as fontes de financiamento do site,
nem sobre o interesse do governo paulista em defender alimentos
ultraprocessados.
Em nota, o instituto
afirmou que visa a promover “a oferta sustentável de alimentos saudáveis e
seguros”. Ainda segundo o texto, o Ital atua nas áreas de “pesquisa,
desenvolvimento, inovação, assistência tecnológica, capacitação e difusão do
conhecimento técnico-científico para o agronegócio, em benefício do consumidor
e da sociedade”. Confira a íntegra da nota aqui.
• A ciência do Ital
Seção “Mito e Fatos”
do site traz lista de imagens que desinformam o público, ao exibir fotos de
alimentos in natura ou caseiros como se fossem produtos industrializados, diz
coordenador do Idec.
Em suas publicações,
o Ital chega a negar a existência do
conceito de “ultraprocessados”, adotando apenas o termo “alimentos
industrializados” para se referir a esses produtos.
O site “Alimentos
Industrializados” se divide entre “Ciência e Tecnologia”, “Benefícios”,
“Ingredientes”, “Produtos” e “Mitos e Fatos”. Esta última aba traz uma lista de
imagens que desinformam o público, ao exibir fotos de alimentos in natura ou
caseiros como se fossem produtos industrializados, avalia a nutricionista Laís
Amaral, coordenadora do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor
(Idec).
“As imagens mostram
uma baguete vendida na padaria, não um pão de forma [industrializado]. O bolo
não é um desses de pacote. A pizza não é congelada. Até as imagens são
contraditórias ao discurso”, afirma Amaral.
A página classifica
como “inverdades” algumas características que o consenso científico atribui aos
ultraprocessados. É o caso do excesso de açúcar, aditivos, gordura, sódio e
carboidratos, além da falta de nutrientes e de alimentos in natura.
Cada “mito” é
supostamente desmentido com uma pesquisa realizada pelo próprio Ital, em
parceria com a indústria de alimentos. As publicações são divulgadas apenas
pelo instituto e não em revistas científicas, que passam pelo crivo de
pesquisadores independentes – a bibliografia de referência menciona, em sua
maioria, estudos do próprio Ital.
Um dos estudos do Ital
avaliou rótulos de 210 bolos industrializados de 28 marcas diferentes. Como
resultado, constatou que a maioria conta com aditivos entre os ingredientes:
86,7% usam emulsificantes, espessantes ou estabilizantes; 91,4% têm aromatizantes;
e 58,1% colocam antiumectantes e umectantes. Porém, no site do Ital, são
pinçados apenas os dados favoráveis a esses produtos, destacando que “8,6% dos
produtos NÃO utilizam AROMAS/ AROMATIZANTES”.
“Estes aditivos foram
rigorosamente avaliados pelas autoridades de saúde brasileiras e
internacionais, e reconhecidos como seguros para o consumo humano quando
ingeridos dentro dos limites estabelecidos pela legislação”, diz a pesquisa.
Quem assina o
relatório com o Ital é a Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos,
Massas Alimentícias e Pães & Bolos Industrializados (Abimapi). A parceria
também se estende para as pesquisas sobre pães, biscoitos e massas – todas elas tentam “comprovar” a saudabilidade
dos alimentos.
A colaboração com
associações da indústria é regra nos estudos da Ital. A pesquisa de pizzas e
hambúrgueres recebeu o apoio da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos
(Abia). A de sorvetes é assinada também pela
Abis (Associação Brasileira das Indústrias e do Setor de Sorvetes). Já a de
sucos e outras bebidas não carbonatadas (sem gás) estampa o nome e o logo da
Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes de Bebidas não Alcoólicas
(Abir). A entidade conta com 100 associados, entre eles a Coca-Cola e a Pepsico
– o vice-presidente da Abir, Victor Bicca Neto, trabalha como relações
governamentais da Coca.
“A gente vê em
audiências públicas empresários usando estudos do Ital dizendo, por exemplo,
sobre os benefícios a longo prazo do processamento de alimentos”, diz Vitória
Moraes, da ACT. “Isso beneficia muito a indústria, porque vem com o peso de um
instituto público, que deveria se render aos interesses públicos, mas que
corrobora a narrativa deles”, acrescenta.
Segundo especialistas
consultados pela Repórter Brasil, existem diversos pontos que levam ao
questionamento dos resultados dos estudos. As principais são: escolher, sem
critérios claros, as marcas escolhidas na amostra, e, em casos de pesquisa de
opinião, formular perguntas que induzam o entrevistado a responder de forma
favorável aos produtos.
“A seleção das marcas
é uma questão muito importante, mas algo complexo de ser entendido pela
população em geral. É preciso entender quais informações foram avaliadas para
escolher aquela lista de marcas”, questiona a nutricionista Daniela Canella,
professora do Instituto de Nutrição da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Sem uma lista
aleatória, ou sem a transparência dos critérios de seleção, os pesquisadores
podem escolher, propositalmente, marcas que já tenham reduzido, por exemplo, o
uso de aditivos. E afetar o resultado favoravelmente à indústria.
• A contraofensiva dos ultraprocessados
A indústria levou
alguns golpes nos últimos 20 anos. O rancor pelo termo “ultraprocessado” tem
nome: Carlos Monteiro, coordenador científico do Nupens. Foi ele quem batizou,
em 2009, os alimentos repletos de aditivos, com muitos processamentos e poucos
ingredientes in natura, de “ultraprocessados”. Monteiro também criou a
classificação NOVA, que categoriza os alimentos de acordo com seu grau de
processamento.
Desde então, a NOVA
vem embasando centenas de artigos científicos e tem sido usada em políticas
públicas de ao menos seis outros países, como Canadá, Israel e Uruguai, fazendo
do brasileiro um dos pesquisadores mais respeitados e citados no mundo.
Com base nessa
classificação, o governo brasileiro publicou, em 2014, o Guia Alimentar para a
População Brasileira – um documento elaborado para guiar as políticas públicas
de nutrição e saúde. Alimentos in natura e pouco ou minimamente processados
ganharam prioridade, à revelia da indústria de ultraprocessados.
Em 2020, a Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou novas regras para a rotulagem
frontal dos produtos. Por causa disso, a indústria foi obrigada a adicionar
lupas com avisos sobre excesso de sal, açúcar e gorduras saturadas.
Em maio deste ano, o
governo Lula aprovou, por decreto, uma nova configuração de cesta básica, sem
ultraprocessados. A indústria, no entato, se movimentou para adicionar
margarina e requeijão. Já na reforma tributária, o setor também conseguiu
excluir os ultraprocessados do “imposto seletivo”, que aumenta a taxação de
produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. O pleito foi aprovado pela
Câmara dos Deputados. Apenas o setor de
bebidas açucaradas, como os refrigerantes, deve ser afetado pela reforma.
Fonte: Repórter Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário