Emilio
Cafassi: Argentina — ascensão de uma nova ordem repressiva
Desde
a tomada de posse do Presidente Javier Milei, tenho estado regularmente
preocupado e alarmado com a restrição das liberdades civis, tema sobre o qual
tenho refletido em artigos sucessivos. Embora eu não ignorasse as tendências ou
ações da extrema-direita ocidental em grande parte da Europa ou dos Estados
Unidos, há algo acontecendo que, nos últimos meses, chamou minha atenção sobre
as restrições localizadas.
O
primeiro motivo desse alarme surgiu com o protocolo de segurança (PS) da
Ministra de Segurança argentina, Patricia Bullrich, de dezembro passado, o qual
submeti a uma comparação detalhada com os aspectos repressivos da Lei Uruguaia
de Consideração Urgente (LUC), encontrando semelhanças perturbadoras. Essas
semelhanças expõem os cenários imaginados pelos governos que os escreveram e as
suas concepções de liberdades e agendas políticas.
Mesmo
que se abstivessem de implantá-los, a sua mera existência já seria extremamente
grave. Mas essa não é a realidade: esses recursos repressivos são aplicados com
cada vez maior rigor. Para tal diligência intervêm não só as forças repressivas
com as correspondentes diretivas precisas, mas também o poder judicial que
acompanha as violações por ação ou omissão, sem deixar de lembrar a
cumplicidade dos meios de comunicação hegemônicos.
A
concepção de liberdade que o liberalismo proclama limita-se exclusivamente
àquela do mercado, impondo-se com toda violência contra tudo que possa
limitá-la, tendo por decorrência a violação de direitos e liberdades. A
extrema-direita vernácula distancia-se dos seus antecessores tradicionais,
elevando o aspecto repressivo ao nível de um ritual obscuro que glorifica a
coerção, a violência e a submissão. Além das críticas indignadas à natureza
dessas normas, expus casos específicos de monstruosidades repressivas que até
poucos dias atrás considerava extremas, pois a repressão deixa de ser um meio e
passa a ser um fim em si mesma, onde cada ato é celebrado como um triunfo da
força bruta sobre a liberdade expressiva.
Por
exemplo, na prisão e acusação dos advogados de Almeida e Darabos ou na
repressão aos aposentados argentinos e ao sindicato dos marítimos e aos
adolescentes do Liceo Zorrilla no Uruguai. No entanto, são hoje extremos
superados, não só em magnitude, mas na implantação da tortura, da
irracionalidade e da barbárie. O artigo da semana passada terminava anunciando
minha participação na marcha contra a lei que estava em discussão no Senado
argentino, na qual se antecipava a repressão.
Não
costumo acertar prognósticos, mas enquanto me reunia com colegas para tomar o
metrô, os celulares estavam cheios de recomendações para suspendermos a
participação devido à violência desencadeada. Porém, não foi um obstáculo para
nos encontrarmos com aqueles que voltavam e juntos cortamos as avenidas
Corrientes e Medrano com batidas de panelas e frigideiras, junto com os membros
da assembleia popular do bairro onde participo. Expressões semelhantes de
resistência e solidariedade foram vistas em outras partes da cidade.
Naquela
mesma noite, começaram a chegar as primeiras informações sobre os detidos e
apareceu um tweet inusitado do partido no poder, estendendo calorosas
felicitações pela repressão que, segundo eles, restaurou a ordem face ao
apocalipse iminente. Prefiro colocar esse tweet na íntegra, literalmente, em
uma seção separada, junto com minha própria errata interpretativa. Com base
nesse tweet, o procurador Stornelli interveio da jurisdição federal —
modificando os precedentes de intervenções já absurdas na jurisdição municipal
— processando com prisão 33 cidadãos, cujos familiares e organizações de
direitos humanos não puderam saber o seu paradeiro durante as primeiras 24
horas . A organização que emite o tweet não existe no organograma estadual. É
apenas uma conta na rede social. Continuo atribuindo-lhe o caráter oficial
porque o seu conteúdo coincide plenamente com as declarações do porta-voz
presidencial, Adorni, e do próprio Presidente Javier Milei num relatório da
última terça-feira.
