Amazônia – entre a crise ambiental e o
neoextrativismo
O capitalismo
constitui uma forma econômica de acumulação em escala espacial crescente, sendo
que a Amazônia constitui um espaço de fronteira de exploração capitalista, um
território de expansão central a expansão capitalista brasileira no século XXI,
uma reserva neoextrativista de recursos naturais, com efeitos em sua ocupação,
espaço, uso rentista da terra, valor, relações de trabalho e destruição
socioambiental, pois o desenvolvimento econômico capitalista não se expressa
por uma relação de ganhos universais, ao contrário, o capitalismo expressa a
apropriação violenta e desregrada do planeta.
Ainda neste mês foi
divulgado estudo realizado por ampla equipe de cientistas nas páginas da
respeitável revista Nature, sendo que o referido estudo reforça os diagnósticos
que os limites de resiliência da maior floresta tropical do planeta estão
próximos de um irremediável colapso.[i]
O objetivo deste texto
é tratar da Amazônia enquanto espaço periférico de acumulação de capital por
espoliação no contexto do capitalismo contemporâneo brasileiro, estabelecido o
caráter do espaço amazônico enquanto fronteira importante para o agronegócio
brasileiro. O agronegócio de grãos (soja e milho, principalmente),[ii]
constitui o núcleo da agricultura capitalista brasileira, entendido como o
estabelecimento de relações agrárias de produção no formato de plantation, com
vistas à obtenção e maximização de lucro pela produção e venda de grãos no
mercado internacional, rapidamente se estendendo em terras amazônicas.
Esse processo
expansivo tem como uma das principais áreas de ocupação, não por acaso, a
Amazônia. Três fatores integrados à lógica do atual padrão de reprodução
econômica brasileiro explicam por quê: a centralidade primário-exportadora e os
elevados ganhos gerados ao segmento da burguesia vinculada ao agronegócio; as
características extensivas desse tipo de produção agrária, requerendo
abundância de terras e um regime climático de sol e águas que são
características edafoclimáticas favoráveis; e, por fim, o histórico
favorecimento do Estado brasileiro à concentração latifundiária e a proteção
dos interesses rentistas dos mesmos.
Como observa Francisco
Costa (2022, p.7), “a apropriação de novas terras [amazônicas] se concentrou em
Mato Grosso (41%) e no Pará (36%) que juntos representam 77% do total”, sendo
que nessas duas unidades da federação observa-se a expansão do agronegócio,
cuja lógica é a extensividade do uso de terras e a crescente concentração
fundiária, aprofundando as desigualdades existentes entre os produtores
comerciais voltados ao mercado externo e os produtores camponeses e familiares
com produção para subsistência e/ou abastecimento local.
A realidade da
Amazônia perpassa tanto a esfera natural, compreendendo a maior biodiversidade
do planeta, como sua complexa formação socioeconômica. Outro Francisco,
conhecido como Chico de Oliveira em sua tenacidade observava, ainda nos anos de
1990, que a Amazônia era palco de permanentes descobertas e reconquistas pelo
capital (OLIVEIRA, 1994). Sobre isto, cabe lembrar que, desde o século XVII, a
região amazônica convivia com ciclos periódicos de extração de seus recursos
naturais, participando efetivamente da acumulação primitiva de capital.
Contudo, somente no
contexto do século XX, os projetos infraestruturais, combinados com os
incentivos fiscais governamentais para a produção agrícola, lançaram as bases
para que uma grande fronteira de acumulação capitalista se consolidasse na
Amazônia, com a diferença de que, desta vez, a integração se fez de forma mais
intensa, viabilizada pelos avanços tecnológicos. pelo alto investimento e mais
recentemente pela dupla interação entre exportação de bens primários e uso
rentista das terras.
