quarta-feira, 26 de junho de 2024

Saúde ainda sem rumo no RS pós-enchentes

“É tudo bem pesado. Fiquei uma semana dentro do hospital trancada, não conseguia nem vir pra casa, andei de barquinho pela cidade alagada… Antes, eu sempre quis trabalhar no Médicos Sem Fronteiras, naquelas situações que vemos na TV de catástrofes, guerras. Mas acabei vivenciando essas coisas dentro das minhas fronteiras. Atravessei cidades de barco, tive de andar de trator, fazer horrores pra conseguir chegar aonde tinha que atender. Nos fins de semana eu tenho ido no quilombo, em comunidades da região metropolitana… A realidade é trágica, é uma reconstrução social cuja dimensão sobrepassa os nossos olhos, muito mais do que a gente imagina. É bem difícil”. Essa é a síntese que a médica e ex-secretária adjunta de saúde do RS, Rosângela Dornelles, faz ao Outra Saúde, numa entrevista que atualiza o situação ainda calamitosa do estado gaúcho em todos os níveis. Trata-se de situação de difícil assimilação para quem não vive na própria pele, mesmo diante de tantas imagens assombrosas trazidas pela TV, mídias sociais e relatos pessoais.

Para Rosângela, a fragmentação explica a ineficiência do estado até em questões que não estariam na alçada do sistema de saúde, como o cadastramento das famílias que receberão auxílio do governo federal. Dada sua quase incomparável capilarização territorial, o SUS e sua forma de organização poderiam ajudar as prefeituras a organizarem mais rapidamente a transferência da ajuda. “Pelo menos parte das cidades tem Agentes Comunitários de Saúde, de maneira que a saúde pode ser usada na organização de tais programas, porque é um setor que tem a permissão de entrar nas casas, de conhecer a realidade, serve como georreferência. Se os municípios utilizassem mais o próprio Estado, todo esse trabalho de atenção básica de produção de informações, teríamos as respostas mais rápidas também. Mas o modelo de terceirização fragmenta as relações”.

Para ela, a tarefa mais imediata é a criação de um Centro de Operações de Emergência, que consiga agir mais rapidamente diante de uma situação que deverá se repetir. E ficam reafirmados os princípios fundantes do SUS. “São vários desafios: fortalecer a atenção básica, sua conexão com a especializada, combater a terceirização, garantir espaço de controle social e criar instrumentos que garantam a transparência, com fortalecimento da rede de fiscalização do Ministério Público e Judiciário e torná-los mais proativos, fazer protocolos de colaboração, de informação, porque também somos distantes do Judiciário e suas ações. Ampliar consultas públicas e criar mecanismos de feedback em relação à própria utilização de tais espaços do Ministério Público”, listou.

<><> Leia a entrevista completa com Rosângela Dornelles.

•           Qual a situação da saúde pública e coletiva do Rio Grande do Sul, quase dois meses depois da catástrofe climática que se abateu sobre o estado, que segue a viver as sequelas das enchentes, inclusive com ameaça de retorno em várias cidades? Como está a estrutura física dos estabelecimentos de saúde?

O desastre ambiental de maio de 2024 só aprofundou uma crise sanitária que já vinha desde a época da pandemia, e antes mesmo com o desfinanciamento da saúde pública e do não atendimento às necessidades de reforço à estruturação do SUS, já apontadas há muitos anos. As chuvas trouxeram novamente à tona as vulnerabilidades do modelo de gestão adotado pelo estado e municípios afetados, com uma intensa terceirização da rede, e principalmente da atenção primária, onde realizamos a assistência mais imediata da população. Vivemos uma tragédia quase indescritível, uma situação onde cidades inteiras foram destruídas, um sentimento de falta de pertencimento, como se o território deixasse de existir de um momento para outro. Vemos milhares de pessoas perdendo as suas moradias, são tantas coisas perdidas que as prefeituras não estão dando conta de transportar. Vemos insegurança alimentar, crianças e adolescente sem poderem frequentar as escolas também destruídas. Isso traz aflição para um grande número de vítimas, são crescentes as demandas para atenção em saúde mental.