As
imagens comoventes das prisões que começaram a chegar, captadas pelos celulares
ou câmeras de televisão dos cidadãos, refletem uma violência incomum. Boa parte
dos detidos, sobretudo homens, foram atirados ao chão ao tropeçar e depois
carregados por cinco agentes, um para cada membro e o quinto rodeando-o pelo
pescoço até à asfixia. A maioria estava sob efeito de spray de pimenta no
rosto. Todos relatam ter sido submetidos a algum tipo de tortura física e
psicológica quando foram detidos ou durante a prisão, além de abandono.
A
maior parte dos detidos é acusada do “crime” de “ataque e resistência à
autoridade”, embora vários sejam também acusados de atirar pedras (e
consequentemente de atacar a integridade física de agentes policiais) sem que
exista filme ou registro fotográfico que o comprove. De fato, foram atiradas
pedras na Plaza del Congreso, mas muitos dos detidos foram presos nos mesmos
cruzamentos, especificamente em Lima e México (a mais de 1 km de distância dos
eventos) e em Santiago del Estero e Avenida de Mayo (500 metros de distância).
Vários
nem sequer eram manifestantes, mas sim vendedores ambulantes de comida. Alguns
foram libertados pelo juiz no fim de semana e onze deles poucas horas após a
entrega deste texto à edição, enquanto cinco ainda estão detidos. Porém, a
condição de soltura também varia, pois o Ministério Público recorre das medidas
e solicita seu retorno à prisão.
Além
das imagens das prisões violentas que as redes sociais foram multiplicando,
devemos acrescentar atos de vandalismo que considero vergonhosos, inaceitáveis
e contrários a qualquer manifestação de protesto ou mobilização social: queima
de carros e de uma ciclovia pública, quebra de telhas para atirar pedras, entre
outros.
Duvido
que haja setores progressistas ou de esquerda que os reivindiquem e os
executem, mas se houver, têm o meu mais completo e absoluto repúdio. Reconheço,
no entanto, que tenho participado em debates em assembleias populares ou a
nível universitário, opondo-me firmemente à celebração do combate físico com as
forças repressivas.
Não
só pela proporção desigual de forças e pelo consequente risco para quem assim
participar, mas também pela oposição visceral a todas as formas de violência
física e pelo — espero que involuntário — desincentivo a esse caminho que a
participação na associação do protesto implica. Já ouvi até alguns aposentados
exultantes por conseguirem “cobrar a la cana”, como se costuma dizer no Rio da
Prata. Ilusão ao mesmo tempo infantil, dada a impossibilidade de causar
qualquer dano físico a um repressor já que nada de seu corpo fica exposto,
considerando a cobertura total que oferece a atual armadura tecnológica deste
século, em substituição às pesadas medievais.
Um
documento tardio da CGT não só repudia a criminalização do protesto, mas também
afirma que os atos de vandalismo foram perpetrados por “profissionais
infiltrados”, o que não surpreenderia ninguém. Mas estaria a confirmar que, nas
acusações cruzadas de diversas frações sindicais, a informação e o aviso de que
as próprias forças de segurança iriam provocar motins a partir das 15h00,
momento em que a coluna principal decidiu iniciar a retirada, foi reconhecido.
Nenhum
dos detidos é acusado de incendiar veículos quando pelo menos o primeiro,
pertencente a uma rede de televisão, foi vandalizado em frente a um cordão
policial, que permaneceu inabalável, incluindo motos a menos de 50 metros de
distância. O Ministério Público também não investiga a identidade dos que o
incendiaram, apesar de os seus rostos terem sido fotografados em grande plano
pelas câmeras de televisão. Apenas o detido Calarco Arredondo é acusado de
atear fogo à estação de bicicletas, embora já devesse ter sido provado ou
descartado porque esse fato também foi registado na televisão. Os outros quatro
ainda são investigados por suposta agressão com pedras ou, em um caso, por
porte de uma antiga granada de fumaça.
