terça-feira, 25 de junho de 2024

Ion Andrade: ‘O que a volta da esquerda às ruas pode ensinar’

Mobilizações mostraram que a agenda por direitos e civilidade pode derrotar a ultradireita. Expor os retrocessos e apostar na capilaridade política é via para reconstruir a democracia. Próxima tarefa: barrar a PEC do trabalho infantil e o ataque ao piso da Saúde e Educação

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Como na lenda, a luz do dia tem poder de incinerar vampiros.

A tentativa do empresário Elon Musk de desmoralizar as instituições democráticas do Brasil, a PEC do estuprador, ou a tentativa de privatizar as praias pela extrema direita e a ameaça ao piso da Saúde e da Educação pela área econômica do governo… se soldaram por uma derrota a priori marcada pelo recuo dos seus insignes idealizadores mostrando que a sociedade pensa e age por cabeça própria, para além da vontade ou guia de influenciadores digitais, da extrema direita, dos falso moralistas hipócritas e mesmo de governos.

Isso significa que as forças políticas que conseguirem entender e interpretar essa agenda latente da sociedade (um cavalo selado) e conceber a partir dela uma agenda política alinhada a esses princípios, terão imensa vantagem no plano (agora) das eleições municipais que se avizinham.

O campo democrático (se conseguir converter essa agenda semiconsciente e latente das maiorias em agenda consciente e manifesta) é quem está melhor posicionado para capitalizar essa verdadeira onda democratizante e civilizatória afinal, excluídos os escorregões ou traições neoliberais, essa agenda é supostamente a sua própria…

O maior problema do campo democrático e da esquerda em particular (um esquerdismo) é sucumbir a uma agenda voluntarista, muitas vezes de aparência ideológica (o discurso radicalizado) cuja meta parece ser “fazer a cabeça do povo” com o intuito muito nobre de politizá-lo para o enfrentamento ao fascismo, o que desconsidera o fato de que esse povo é, de fato, quem tem sustentado e com resiliência os melhores índices de aprovação do governo, sendo a maioria nucleada por ele quem incinerou a PEC do estupro. Resta, portanto, saber quem está e quem não está politizado e qual é a agenda da politização no mundo real da garantia da democracia hoje!

Como a PEC do estuprador fartamente demonstrou, portanto, a agenda que enfrenta e vai derrotar o fascismo está além dos limites habituais entre a esquerda e a direita e encontra unidade, não nesse discurso ideológico falsamente radicalizado e típico da classe média de esquerda, que lhe garante, tão somente, votos minguados para os legislativos tornando ”nos” minoritários ao ponto de sermos incapazes até mesmo de barrar PECs ( dos votos!).

A agenda que enfrenta e vai derrotar o fascismo é a da garantia de direitos e a da construção ativa da civilidade e do bem estar social pelos Executivos comandados pelo campo democrático. É isso que consubstancia a agenda solar e amplamente consensual perante a qual a extrema direita é incinerada em praça pública como os vampiros dos filmes de horror.

Noutras palavras, se a sociedade entender claramente que a agenda da extrema direita é a da incivilidade, da perda de direitos e do mal-estar social dificilmente essa força poderá disputar o topo da política.

Além da hipnose perpétua do discurso falsamente radical, (pois esse é o discurso classista da classe média de esquerda) nada pode causar mais dano ao campo democrático e à esquerda em particular do que a ameaça a direitos como os da saúde e da educação. Tal atitude desacredita o governo e sinaliza para as maiorias mais despertas (as que defendem direitos) uma verdadeira orfandade da sua representação civilizatória no Estado.

Por outro lado, devemos constatar que quem está emparedada é a extrema direita que, ao se exprimir claramente e sem fake news, produz rejeição e asco da sociedade como um todo, muito além da tradicional clivagem direita/esquerda. Duas ferramentas são fundamentais para ela em sua tentativa inglória de manter seu capital político, a mentira que manipula uma espécie de boa fé pública (ou a burrice atávica de tantos) e a baixa publicidade e transparência do que faz e propõe, pois tem que agir discretamente e às sombras em seus propósitos na esperança de que os seus projetos legislativos não sejam conhecidos de todos.

