Eles salvaram vidas porque aprenderam sobre
mudanças climáticas na escola
Em maio de 2022, Jaboatão
dos Guararapes, na região metropolitana do Recife, enfrentou fortes chuvas que
resultaram em 64 mortes. No entanto, na comunidade do Retiro, a história foi
diferente dos outros bairros: o local não registrou nenhum óbito. A razão para
essa discrepância não estava nas condições socioeconômicas ou na infraestrutura
das moradias, mas sim em outro fator: a educação dos jovens e adultos sobre as
mudanças climáticas e os riscos dos desastres.
Após quatro meses de
treinamento e práticas educacionais em parceria com o Núcleo Comunitário de
Proteção e Defesa Civil (Nupdec) da cidade e o programa de Educação do Centro
Nacional de Alertas e Monitoramento de Desastres Naturais (Cemaden Educação), estudantes
da comunidade do Retiro adotaram ações preventivas e foram capazes de orientar
a evacuação dos vizinhos que viviam em regiões sujeitas a deslizamentos. No fim
das contas, salvaram vidas.
Havia chovido a
madrugada inteira. Quando Aléxys Gabriel Ferreira, então com 16 anos, acordou,
ele notou pelo pluviômetro caseiro – que tinha aprendido a construir e a
analisar durante o treinamento – que o cenário era de preocupação. Saiu, então,
batendo na vizinhança para pedir que os moradores deixassem suas casas.
“Segui as
recomendações que ouvi no projeto e falei para as pessoas saírem da área de
risco, para tomarem cuidado, e me coloquei à disposição para tirar dúvidas dos
moradores e passar as perguntas deles para o pessoal da Defesa Civil”, conta.
Conseguiu remover oito vizinhos. Mais tarde, ao menos cinco casas desabaram no
entorno. Em três dias, o acumulado de chuva foi de 359,4 mm, superior ao
esperado para o mês de maio inteiro.
Aléxys se refere ao
projeto Dados à Prova D’Água. Idealizada pelo Cemaden Educação em colaboração
com universidades do Brasil, Alemanha e Reino Unido, a iniciativa fomenta a
instalação de pluviômetros artesanais de garrafa pet para medir o volume das
chuvas. O projeto possui um aplicativo que reúne as informações coletadas em
todos os pluviômetros da rede, compondo um banco de dados de precipitação.
Ao longo do
desenvolvimento do projeto, as crianças aprenderam conceitos sobre as mudanças
climáticas e os desastres. O estudo não ficou só na teoria: a turma de 29
estudantes jaboatonenses foi a campo, mapeou os riscos e vulnerabilidades da
própria comunidade e traçou rotas de fuga para o caso de deslizamentos de terra
– o tipo de tragédia mais recorrente na região.
Aléxys decidiu
participar do projeto a convite do professor Jurandy Clementino, coordenador do
Centro Educacional, Social e Cultural João Martins (CESCJM), em Jaboatão, e um
dos responsáveis pelo projeto na comunidade. “Fizemos atividades sobre as
mudanças climáticas, o que elas são, o que a Defesa Civil faz, como nós podemos
utilizar o pluviômetro para ajudar a nossa comunidade e promover o nosso
crescimento pessoal também”, afirma.
“Hoje, existem
aplicativos que mostram dados climáticos, e a Defesa Civil alerta a quantidade
de chuva que está caindo, mas você ver [no pluviômetro caseiro] é uma coisa
totalmente diferente. Eu levo para a minha vida esse conhecimento, aumentou
muito meu pensamento crítico sobre o que está acontecendo no mundo. As mudanças
climáticas estão no nosso cotidiano, e aprendi que a gente pode tomar ações
para resolver e que ajudem a comunidade”, complementa o estudante.
