A luta
contra a opressão de casta pode unir os trabalhadores indianos
O estado
indiano de Punjab, localizado na fronteira com o Paquistão, no noroeste do
país, tem uma população de vinte e sete milhões, a maioria da qual é Sikh. Nos
últimos tempos, Punjab deu origem a um importante movimento que procura
organizar os Dalits, que constituem a parcela mais pobre e oprimida da porção
rural do estado.
Mais
de dois terços da população da Índia ainda vive no campo e 45% da força de
trabalho está empregada na agricultura. Um olhar mais atento ao movimento no
Punjab pode, assim, lançar luz sobre algumas das questões mais importantes para
a política e a sociedade indianas, tais como a relação entre classe e casta,
até que ponto a guinada neoliberal da Índia ao longo das últimas três décadas
transformou suas estruturas sociais e o potencial de mobilização de grupos
oprimidos e explorados, como os Dalits.
·
Terra revolta
Em
2008, Bahal, Amarjit e alguns outros jovens Dalit formaram o Sindicato
Krantikari Pendu Mazdoor (Sindicato Revolucionário dos Trabalhadores Rurais).
Amarjit trabalhava para a AP Solvex na cidade vizinha de Dhuri. Quando criança,
ele foi siri (uma forma de trabalhador em regime de servidão)
para uma família da casta agrícola dominante Jatt por dez anos.
Ele
afirma que sua vida como siri foi semelhante à escravidão:
“Recebíamos chapatis estragados e leite com água para se alimentar, tínhamos
utensílios separados. Eu trabalhava desde cedo, até tarde da noite. Fui tratado
como um bezerro inútil.” Na agricultura moderna e mecanizada da Índia, os
agricultores consideram os bezerros machos inúteis e os mantém com fome, mal
lhes permitindo serem amamentados.
Quando
o arrendamento anual de terras estava em andamento, alguns Dalits locais
abordaram Bahal, Amarjit e seus camaradas. Conseguiram interromper uma oferta
por procuração que um Dalit fazia em nome de um agricultor Jatt. A
administração local, dominada por membros das castas superiores, não queria que
as terras fossem para os Dalits, o que limitou várias ofertas. Mas a
organização dos trabalhadores perseverou e acabou assumindo o controle dos nove
acres de terra.
Bahal
pertencia a uma organização estudantil de esquerda em sua faculdade. Ele
conhecia as experiências de coletivização chinesa e soviética e tinha uma
imagem otimista delas após ler obras literárias traduzidas, como Virgin
Soil Upturned (lançado no Brasil como “Terra e Sangue” pela Editora
Vitória na década de 1950), de Mikhail Sholokhov, e The Hurricane, de
Chou Li-Po.
Quando
ele e seus camaradas começaram a cultivar comunitariamente no terreno que
haviam adquirido, o chamaram de sanjha khet, em homenagem à
frase usada para fazenda coletiva na tradução em punjabi do romance de
Sholokhov. Eles expunham publicamente as receitas e despesas nos muros da
aldeia e realizavam assembleias gerais regularmente.
·
Mobilização Dalit
Embora
cerca de 250 famílias Dalit tenham aderido ao arrendamento da terra, apenas
noventa e quatro delas possuíam os fundos necessários. Essas famílias possuíam
gado e queriam uma parte do sorgo cultivado e de outras hortaliças para
forragem. O gado sempre foi importante para elas, que dependem do leite para se
alimentar. Bahal e seus camaradas também fornecem auxílio para os Dalits
sem-terra em tempos de dificuldades.
Na
ausência de terras comuns, as mulheres Dalit costumavam ir até aos limites das
terras dos Jatts para colher hortaliças duas vezes por dia, onde enfrentavam
regularmente abusos e assédio sexual por parte dos proprietários. Devido a esta
experiência, as mulheres superaram os homens numericamente no movimento.
Inspirado
por este exemplo, um grupo maoista formou o Comitê Zameen Prapati Sangharsh
(ZPSC), exigindo o arrendamento exclusivo de terras para os Dalits em 2014. O
ZPSC tem liderado um notável e inédito movimento baseado em castas.