É exemplo disso, pois está na contramão do que a sociedade claramente deseja, o projeto que volta a permitir o trabalho infantil e que tramita na CCJ. Esse projeto ainda não produziu o mesmo escárnio que a PEC do estuprador pois não galgou visibilidade suficiente sobretudo na gente pobre que é a sua principal vítima.

Então, o que de mais importante há hoje a ser feito para o enfrentamento da extrema direita por parte dos Poderes Executivos do campo democrático (União, estados e municípios) é em primeiro lugar trabalhar para materializar a agenda civilizatória do bem estar social na capilaridade do local onde vivem as pessoas. Para os Legislativos e para a sociedade civil a tarefa, e não é fácil, é a de expor quem a extrema direita de fato é para que a sua combustão espontânea se dê aos olhos de todos.

A PEC do estuprador mostrou que há um paiol seco para receber as propostas medievais da extrema direita.

Isso significa que o que visivelmente politiza a sociedade (e ao que parece os níveis de politização são altos para o que a história nos exige) deve ser – e de forma sistemática e maciça – a ação dos governos do campo democrático no sentido de assegurar direitos e de materializar a civilidade e o bem estar social no Brasil.

As melhorias dos níveis de aprovação de Lula se prendem, portanto, (e isso é politização) à colheita do que, de forma assistemática, o governo vem plantando. Mas essa melhoria da avaliação é, pelo menos ainda, incipiente justamente pelo fato de que as (muitas) iniciativas não estão amarradas a um projeto claramente inteligível de construção do bem estar social com participação popular.

Por isso, a tentativa de Elon Musk de achincalhar o Brasil, a do Ministério da Fazenda de testar a força dos movimentos da Saúde e da Educação na defesa do piso constitucional (nunca dantes ameaçados) ou as PEC da privatização das praias e a do estuprador protagonizadas pela extrema direita demonstraram que é imprescindível para as lutas:

(a) a visibilidade pública do dado projeto de retrocesso (que emerge na geleia geral dentro e fora do governo) e

(b) uma prontidão de emboscada pelas forças democráticas dos projetos de retrocesso de cada momento, exatamente como se deu no caso da PEC do estuprador, prontidão essencialmente protagonizada pelos movimentos de mulheres; sempre que a ocasião exigir.

Na quadra atual, o que temos que responder é como daremos a necessária visibilidade à PEC do trabalho infantil para que ela também sofra a mesma incineração pública que sofreu a PEC do estuprador.

Se conseguirmos converter a vontade latente semiconsciente da sociedade em vontade manifesta e consciente essa luta será demolidora para os fascistas e terá o condão de produzir um inabalável consenso em favor da democracia intimidando até mesmo os sonsos que agem no governo.

 

¨      Sim! É possível vencer a hipocrisia moral. Por Fausto Salvadori

Para quem luta pelos direitos humanos, perder é comum. Para não enlouquecer, a gente faz o Darcy Ribeiro e diz que nossas derrotas são como vitórias, porque de fato odiaria estar no lugar da gente horrível que costuma nos vencer. Mas, porra, precisamos de vitórias. Até porque as derrotas em nosso campo significam sofrimento demais para populações inteiras.

Por isso, vamos celebrar a vitória que a mobilização das mulheres conquistou nos últimos dias sobre o Projeto de Lei 1904/24, que equipara o aborto ao crime de homicídio e proíbe qualquer possibilidade de aborto legal após 22 semanas de gestão, recebendo por isso os merecidos apelidos de PL do Estupro ou da Gravidez Infantil. A mobilização nas redes e nas ruas já fez o centrão tirar o pé do projeto e levou diversos nomes do governo Lula a se manifestarem a favor dos direitos humanos dentro de um assunto controverso, o que infelizmente não é comum. Foi uma vitória pequena, parcial e provisória, mas ainda assim uma vitória. É feia, mas é uma flor. E precisamos celebrar.