No atual estágio, a
acumulação se dá não somente na frente agrária, mas também no escopo mais amplo
da exploração de seus recursos naturais e de seus habitantes. A Amazônia
constitui espaço de expansão da acumulação que integra três fatores básicos da
ordem dependente de transferência de valores da periferia para o centro
capitalista: terra, como base de exploração agrária (agropecuária); o subsolo,
como base de exploração mineral e as fontes hídricas (rios e lagos), como base
de exploração energética. Esses condicionantes se somam à lógica de acelerada
urbanização que se estabelece com os fluxos migratórios dos últimos cinquenta
anos, estabelecendo um padrão de destruição ambiental e pobreza social.[iii]
Nas dinâmicas mais
atuais, a acumulação de capital é caracterizada, entre outras atividades, pela
criação de gado, sendo que a expansão de cabeças de gado foi viabilizada pela
derrubada da floresta, como visto anteriormente, pela redução de custos de deslocamento
e pelo aumento na produtividade. Com o aumento da demanda externa por carne de
boi, e o aumento da lucratividade da pecuária na Amazônia, cresce a pressão por
mais áreas de criação de gado, provocando entrada de novas corporações na
região, bem como a diminuição de áreas de florestas e aumento de áreas de
pastagens ou lavoura. Neste sentido, cabe ressaltar que um resultado igualmente
deletério é o desmatamento associado a estas expansões, cujo impacto se faz
sentir de forma significativa nas regiões de expansão de fronteira agrícola.
Mas, além do
desmatamento, outros elementos danosos se colocam, como a especialização da
matriz produtiva da região em atividades primário-exportadoras, a
mercantilização de recursos naturais elementares, a superexploração da mão de
obra, e os conflitos sociais pela posse da terra. Estes fatores são relevantes
na medida em que promovem cada vez mais exploração do espaço natural e da força
de trabalho, bem como acentuam o movimento da internacionalização dos recursos
naturais. Esta forma de inserção externa do Brasil no mercado mundial, não se
mostra sustentável no longo prazo. Os direitos de propriedade que se
estabelecem são estritamente mercantis e a lógica territorial imposta pela
dominação do capital financeiro sobre os recursos naturais coloca em questão
inclusive a soberania territorial da nação, bem como as condições de reprodução
social de seus habitantes e da classe trabalhadora.
Os dados de exportação
da Amazônia legal mostram a evolução da dinâmica agrária e extrativa mineral da
região. Entre 1997 e 2021, a participação do setor agrícola na pauta de exportações
saiu de 14,3% em 1997 para 34,7% em 2021, enquanto a participação da indústria
extrativa mineral se deslocou de 23% para 41,8% do total no mesmo período. Em
contrapartida, o setor de transformação teve um expressivo decréscimo de 62,5%
para 23,4% no mesmo período, representando um decréscimo aproximado de 3,8% ao
ano. Este foi mais acentuado do que a dinâmica verificada para o país como um
todo, que apresentou um ritmo de diminuição da participação da indústria de
transformação de 1,8% no mesmo período.
Analisando o interior
do setor agropecuário, por sua vez, é possível verificar que a produção
agrícola na Amazônia Legal cada vez mais é ocupada pela produção de
commodities, como a soja, cana-de-açúcar, milho e o dendê, em detrimento de
outras culturas de maior importância para a alimentação dos habitantes locais e
abastecimento do mercado interno, como o arroz, a mandioca e o feijão.
Analisando dados quinquenais da Pesquisa Agrícola Municipal de 1990 até 2020, é
possível ter evidências desta alteração na produção.[iv]
No início do período,
cana-de-açúcar, milho e soja representavam, respectivamente, 2,3%, 22,3% e
25,4% da área plantada total na Amazônia Legal. Em 2020, os valores eram de
6,7%, 29% e 53,2%, representando aumento tanto absoluto como relativo da
ocupação de terras para a produção de commodities direcionadas ao mercado
externo, sobretudo a soja. Esse aumento de participação relativa deve-se à
inserção externa do Brasil, como fornecedor de commodities agrícolas para o
restante do mundo, com grande presença de corporações transnacionais deste
setor em solo brasileiro e amazônico. Esta tendência se acentua com a
liberalização de mercados e desregulamentação do setor, que seguiu a tendência
neoliberal dos governos brasileiros nesta década, culminando na penetração do
capital internacional.
Por sua vez, ao se
analisar a participação de culturas voltadas ao mercado interno, o que se
verifica é um declínio bastante acentuado no mesmo período. A cultura do arroz,
por exemplo, que antes correspondia a 27,8% da área plantada total na Amazônia
Legal em 1990, apresentou redução para incríveis 1,9% em 2020, demonstrando
como a expansão da grande produção agroindustrial afeta a produção de culturas
básicas. O mesmo ocorreu para o feijão, cuja participação diminuiu de 6,7% para
1,5%, e para a mandioca, que apresentou diminuição de 10,8% para 2,2%.