Cada
aldeia tem algumas terras comuns, embora a quantidade varie entre elas. Um
terço dessas terras é reservado para os Dalits arrendarem anualmente. No
passado, Jatts costumava controlar estas terras sob o nome de licitantes Dalit,
por procuração. O ZPSC organizou os Dalits para arrendar terras como uma
comunidade e impulsionou a agricultura cooperativa.
Sem
concorrentes, eles poderiam manter o valor de arrendamento o mais baixo
possível. A quantidade de terra varia de apenas alguns acres a mais de cem. Nos
últimos dez anos, este movimento se espalhou por mais de 120 aldeias.
À
primeira vista, isto parece um movimento de mulheres Dalit que demandam
respeito e retornos econômicos do que colhem da terra. Mas também é muito mais
do que isso. O movimento é uma forma de afirmação das castas inferiores contra
a dominação Jatt. Isso desencadeou uma reação brutal e violenta dos Jatts e da
administração estatal.
·
Casta e classe
A compreensão
orientalista de casta apresenta-a como tendo origem na religião hindu, com a
ideologia do bramanismo mantendo a hierarquia social. Esta compreensão
metafísica do fenômeno da casta domina o discurso da política identitária nas
universidades da Índia.
No
entanto, o padrão das relações de castas no estado de Punjab, dominado pelos
Sikh, desafia este quadro explicativo. Cerca de 58% da população do estado é
Sikh, com uma proporção muito maior nas áreas rurais, que constituem o crisol
da opressão baseada nas castas.
Punjab
também tem a maior proporção de Dalits de qualquer estado indiano: eles
representam quase um terço da população, mas possuem menos de 2% das terras
agrícolas. Mais uma vez, a proporção de Dalit é maior nas aldeias, onde dominam
os membros da casta Jatt.
O
Sikhismo é uma religião comparativamente nova, baseada no princípio da
igualdade entre as castas. No entanto, a realidade material do controle da
terra tornou esta filosofia religiosa ineficaz como movimento emancipatório,
resultando na prevalência da opressão e exploração de castas.
No
passado, essas relações baseavam-se no jajmani. Ele era um sistema
de ocupações hierárquicas de castas baseado na noção de “reciprocidade”. Na
economia da aldeia, a terra era fundamental para a produção. Jatts possuíam as
terras e empregavam membros de outras castas, como os julahe (tecelões),
os lohar (ferreiros) ou os ghumar (cerâmicos),
oferecendo-lhes em troca uma pequena quantidade de grãos.
Neste
sistema, os Dalits realizavam o chamado “trabalho sujo” de remoção de animais
mortos, produção de couro e coleta de lixo. Sua principal ocupação, porém, era
a do trabalho agrícola. As relações entre proprietários de terras e
trabalhadores eram altamente opressivas e exploradoras.
A
estrutura de castas que o sistema jajmani produziu e
reproduziu baseava-se no poder econômico e social da casta Jatt. Mas a economia
da aldeia e o sistema jajmani se desintegraram na sequência da
Revolução Verde da década de 1970 e da subsequente guinada da Índia para
políticas neoliberais nos anos 90.
·
Depois da revolução verde
Durante
a década de 1970, o estado indiano introduziu variedades de cultivo híbridas e
fertilizantes, combinados com a utilização de novas máquinas, numa tentativa de
resolver o problema da deficiência alimentar nacional. Punjab esteve no centro
dessas mudanças.
Nos
últimos cinquenta anos, o emprego de tratores e ceifeiras-debulhadoras, bem
como de herbicidas, reduziu drasticamente o número de dias de trabalho
necessários na agricultura, expulsando os trabalhadores Dalit. De acordo com
dados recentes, do total da mão-de-obra rural, cerca de 30% se dedicam à
agricultura apenas durante curtos períodos do ano, enfrentando o desemprego no
restante do tempo ou dependendo do pequeno comércio e de outras formas de
trabalho assalariado.
O
fenômeno do trabalhador em regime permanente (siri), que recebia um
pequeno rendimento no final do ano, diminuiu de quase 36% de toda a força de
trabalho em 1987-88 para pouco mais de 1% em 2018-19. Os siris eram
altamente explorados, sem jornadas com quantidade fixa de horas ou qualquer
tipo de trabalho definido. Seus níveis de remuneração eram muito baixos, pois
normalmente tinham de pagar dívidas contraídas com taxas de juro onerosas aos
Jatts. Isso muitas vezes os prendeu em um ciclo de dívida, forçando-os a
trabalhar como siris durante toda a vida.
