Para que serve Abin e por que é alvo de
críticas desde sua fundação
No centro das investigações da Polícia Federal (PF) que apuram possíveis desvios em suas ações, a Agência
Brasileira de Inteligência (Abin) é alvo de críticas e questionamentos desde
que foi fundada, em 1999.
A agência também já
enfrentou uma série de reviravoltas institucionais — ora sob comando militar,
ora civil — e hoje lida com uma defasagem de 80% em seu quadro de pessoal,
segundo servidores.
A PF apura se houve a
formação de uma suposta organização criminosa, apelidada de "Abin paralela", para
monitorar, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), adversários do
ex-presidente e de sua família.
A PF já fez operações
contra Carlos Bolsonaro (Republicanos), vereador do Rio de Janeiro e filho do ex-presidente, e o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), aliado de Bolsonaro que comandou a Abin no seu governo.
A BBC News Brasil
procurou os gabinetes de Ramagem e Carlos Bolsonaro para comentar as acusações,
mas não houve resposta.
A reportagem também
entrou em contato com a defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro, que não se
manifestou até a publicação deste texto.
Em transmissão ao vivo
em suas redes sociais, Bolsonaro negou a existência de uma "Abin
paralela" e chamou a investigação de uma "narrativa".
Outro investigado na
operação é o diretor-adjunto da Abin, Alessandro Moretti.
Nesta terça-feira
(30/01), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse em entrevista à rádio CBN
que Moretti poderá se defender. Mas Lula indicou que, se for comprovado algum
vínculo entre ele e Ramagem, o diretor-ajunto será demitido.
Moretti também não se
pronunciou sobre a operação da PF até a publicação deste texto.
Na entrevista, Lula
disse ainda que Bolsonaro cometeu uma "grande asneira" ao criticar a
operação da PF. Disse, no entanto, que a polícia não pode fazer
"pirotecnia" em suas operações.
O presidente expressou
desconfianças ao se referir à Abin. "A gente nunca está seguro".
Em nota à imprensa, a
Abin disse que é a principal interessada na elucidação dos casos envolvendo a
agência.
"Há 10 meses a
atual gestão da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) vem colaborando com
inquéritos da Polícia Federal e do Supremo Tribunal Federal sobre eventuais
irregularidades cometidas no período de uso de ferramenta de geolocalização, de
2019 a 2021. A Abin é a maior interessada na apuração rigorosa dos fatos e
continuará colaborando com as investigações", diz a nota.
A Abin foi criada em
1999, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. É um órgão da
Presidência da República, atualmente vinculado à Casa Civil, com orçamento para
2024 em cerca de R$ 800 milhões.
A missão da Abin é ser
"responsável por fornecer ao presidente da República e a seus ministros
informações e análises estratégicas, oportunas e confiáveis, necessárias ao
processo de decisão", conforme diz a agência em seu site oficial.
A Abin deve ainda
"assegurar que o Executivo federal tenha acesso a conhecimentos relativos
à segurança do Estado e da sociedade, como os que envolvem defesa externa,
relações exteriores, segurança interna, desenvolvimento socioeconômico e
desenvolvimento científico-tecnológico".
A agência diz colher
informações relacionadas à proteção das fronteiras nacionais, à segurança de
infraestruturas críticas, à contraespionagem, ao terrorismo e à proliferação de
armas de destruição de massa, entre outros temas.
·
Sucessora do SNI
A criação da agência
preencheu um vácuo deixado pela extinção do Serviço Nacional de Informação
(SNI), em 1990.
Fundado em 1964, logo
após o golpe militar, o SNI colhia informações que orientaram a repressão da
ditadura a militantes de esquerda.
Também entraram na
mira do SNI partidos políticos, sindicatos e setores da Igreja Católica.
Após a
redemocratização, em 1985, houve pressões para que o SNI fosse extinto, o que
só ocorreu em 1990, no governo de Fernando Collor.
Desde sua criação, a
Abin já passou por diferentes pastas, num reflexo da disputa entre civis e
militares pelo seu controle. Nos seus primeiros 16 anos de existência, ela
esteve subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência (GSI),
órgão que costuma ser gerido por militares.
Em 2015, no entanto, a
então presidente Dilma Rousseff (PT) extinguiu o GSI e transferiu a Abin para o
controle civil, subordinando a entidade à Secretaria de Governo.
A medida foi desfeita
pelo sucessor de Dilma, Michel Temer (MDB), que recriou o GSI e devolveu a Abin
ao órgão. A agência então voltou a ser subordinada a um órgão comandado por
militares e manteve esse status durante o governo Jair Bolsonaro (PL).
Até que, em maio de
2023, em nova reviravolta, o presidente Lula transferiu a Abin para a Casa
Civil. Meses depois, Lula publicou dois decretos alterando o funcionamento da
agência e do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin).
Entre outras medidas,
os decretos fortaleceram a Escola de Inteligência e deixaram mais claras as
atribuições dos órgãos que compõem o Sisbin.
O objetivo, segundo o
governo, é "dinamizar o ambiente de cooperação, fortalecer o papel da Abin
como órgão central (do Sisbin) e aumentar a efetividade do
assessoramento".
Ainda assim, muitos
servidores da Abin se queixam do que consideram uma falta de prestígio do
órgão, o que, segundo eles, se reflete na falta de profissionais e de reajustes
salariais.