A proporção de
pequenas propriedades tem diminuído de forma mais acentuada na Amazônia Legal
em comparação com o restante do Brasil, realidade que pode ser evidenciada a
partir da variável proporção de propriedades com menos de 10 hectares em
comparação com o total de propriedades no território em questão. Neste debate,
atesta-se que a proporção de estabelecimentos com menos de 10 hectares diminuiu
de 66,5% do total em 1970 para 36,9% em 2020 na Amazônia Legal, enquanto para o
Brasil, a redução foi de 51,2% para 50,1%.
Ao mesmo tempo, cresce
a proporção de estabelecimentos de tamanho médio (de 10 a 100 hectares) na
Amazônia Legal, de 21,6% para 43,2%, enquanto este valor se mantém praticamente
o mesmo para o Brasil. Estes dados evidenciam a concentração de terras e o avanço
do capital agrário na Amazônia, permanecendo essa região como lócus de expansão
da fronteira agrícola e de apropriação de recursos naturais e da terra.[v]
Ao mesmo tempo, ao
analisar o outro extremo, das propriedades de mais ampla dimensão, também é
possível notar que a Amazônia Legal tende a concentrar cada vez mais a terra.
Enquanto a proporção de estabelecimentos de 100 a 1000 hectares e acima de 1000
hectares se mantém estável para o Brasil (entre 8,4% e 0,9% respectivamente),
há significativo aumento para a Amazônia Legal. Neste sentido, em 1970, os
estabelecimentos de 100 a 1000 hectares eram 8,8% do total, passando a 14,7% do
total em 2017, enquanto aqueles de mais de 1000 hectares passaram de 0,9% para
2,3% do total na região.
Assim, a região
Amazônica apresenta elementos que caracterizam a acumulação por espoliação,
como a utilização e mercantilização de seus recursos naturais em uma escala
entrópica de gigantesca degradação. No âmbito dos grandes projetos de ocupação
desenvolvidos para a Amazônia nas últimas sete décadas, observa-se um grande
influxo de capital externo para a região, materializado nos projetos agrários,
minerários, hidroenergéticos e na expansão da fronteira agrária, estabelecendo
a lógica de modernização conservadora tão bem caracterizada por Chico de
Oliveira.
Por tudo que foi
desenvolvido ao longo do texto fica bastante evidente a complexa questão
envolvida: se de um lado o discurso ambientalista sufraga a necessidade de um
“novo modelo”, por outro a dura crueza do balanço de pagamentos e das
necessidades de geração de divisas nacionais impõem a continuidade e expansão
do velho modelo primário-exportador e, em termos bastante agudos, muito pouco
preocupado com a preservação de biomas ou de elevação da qualidade de vida das
populações autóctones amazônicas.[vi]
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Notas
[i] O estudo publicado
na revista Nature estima que “até 2050, 10% a 47% das florestas amazônicas
estarão expostas a estresses que podem desencadear transições inesperadas nos
ecossistemas e potencialmente exacerbar as mudanças climáticas”. O estudo está
acessível em https://www.nature.com/articles/s41586-023-06970-0. B.M., Montoya, E., Sakschewski, B. et
al. Critical transitions in the Amazon forest system. Nature 626, 555–564 (2024).
[ii] “O Valor Bruto da
Produção (VBP) em 2022 das principais cadeias agrícolas foi: soja (R$ 385,2
bilhões), milho (R$ 165,5 bilhões), cana-de-açúcar (R$ 80 bilhões), café (R$
57,5 bilhões) e algodão (R$ 50,1 bilhões)”. Conferir: EMBRAPA (2023).
[iii] Para um
tratamento meticuloso do neoextrativismo amazônico e seus impactos sugiro
acessarem Trindade e Oliveira (2011).
[iv] A PAM (Pesquisa
Agrícola Municipal) é acessível em:
https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/pam/tabelas.
[v] Os dados são do
Censo Agropecuário (diversos anos). Dados disponíveis em:
https://sidra.ibge.gov.br/acervo#/S/CA/A/Q
[vi] Este texto
sintetiza o trabalho de maior folego publicado na Revista da SEP (Trindade e
Ferraz, 2023), acessível em:
https://revistasep.org.br/index.php/SEP/article/view/1051.
Fonte: Por José
Raimundo Trindade, em A Terra é Redonda
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