A
maioria dos Dalits trabalha agora como trabalhadores assalariados na
construção, na indústria transformadora ou no setor dos serviços. Eles tendem a
se dissociar da economia da aldeia e a trabalhar em vilas e cidades próximas.
Por outro lado, membros das castas médias e baixas dos estados indianos mais
pobres migram agora para o Punjab para realizar o trabalho agrícola que os
Dalits costumavam fazer.
Embora
a Revolução Verde tenha inicialmente aumentado o rendimento dos agricultores
Jatt, com o advento da era neoliberal, o Estado começou a limitar o apoio que
tinha anteriormente fornecido aos agricultores e estes viram-se sujeitos à
exploração por empresas multinacionais. Entre 1991 e 2000, de um total de um
milhão de famílias de produtores rurais, duzentos mil agricultores pequenos e
marginalizados abandonaram a agricultura, muitos dos quais se juntaram aos
Dalits nas fileiras dos trabalhadores assalariados.
No
outro extremo da escala, registrou-se também um declínio no número de grandes
agricultores e da quantidade de terras que possuem. Em toda a Índia, apenas as
famílias rurais que possuem pelo menos dez acres de terra ganham mais do que
gastam, e a grande maioria — 96% — das famílias rurais fica abaixo deste
patamar.
A
disparidade entre receitas e despesas para os Jatts gerou dívidas e
dificuldades, culminando eventualmente numa onda de suicídios. Um grande número
de Jatts e Dalits formam agora o que o sociólogo Henry Bernstein chama de
“classes de trabalho” – trabalhadores que ganham a vida através de uma
combinação de pequena produção de mercadorias, comércio em pequena escala e
trabalho assalariado. Embora isto possa sugerir que existe uma desconexão
crescente entre casta e poder social, essa impressão é errônea.
·
Uma nova classe dominante
Uma
nova classe dominante regional emergiu no processo, à medida que os ricos
agricultores Jatts colheram os benefícios da Revolução Verde. Eles também
tinham acesso a empréstimos, venda de insumos agrícolas e outros negócios fora
da agricultura. Esta classe controla firmemente os recursos das aldeias de
várias formas, incluindo santuários religiosos, panchayats (conselhos
de aldeia), instituições de assistência social, organizações de agricultores,
partidos políticos e órgãos da administração estatal.
O
Comitê Shiromani Gurdwara Parbandhak (SGPC), por exemplo, é um órgão religioso
Sikh que os críticos internos acusaram de ser dominado por Jatts. Ele controla
os santuários Sikh em Punjab, Haryana e o território de Chandigarh. A prática
do boicote social é aplicada através de santuários Sikh ao nível das aldeias,
que são dominados por esta classe de agricultores ricos.
Normalmente,
quando os Dalits exigem melhores salários durante o período de trabalho
intensivo na cultura de arroz, que ainda depende do cultivo manual, a
comunidade Jatt os exclui de qualquer tipo de transação econômica, quer isso
signifique vender alimentos ou leite, pagar salários, ou receber benefícios
sociais, que são distribuídos pelos conselhos das aldeias. Os Jatts mobilizam
todas as instituições de poder da aldeia para fazer este boicote social
funcionar.
Os
Jatts dominam os conselhos das aldeias. Mesmo quando a posição de chefe é
reservada aos Dalits, a pessoa realmente eleita é alguém fiel à classe dos
agricultores ricos. Na maioria das aldeias, os membros Dalits do conselho não
podem se sentar na frente dos membros da casta superior. As instituições de
assistência social das cooperativas das aldeias estão sob controle Jatt,
incluindo os recursos do governo para emprestar dinheiro aos Dalits pobres.
Recentemente, a ZPSC tentou desafiar esse domínio sobre essas cooperativas, mas
sem sucesso.
Os
Jatts controlam várias grandes organizações de agricultores. Contudo, as
organizações de agricultores de esquerda são mais fortes e numerosas,
oferecendo apoio aos Dalits quando são vítimas de injustiças. Em algumas
aldeias, as filiais locais das organizações de agricultores de esquerda
impuseram o boicote social, mas, infelizmente, as instituições estatais tomaram
conhecimento disso e expulsaram os membros responsáveis.