Precisamos celebrar porque foi a primeira vez em muito tempo que uma bandeira dos direitos humanos conseguiu fazer frente à extrema-direita dentro do que o jornalismo hegemônico (não o da Ponte!) chama de “pauta de costumes”. Um nome péssimo, porque passa a impressão de que se trata de algo menor, como se estivesse em questão o uso de ketchup na pizza ou se o feijão deve ser colocado em cima ou ao lado do arroz, quando diz respeito a direitos fundamentais.

Pois é nas pautas de direitos que a gente tem tomado um 7 a 1 atrás do outro, porque o rolo compressor da extrema-direita se mostra tão devastador que muitos políticos que deveriam estar ao nosso lado evitam confrontá-la em nome da própria sobrevivência política. Rifar os direitos humanos se tornou uma prática recorrente do governo Lula e de muitos petistas, em questões tão diferentes como a memória do golpe de 1964, a Lei Orgânica das Polícias Militares ou o fim das saídas temporárias de presos, que teve voto favorável até de Maria do Rosário, deputada tradicionalmente alinhada aos direitos humanos, mas que preferiu jogar sua trajetória fora para não prejudicar a candidatura à prefeitura de Porto Alegre. 

Essa postura supostamente “realista” do governo recebe o apoio de um campo do petismo, minoritário porém barulhento, que passou a desprezar tudo o que envolva as lutas pelos direitos de mulheres, negros, indígenas e população LGBTQIAP+, chamando a tudo pejorativamente de “pautas identitárias” e dizendo que o governo tem mais é que ignorá-las, porque só serviriam para fortalecer o poder da extrema-direita. Além de culpar as vítimas pela existência de seus algozes, essas correntes desqualificam essas bandeiras como divisivas ou irrelevantes, agindo como se o racismo, o machismo ou a LGBTfobia não existissem no Brasil e tivessem sido inventados pela Fundação Ford ou pela Open Society.

Seja por convicção ou estratégia, quem defende que o governo do PT deveria abaixar a cabeça diante da extrema-direita nas pautas de direitos fundamentais (ou de “costumes”, ou “identitárias”, como esse povo fala) argumenta que é impossível vencê-la nessa área. Que a esquerda só teria a perder com esse enfrentamento e que Lula teria mais é que dar uma rasteira em todos os grupos que simbolicamente estiveram ao seu lado na subida da rampa.

É um argumento que eu não aceitaria mesmo que fosse verdadeiro. Se for para vencer passando por cima dos negros, das mulheres, dos indígenas e da população LGBTQIAP+, aí eu volto ao Darcy Ribeiro e digo que é melhor perder do que estar ao lado dos vencedores, de uma esquerda que já virou extrema-direita há muito tempo.

Mas a escolha não precisa ser entre perder ou vender a própria alma para vencer. O que a mobilização dos últimos dias demonstrou, da forma como conseguiu acuar e calar os defensores da criminalização da escolha das mulheres, é que a extrema-direita não é invencível como pensam e que pode haver espaço para combatê-la mesmo nos temas em que parece levar vantagem.

Num governo de compromisso como o atual, precisamos mais do que nunca de movimentos sociais fazendo barulho nas ruas e nas redes, de trabalhadores fazendo greve, e de jornalismo críticos, como a Ponte, apontando sempre que o governo vacilar ou nos trair. A Ponte defendeu o voto em Lula em 2022, mas sempre deixamos claro que não deixaríamos nossa visão crítica de lado. “Não precisamos de puxa-saco”, disse Lula. Pena que muitos se esqueçam disso, incluindo aí o próprio Luiz Inácio.

Então, se a semana que passou fosse um episódio de He-Man, ou da She-Ra, a gente poderia encerrar com um dos dois primos dizendo: 

“Olá, crianças, no episódio desta semana aprendemos que a extrema-direita não é invencível e pode, sim, ser enfrentada e até vencida, inclusive nos temas de direitos humanos. Não se esqueçam disso. E lembrem-se: pauta de costumes de cu é rola. São pautas de direitos. E é tudo pelo que vale a pena lutar.”

 

Fonte: Outras Palavras/Ponte Jornalismo

 

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