Do ponto de vista da saúde, faltam ações intersetoriais, que poderiam estar sendo produzidas numa proximidade de diálogo com os movimentos sociais, com as universidades e as próprias comunidades, superando muitos problemas que já vêm ao longo dos anos. Essa calamidade, essa emergência climática aumentou a exposição e vulnerabilidade das populações indígenas, quilombolas, LGBTQIA+, expondo as falhas acumuladas ao longo dos anos pela fragmentação na execução de políticas públicas. Há a contaminação das pessoas por todo pelo contato com o descarte que as águas e as enchentes produziram doenças respiratórios, problemas de vigilância sanitária e ambiental, a exemplo da leptospirose. É sensação de terra arrasada que temos ao olhar fotos e imagens das cidades. Sou de Eldorado do Sul, ao lado de Porto Alegre, uma cidade que ficou toda embaixo d’água, a população toda. Entrar lá é como viajar para uma daquelas cidades do antigo faroeste, daqueles filmes antigos, para onde as pessoas jamais voltaram depois de algum acontecimento. É um cenário de destruição e emergência sanitária. Do ponto de vista da saúde coletiva, urge reafirmar a intersetorialidade do SUS, mostrar que vivemos a ilustração dos chamados determinantes sociais na saúde. Devemos lutar para reestabelecer o mínimo de garantia, o direito à saúde é uma responsabilidade do Estado, entendido nas três esferas. Digo isso porque com a maior presença do governo federal, o estadual age como se não tivesse a responsabilidade de estruturar os seus serviços e reorganizar os municípios. O SUS é tripartite, além da gestão e do financiamento, tem o comando mesmo. Precisamos reafirmar sua estrutura federativa e universal.

•           E como avalia a ação do poder público na promoção e garantia da saúde em sua relação direta, nos territórios, com os usuários dos serviços de saúde, diante das infecções e assistência que o momento exige, num contexto onde as próprias estruturas físicas de saúde estão devastadas?

Para descrever isso preciso voltar à questão da terceirização, do modelo colocado nos últimos anos, que não dialoga com o território e fragmenta a implementação de ações mais efetivas, que garantam toda a assistência e sua rede. Vemos uma ação muito descoordenada em relação a todos os setores. E o SUS tem na sua estrutura a coordenação da vigilância como um todo, a proposta do georreferenciamento, das ações, no nosso caso não realizadas, de matriciamento, o que poderia contar com ajuda da Força Nacional do SUS, dos próprios servidores estaduais, da antiga Força Estadual do SUS, que o estado do RS tinha e desativou. Há uma desconexão e a saúde parece não ser responsabilidade do governo estadual. Sentimos que o estado só transmite informações básicas como clima, alertas, número de pessoas deslocadas ou desabrigadas. Precisamos de uma formulação e efetivação de ações de reconstrução, mais coordenadas, porque senão corremos o risco de não conseguir otimizar todo o potencial de investimento do governo federal e fazer frente às necessidades da calamidade no perfil de doenças que vão aparecer em decorrência dessa emergência climática.

Precisamos organizar um Centro de Operações de Emergência (COE) estadual, onde as pessoas possam ver ações e respostas mais coordenadas, com uma composição mais ampla do processo todo, não só um COE informativo, mas de produção de conteúdo, de proposta, de alteração. Precisamos de um diagnóstico mais real em relação aos cuidados de saúde também. Tivemos isso muito tardiamente em alguns setores do estado, dos municípios, mas parece que os municípios não conhecem as pessoas. Eles estão levando um tempão para fazer o cadastro das famílias para o auxílio de R$ 5.100 e de outros programas, porque eles não têm isso na gestão, eles não conhecem os munícipes, entende? Pelo menos parte das cidades têm Agentes Comunitários de Saúde, de maneira que a saúde pode ser usada na organização de tais programas, porque é um setor que tem a permissão de entrar nas casas, de conhecer a realidade, serve como georreferencial. Se os municípios utilizassem mais o próprio Estado e todo esse trabalho da atenção básica de na produção de informações, teríamos as respostas mais rápidas também. Mas o modelo de terceirização fragmenta as relações. Hoje tem um enfermeiro em uma unidade de saúde dentro de Porto Alegre, contratado por uma empresa, daqui a pouco tem um concursado, depois um de contrato temporário, que vai durar poucos meses… Assim, temos várias formas de contratações e isso não efetiva a gestão do cuidado integral.

•           É possível aproveitar esse momento de reconstrução para reorganizar o modelo de atenção primária e combater essa fragmentação aqui descrita?

O COE é um bom ponto de partida. E existe essa proposta já. Mas uma das questões mais importantes é o modelo de saúde que fortaleça o SUS, principalmente com a ênfase na integração da atenção primária com a atenção especializada. E podemos fazer de diversas maneiras, principalmente com o uso das tecnologias, porque estamos muito atrasados na integração dos processos de atendimento e cuidado das pessoas. Precisamos melhorar muito. Outra questão é investimento financeiro. Se não investir, neste momento, nos setores de uma forma bem diagnosticada, se continuarmos colocando recurso público em setores que são apenas prestadores de serviço e não fazem parte dessa reconstrução mais oficial do Estado na prestação de serviço público continuaremos promovendo a fragmentação. O recurso financeiro precisa ser investido principalmente em quem atende o SUS, nós não podemos continuar investindo valores financeiros pesados em lugares que acabam fazendo uso privado do recurso. Isso tem que ficar claro.