Através
do controle sobre estas diversas instituições de poder político, social e
econômico, os Jatts ricos exercem sua autoridade sobre a política eleitoral e
todos os principais partidos. Por seu lado, os partidos de esquerda que aderem
à ideologia maoista veem a democracia liberal como uma farsa e evitam
participar nas eleições, acreditando que isso os converteria de revolucionários
em reformistas.
Os
pequenos agricultores também têm sido os perpetradores da discriminação, embora
muitos partilhem uma posição de classe com os Dalits quando trabalham ao lado
deles em pequenas indústrias e no setor de serviços, ou como funcionários do
Estado. Pode-se entender estes boicotes sociais e injustiças como a reação dos
agricultores ricos e dos pequenos agricultores recentemente empobrecidos, que
procuram manter o poder das castas frente à afirmação dos Dalits.
Na
aldeia de Jhaloor, uma multidão Jatt de cerca de 250 pessoas respondeu à
demanda dos Dalit por terras atacando a área onde viviam. Agrediram uma mulher
com machados, cortando-lhe uma perna; mais tarde ela sangrou até morrer no
hospital. Os jovens Jatt espancaram e abusaram sexualmente de mulheres Dalit,
cujas casas foram saqueadas.
Este
não foi um incidente isolado. Na aldeia de Balad Kalan, a administração local
prendeu quarenta e um Dalits sob acusações forjadas de tentativa de homicídio,
exigindo suas terras como contrapartida. Eles só foram soltos após uma luta que
durou cinquenta e nove dias.
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Além da base e da superestrutura
Oprograma
do clandestino Partido Comunista da Índia (de tendência maoista) retrata a
opressão de castas como um legado do sistema “semifeudal” da Índia e prevê que
a “distribuição de terras aos agricultores” dará início a um processo que
conduzirá à sua erradicação. Por outro lado, o institucionalizado Partido
Comunista da Índia (marxista), que faz parte da aliança da oposição nas
eleições deste ano, define a casta como “um remanescente da sociedade
pré-capitalista”.
·
A luta contra as
castas é vital para construir a unidade dos trabalhadores.
Podemos
dividir a compreensão das castas entre os comunistas da Índia em três grandes
categorias. A primeira é composta por aqueles que veem a casta como parte da
“base” socioeconômica e acreditam que ela só pode ser abolida através da luta
de classes e da revolução. A segunda é composta por aqueles que a veem como um
fenômeno da “superestrutura” e defendem que uma transformação cultural pode
eliminá-la após a revolução. Na terceira categoria temos aqueles, como o ZPSC,
que veem a casta tanto como uma questão de base como de superestrutura.
O
problema de usar a divisão binária herdada de base e superestrutura, que deriva
de um texto específico de Karl Marx, é que tendemos sempre a banalizar o que
colocamos na superestrutura – neste caso, as instituições sociais e políticas.
Dado que os grupos comunistas caracterizam a sociedade indiana como
“semifeudal”, argumentam que são necessárias reformas agrárias para eliminar as
forças do feudalismo e completar o que chamam de Nova Revolução Democrática.
O
economista Vikas Rawal estimou que se for imposto um limite máximo para
propriedades de terra de 17,5 acres, apenas serão fornecidos 0,33 acres de
terra para cada família que atualmente não possui terras. Isto não significa
que a reforma agrária seja redundante – se realizada, teria um impacto
significativo nas estruturas de castas e deveriam ser defendidas. Mas devemos
também reconhecer a importância de desafiar as instituições através das quais a
hegemonia dos Jatts se manifesta.
Organizações
locais a nível de aldeia, nos moldes do ZPSC, podem impor esse desafio. Este
pode não ser um movimento de transformação socialista como os grupos maoistas
entenderiam, mas a luta contra as castas é vital para construir a unidade dos
trabalhadores. Afinal, tal unidade não é possível com base na dominação Jatt.
Este movimento poderia fornecer a base para os trabalhadores se envolverem numa
futura luta unida contra o capitalismo global.
Fonte:
Por Amol Sngh, com tradução de Pedro Silva, para Jacobin Brasil
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