Voltando
à afirmação da cumplicidade do judiciário com a qual inicio estas linhas, os
artigos do Código Penal comuns em antecedentes repressivos (art. 239,
resistência à autoridade ou art. 237, ataque à autoridade) são potencializados
pelo tweet não oficial e isso encoraja o promotor diligente a ir em busca de
acusações criminais maiores. O extremo dessas acusações seriam os crimes
“contra os poderes públicos e a ordem constitucional” (art. 226) e/ou
“perturbação da ordem nas sessões dos órgãos legislativos” (art. 241), entre
outros.
Estes
são enfrentados em tensão, por exemplo, com o art. 144 bis, que sanciona
funcionários que cometam atos de tortura, tratamento ou arte cruel, desumano ou
degradante, ou o art. 18 da Constituição, que estabelece que nenhum habitante
da Nação poderá ser preso senão em virtude de ordem escrita de autoridade
competente. Além disso, o art. 75, inc. 22 concede hierarquia constitucional
aos tratados internacionais de direitos humanos, reforçando a proteção dos
cidadãos contra abusos de poder.
Quando
dois direitos colidem, deve ser a política que determina qual deles prevalece.
É isto que está sendo feito neste caso. A força política dominante, denominada
“Avanços da Liberdade”, contém uma omissão literalmente paradoxal, à medida que
avança para um estado de excepção. É a liberdade condicional avançando sobre a
validade constitucional acorrentada.
Tuíte
oficial: “A Presidência da República felicita as Forças de Segurança pela
excelente atuação na repressão aos grupos terroristas que, com paus, pedras e
até granadas, tentaram perpetrar um golpe de Estado, atacando o normal
funcionamento do Congresso Nacional Argentino.”
¨
Plano de austeridade
de Milei empurra Argentina para recessão no 1º trimestre
O
PIB caiu 2,6% em relação ao quarto trimestre de 2023, após consumo e atividade
despencarem no início do ano
A
Argentina entrou em recessão técnica no 1º trimestre do ano, com os brutais
cortes de gastos do presidente Javier Milei fazendo o consumo e a atividade despencarem.
O
Produto Interno Bruto (PIB) caiu 2,6% em relação ao 4º trimestre de 2023, de
acordo com dados oficiais do governo publicados nesta segunda-feira (24). A
atividade contraiu 5,1% em relação ao ano anterior, um pouco abaixo da mediana
das estimativas de queda de 5,3% entre economistas consultados pela Bloomberg.
A
impressão negativa segue uma contração trimestral de 2,5% nos três meses até
dezembro.
Os primeiros meses do ano foram
marcados por cortes acentuados nas aposentadorias
reais e nos salários do setor público e pela paralisação de projetos de
infraestrutura pública.
Quando
assumiu o cargo em dezembro, Milei também desvalorizou o peso em mais de 50% e
retirou centenas de controles de preços. Os setores de construção, manufatura e
varejo estão entre os mais atingidos.
Os
salários reais caíram 17% de novembro para março, provocando uma queda de 10%
nas vendas dos supermercados no mesmo período.
A
dolorosa contração da atividade, no entanto, fez com que o governo registrasse cinco superávits
orçamentários mensais consecutivos e uma
flexibilização mais rápida do que o esperado da inflação mensal, de 25,5% em
dezembro para 4,2% em maio.
O
Fundo Monetário Internacional (FMI) espera uma potencial estabilização da
atividade em abril, à medida que o crédito privado e o consumo de cimento
voltam a subir, a produção agrícola se recupera após a seca do ano passado e a
confiança do consumidor ganha terreno, de acordo com seu último relatório sobre
a Argentina.
Economistas
consultados pelo BC argentino estimam que o PIB cairá 3,8% neste ano, seguido
de crescimento de 3,4% em 2025.
A
legislação de Milei deve ganhar aprovação final na Câmara dos Deputados ainda
nesta semana, o que deve contribuir significativamente para a recuperação,
relaxando leis trabalhistas, desregulamentando o setor de energia e
incentivando grandes investimentos estrangeiros por meio de incentivos fiscais.
Fonte:
A Terra é Redonda/Infomoney
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