Outro tema importantíssimo é retomar o fortalecimento do controle social, principalmente na transparência do dinheiro, do recurso, dos recebimentos das verbas para reconstrução e a existência efetiva dos conselhos municipais e estadual, porque sabemos que o controle social é um projeto democrático, mas existe uma força de extrema direita que pode fragilizar o processo.

Precisamos voltar a debater orçamento, onde 20% é definido pelos parlamentares, enquanto em outros países é bem menos, nos Estados Unidos é 2,4%, por exemplo. Precisamos de controle social, clareza e transparência neste processo. Precisamos disponibilizar acessos unificados dos recursos, facilitar a fiscalização e acompanhamento. Eu não sei, por exemplo, todo o recurso que foi investido na rede hospitalar, na rede da atenção básica. Mesmo alguns dados oficiais não são muito claros e fáceis de ler. Quem não é da área econômica muitas vezes tem dificuldade de fazer tal avaliação. Portanto, são vários desafios: fortalecer a atenção básica, sua conexão com a especializada, combater a terceirização, garantir espaço de controle social e criar instrumentos que garantam a transparência, com fortalecimento da rede de fiscalização do Ministério Público e Judiciário e torná-los mais proativos, fazer protocolos de colaboração, de informação, porque também somos distantes do Judiciário e suas ações. Ampliar consultas públicas e criar mecanismos de feedback em relação à própria utilização de tais espaços do Ministério Público.

•           Como é essa intersecção entre o público e privado na saúde do estado? Por que parte das verbas federais pode se perder para o setor privado?

Aqui temos uma rede hospitalar que sozinha ocupa quase 80% de leitos do SUS, e ela também é prestadora de serviços para a rede privada. Temos de garantir que os investimentos sejam de fato aplicados no SUS, e evitar que o setor privado se estruture com dinheiro público sem ofertar ampliação de serviços para o sistema de saúde. Portanto, não é só dar dinheiro, mas também como usar. Senão, a gente dá dinheiro para ampliação de leitos e se amplia a oferta de atendimento somente no setor privado, como acontece no Brasil todo. Fora isso, não é só ampliar serviço, é participar da Rede SUS, dialogar, capacitar as pessoas para o atendimento mais humanizado, fazer com que as pessoas se insiram nas estruturas contratadas, façam parte não só na oferta de serviço, mas de toda a estruturação das redes de saúde. Por isso a participação do MP é importante, porque o estado no momento não dá conta e na verdade tampouco quer. Dá isenção e não investe nada.

•           A proximidade das eleições complica toda essa reconstrução e renovação da governança em saúde? Como aproveitar o momento favorável para avançar nesta discussão em meio a tamanha tragédia social?

Sim, é o momento de mostrar exatamente quem cuida das pessoas, quem tem programas políticos que visem melhorar o cuidado, propostas, rever as experiências de gestão, trazer transparência e mostrar as opções para as pessoas. Estamos num momento crucial para as pessoas novamente escolherem a vida ou o negacionismo, porque muitos partidos vão se aproveitar muito dessas políticas federais. Os prefeitos que estão no governo vão utilizar muito de todos esses recursos que estão entrando. Aqui na minha cidade mesmo já tem em caixa mais de R$ 6 milhões, imagina, um recurso não esperado, para usar na reconstrução da cidade. Certamente os administradores buscarão ganhos eleitorais. É momento crucial, de decisão e mudança para dentro do território a partir da catástrofe, redimensionar o papel da nossa decisão política e fortalecer um projeto democrático, garantir que as pessoas possam ter toda garantia das suas necessidades, principalmente na área da saúde. Porque o tempo de resposta hoje é gigante. Vimos, por exemplo, que a rede de voluntariado foi muito grande aqui, mas não substitui o papel do Estado. Isso ficou muito claro, as pessoas participam, mas não há garantia da continuidade, porque é o Estado o responsável pela oferta e efetivação das políticas, da estruturação do SUS. Tivemos uma tragédia que exige a construção de um projeto de futuro e a reafirmação do caráter ético da defesa da vida. Faz tempo que não falamos da função da política. O SUS tem um papel nessa estruturação e na garantia da integralidade dos direitos das pessoas, e a saúde sempre foi moeda de troca para depois da eleição. Quase nunca ela é um tema que decide a eleição. Espero que as pessoas deem-na mais importância na hora do voto e percebam o potencial que a saúde tem de transformar suas vidas. Para nós da saúde é muito claro que uma boa gestão municipal começa por uma boa gestão da saúde, pois é uma porta pra estruturar todas as políticas. É uma oportunidade de efetivar a política no território, participar dentro de uma comunidade, transversalizar toda a questão do planejamento, da assistência social, da moradia, enfim, os determinantes sociais e seu potencial estruturante.