Em outubro de 2022, a
União dos Profissionais de Inteligência de Estado da Abin (Intelis) divulgou
uma carta na qual diz que a agência tem uma "defasagem de mais de 80% em
seu quadro de pessoal". O problema ainda não foi resolvido, segundo os servidores.
"Tal situação não
encontra precedente no Poder Executivo Federal e representa risco para a
realização do trabalho da agência", diz o texto.
·
Uso para fins
políticos
Desde a fundação da
Abin, houve várias ocasiões em que seus agentes foram acusados de agir com fins
políticos.
Numa dessas ocasiões,
em 2002, houve denúncias de que agentes da Abin teriam participado de
investigações que culminaram na operação de apreensão de documentos e dinheiro
vivo na empresa Lunus, de propriedade da ex-governadora do Maranhão e então
pré-candidata do PFL (atual Democratas) à Presidência da República, Roseana
Sarney.
Em meio à repercussão
do caso, Roseana desistiu de concorrer à Presidência.
Em 2008, foi revelado
pela revista Veja que a agência tinha grampeado autoridades como o ministro
Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), e o então senador Demóstenes
Torres, do Democratas.
Além deles, diversos
outros parlamentares teriam sido grampeados.
O diretor-geral da
Abin à época, Paulo Lacerda, foi afastado do cargo — de início,
temporariamente, e depois de forma definitiva.
Lacerda defendeu a
agência, afirmou que a imprensa acusava "sem provas" e que não havia
envolvimento da Abin em grampos ilegais.
·
Coleta de 'informações
para governar'
Desde antes da criação
da Abin, analistas já apontavam a possibilidade de que a agência fosse
vulnerável a abusos e desvios de função.
Em "SNI e Abin:
uma leitura da atuação dos serviços secretos brasileiros ao longo do século
20" (FGV editora), de 2002, Priscila Carlos Brandão, professora de
História da UFMG, descreve debates que sucederam a criação do órgão.
Um dos principais
idealizadores da Abin foi o general Alberto Cardoso, que entre 1995 e 1999 foi
ministro-chefe da então Casa Militar da Presidência da República (o órgão foi
depois transformado no Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, o GSI).
Em audiência na
Comissão de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados em 1996, três anos antes da
criação da Abin, o general defendeu que o órgão fosse "não ideologizado,
um órgão de Estado, e não de governo, que em hipótese alguma poderia ter
conotações político-partidárias".
Na mesma audiência,
porém, o cientista político Thomaz Guedes da Costa, hoje professor de Estudos
de Defesa na National Defense University, nos Estados Unidos, apontou o que
considerou uma discrepância entre o objetivo declarado dos idealizadores da
agência e as atribuições que eles queriam conferir ao órgão.
Segundo Costa, o
governo argumentava que, ao criar a Abin, pretendia dotar o Brasil de um
serviço de inteligência comparável aos que existem em outras democracias.
Na prática, no
entanto, o professor opinou que as tratativas para a criação da agência
apontavam em outra direção: desenhava-se um órgão voltado à coleta de
"informações para governar".
Em vez de enfocar a
defesa nacional e questões estratégicas de segurança, a Abin corria o risco de
se imiscuir em temas variados, como economia, política e questões sociais,
alertou o professor.
"O serviço de
inteligência que se propõe a 'dar informações para governar' é algo
intrinsecamente diferente das competências das atividades de inteligência
observadas nos outros países", destacou o professor.
Em sua conclusão, o
livro de Brandão também apontava possíveis problemas na atuação da agência.
Segundo a professora,
"da forma em que se encontra na lei, a competência da atividade de
inteligência dá margem a uma série infinita de interpretações, o que, na
cultura política brasileira, pode significar uma 'grande possibilidade de
abusos'".
·
Modus operandi militar
Para Priscila Carlos
Brandão, autora do livro e professora de História da UFMG, mesmo após a
extinção do SNI a cultura militar continuou a influenciar o modus
operandi do setor de inteligência no Brasil.
Após 1967, diz ela, o
SNI se tornou um órgão "extremamente militarizado" e, mesmo após sua
extinção, manteve-se o modo de produção de inteligência.
"Não só o modo de
produção, como (se mantiveram) os instrutores que passariam a treinar os seus
novos agentes, reproduzindo a lógica cultural", afirma.
Para Brandão, outro
problema da criação da Abin é que "não houve uma separação da inteligência
doméstica (ameaças internas ao Estado), da inteligência voltada à segurança
pública e a assuntos externos; a Abin englobava os três campos".
Parte desse problema
foi atenuado, segundo ela, com a criação do Sistema de Inteligência de Defesa
(Sinde), em 2002, e do Sistema de Inteligência de Segurança Pública (Sisp), em
2005.
Os órgãos passaram a
concentrar as ações de inteligência militar e de segurança pública,
respectivamente — o que, em tese, reduziu o escopo da Abin. A criação desses
órgãos, no entanto, não proibiu a Abin de atuar nessas áreas.
Ainda assim, a
professora diz que a falta de uma missão clara para a Abin impediu sua
consolidação como um "órgão capaz de subsidiar o poder brasileiro frente
às demandas relativas à sua presença estratégica no cenário internacional
".
Atualmente, segundo
ela, outro fator que pesa sobre a instituição é a "falta de estímulo de
muitos concursados, que não têm perspectivas profissionais positivas, além de
considerarem que ganham mal comparado com outras carreiras".
Fonte: BBC News Brasil
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