•           Na pandemia uma grande ameaça, concretizada em alguns momentos, era a sobrecarga e consequente colapso dos serviços e profissionais de saúde. Existe isso agora no RS?

Acho que já estamos além da sobrecarga. Acho que já virou uma tragédia, porque no momento em que as pessoas não têm acesso a um tempo clinicamente aceitável de solução de um problema de saúde e é colocada numa fila de espera, mostra que os profissionais não conseguem resolver. Sobrecarga era o que havia antes da pandemia, nós já vínhamos sofrendo o processo de acúmulo de pessoas aguardando, principalmente atendimento especializado. Vivemos o caos em relação a toda a reestruturação das redes, a dificuldade de redimensionar tudo a partir de uma tragédia que destrói uma cidade… Quando destrói a unidade de saúde, quando destrói o pronto atendimento, as pessoas acabam perdendo a referência. Mas aí voltamos um pouco àquela questão de estar no território. Pra quem é médico de saúde da família, nós precisamos estar dentro da comunidade pra atender as pessoas, não precisamos só da estrutura da unidade de saúde, mas também da dimensão das necessidades das pessoas naquele momento onde o médico atende numa igreja ou numa sala de algum edifício, que em diversas cidades foi o que restou de espaço ocupável. O contexto atual é de perda das referências do sistema de saúde, de quem procurar, de identificar problemas e encaminhar soluções tanto na atenção básica quanto especializada. Se a pessoa tem sintomas mais fortes, vai num especialista. E se tem algum diagnóstico grave, quem vai dar assistência no meio disso tudo? Qual projeção de cenários temos agora? Tem a garantia de atendimento no tempo certo? A superlotação das emergências transparece, dá visibilidade, as UPAS viraram leitos praticamente. Nós estamos aqui com as UPAS cheias e lotadas de pacientes que deveriam estar já internados fazendo procedimentos. Estamos no caos em termos de atendimento. A tragédia só agravou a sobrecarga e as pessoas vão ficando em segundo plano.

•           Pesquisas também mostram que praticamente 100% da população tem algum problema relacionado à saúde mental.

Depressão, ansiedade, pânico. Eu tive pessoas que chegaram pra consulta e me disseram assim: “doutora, eu tô muito nervosa. Eu não fui afetada pela enchente, mas me sinto culpada por estar morando bem, ter estrutura e ver as outras pessoas nessa situação. Eu ajudei tudo que eu pude, doei lençol, comida, dinheiro”. A pessoa chega de madrugada num posto de atendimento. Outras estão em situação parecida, mas não percebem. Hoje, a nossa “pandemia” é de saúde mental. Fora todo esse desastre da falta de assistência para as necessidades orgânicas, isto é, as doenças respiratórias, infectocontagiosas, a falta de consciência, a vacinação para doenças que se destacam nesse momento, há essa epidemia obscura de saúde mental, que sobrecarrega os serviços de saúde, porque, olhando bem, vemos que muitas pessoas vão se consultar por ansiedade e a sobrecarrega leva os trabalhadores de saúde à mesma condição. É um ciclo, uma cadeia que se relaciona. É bem complexo, penso que passamos da fase da sobrecarga e entramos na do caos. Há uma perda do controle sobre as filas por procedimentos diversos, porque tem filas de tudo que é jeito. Tem fila que está no sistema, tem uma fila que talvez seja interna do hospital pra fazer uma cirurgia, pode ter uma fila dentro da atenção básica pra fazer procedimento simples… Temos várias filas criadas dentro do sistema de saúde e nem sempre há clareza disso, o que fragmenta todo o sistema, algo agravado pela terceirização e um SUS formado por pessoas que não são contínuas no serviço. Hoje um profissional é capacitado, amanhã outro, ficam seis meses para entender como o sistema funciona, mas logo saem e assim por diante.

Minha cidade tem um posto de saúde que até hoje não foi ocupado. Foi feito com dinheiro de emenda parlamentar, mas até agora não foi ocupado, a prefeitura não terminou de fazer as adequações. Quem fiscaliza? Quem conversa com essas pessoas? Enquanto isso, a população está sendo mal atendida num outro local, frágil, improvisado. É um cotidiano que exige um conhecimento grande do sofrimento social, precisamos fazer os caminhos dos usuários para nos aproximar. Precisamos ver o que as pessoas passam quando pensam em consultar, se elas são chamadas nas suas casas, se elas realmente conseguem acessar o exame, se elas conseguem fazer tudo. Nunca mais falamos disso. E aí voltamos ao transtorno todo da necropolítica, promovida pelo negacionismo durante a pandemia, que só agravou as filas. A terceirização só distanciou mais ainda a relação, que poderia ser fortalecida, dos profissionais com a comunidade local.

•           Como estão as questões materiais mais práticas, como insumos, itens básicos para atendimentos, equipagem dos locais de saúde?

Falta um diagnóstico claro das reais necessidades, uma das falhas que colocamos de falta de transparência. Temos a experiência empírica, falta teste, acesso à medicação básica. O Estado vai dizer “é obrigação do município comprar”, mas não temos como dimensionar, porque não há um diagnóstico real, um número de atingidos preciso. Por exemplo, no meu município o último dado oficial de pessoas atingidas é de 14 de maio. Sabemos pouca coisa, como o rio encher de novo, famílias sendo retiradas, mas não há uma noção de quantas são as famílias, quantos idosos, quantos quadros respiratórios, se foram atendidos… Dessa forma, não tem como dizer se falta material ou não, deve faltar, acredito que sim, mas tem a questão da logística, um monte de dificuldade nos lugares, a destruição física de coisas como as câmaras frias que guardam vacinas e remédios, a estrutura da rede dos postos de saúde, tudo isso teve muito problema de logística e infraestrutura.

•           Como os gestores do SUS, em qualquer parte do Brasil, devem olhar essa tragédia?

Essa tragédia das enchentes deve ter como ponto de partida o fortalecimento do SUS. Isso passa pela garantia do próprio piso federal de saúde, debate em andamento, porque sem essa discussão não vamos reafirmar a ideia de que o sistema de saúde atenda todos, com um controle social forte, uma participação mais ativa da sociedade. Devemos reafirmar a defesa da vida e a função social do sistema de saúde. Precisamos realizar tarefas primordiais, construir o COE, contar com a participação do Ministério Público. A tarefa essencial é fazer do SUS modelo de defesa da vida, garantir sua universalidade de acesso e do respeito à diversidade em toda sua construção e gestão.

Precisamos ter diagnóstico. Hoje tenho dúvidas se os governantes do estado sabem qual é a quantidade necessária de insumos de hemodiálise e seu custo. E isso poderia estar sendo transportado em algum projeto, como já tivemos aqui no Estado, de criar alternativas pra diminuir o custo, ampliar o acesso a seus tratamentos, o que já dialoga com o projeto do Complexo Econômico Industrial da Saúde. Criar um sistema universal é garantir sua diversidade, garantir soberania sanitária e entender o SUS como um grande impulsionador do desenvolvimento socioeconômico.

Precisamos fazer a discussão chegar no Conselho Nacional de Saúde, no Congresso, porque essas coisas vão acontecer de novo, aqui e em outros lugares. Precisamos falar de formas antecipadas de solução. Aqui, climaticamente temos dia com relâmpago, logo em seguida uma chuva torrencial e acima da linha do horizonte o sol. Eu posso enxergar tudo isso no mesmo momento, portanto, imagine o nível de mudança climática já em andamento, como vemos em outros países também.

É tudo bem pesado. Fiquei uma semana dentro do hospital trancada, não conseguia nem vir pra casa, andei de barco pela cidade alagada… Antes, eu sempre quis trabalhar no Médicos Sem Fronteiras, naquelas situações que vemos na TV de catástrofes, guerras. Mas acabei vivenciando essas coisas dentro das minhas fronteiras. Atravessei de barco, tive que andar de trator, fazer horrores pra conseguir chegar aonde tinha que atender. Nos fins de semana eu tenho ido no quilombo, em comunidades da região metropolitana, que eu conheço bastante aqui, até por ter sido secretária adjunta e coordenadora regional de saúde da Secretaria Estadual de Saúde. A gente quase ficou sem oxigênio, tinha estoque pra 24 horas, transportamos os pacientes até de helicóptero, fiquei sete dias em contenção alimentar, presa dentro do hospital, de onde não podia sair nos primeiros dias de enchente… A realidade é tragédia, é uma reconstrução social cuja dimensão sobrepassa os nossos olhos, muito mais do que a gente imagina. É bem difícil.

 

Fonte: Por Gabriel Brito, em Outra Saúde

 

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