Além dos jovens,
adultos também se interessaram em participar da iniciativa. Josilene de Souza,
hoje aos 49 anos, entrou no projeto movida pela curiosidade. “A gente pode
fazer a mudança se tiver noção das coisas. Por exemplo, muita gente planta
bananeira nos quintais e não sabe que ela é perigosa para os deslizamentos”,
diz a estudante de pedagogia. Essas árvores acumulam água nas raízes e
encharcam o solo, o que aumenta a probabilidade de desmoronamentos.
Assim como Aléxys, ela
também se engajou em convencer as pessoas a deixar suas casas depois de
observar o nível alarmante da chuva coletada no seu pluviômetro na tempestade
de 2022. “Eu consegui, na conversa, que dois moradores cabeça-dura, que não
queriam sair da sua residência, saíssem. Dois dias depois a casa deles
realmente veio a cair, e eu fiquei pensando: ‘Meu Deus, se eu não tivesse
passado por esse processo, se não tivesse conhecido [o projeto], eu estaria
alheia a essas coisas’”, afirma Josilene.
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Pluviômetros comunitários motivaram a
evacuação de moradores em áreas de risco
Pluviômetros
comunitários motivaram a evacuação de moradores em áreas de risco
Para Rejane Lucena,
professora da rede estadual de Jaboatão dos Guararapes e que também levou a
iniciativa para as escolas Adelaide Pessoa Câmara e Alberto Santos Dumont, a
educação sobre o clima para o enfrentamento dos desastres é importante para
construir a resiliência das comunidades, além de ser uma forma de adaptação às
mudanças climáticas.
“O objetivo do projeto
era multiplicar o conhecimento e construir a autoproteção da população, para
que as pessoas tenham uma percepção mais aguçada das condições de risco,
independentemente de haver um órgão de segurança dando orientações do tipo
‘saia da sua casa’. As escolas onde desenvolvemos o projeto estão dentro de
comunidades que ficam em áreas de risco, então o trabalho ajuda a dialogar com
o poder público e cobrar direitos”, afirma.
O projeto Dados à
Prova D’Água, premiado pelo Conselho de Pesquisa Econômica e Social do Reino
Unido, é uma das atividades desenvolvidas pelo Cemaden Educação, que existe
desde 2014. A coordenadora Rachel Trajber explica que a missão do órgão é
fomentar a criação de comunidades escolares sustentáveis e resilientes: “Cada
escola que faz parte da nossa rede se transforma em um Cemaden microlocal, um
pequeno instituto de pesquisa que trabalha com a ciência cidadã, faz o
monitoramento e dá alertas para prevenção de risco de desastres”.
Trajber lembra que a
educação climática também ajudou a prevenir um desastre em Cunha (SP), em 2017,
no Vale do Paraíba. Em uma escola estadual da cidade que fazia parte da rede do
Cemaden Educação, os estudantes se engajaram na jornada pedagógica “Nossa
escola é vulnerável?” e descobriram fragilidades estruturais em creches
espalhadas pelo município.
Como se trata de uma
região com relevo bastante acidentado, chuvas mais fortes poderiam causar o
colapso das construções e vitimar dezenas de crianças. Mas isso não ocorreu. “A
Câmara Municipal ficou sabendo disso, os estudantes apresentaram os riscos para
o prefeito e acabou virando uma política pública de reforço nas estruturas das
creches”, conta Trajber.
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Diretrizes para uma educação ambiental
climática transformadora
Essas experiências
concretas com estudantes, aliadas ao aumento da ocorrência de eventos extremos
no Brasil, têm ajudado a impulsionar um movimento para a adoção de programas de
educação climática nas escolas, com iniciativas da sociedade civil e projetos
de lei sobre o tema. Nesta reportagem, a Pública ouviu professores, políticos e
membros do governo para entender o que falta ser feito para que o ensino da
emergência climática se torne uma realidade no país.
“Não dá para esperar
que só a conscientização dos professores ou da coordenação das escolas será
suficiente para trabalhar a educação climática. O registro explícito no
currículo é uma garantia de que o tema será mais abordado. Se a educação
climática for oficializada, também reduz a abertura para notícias falsas,
porque é mais difícil de você ser enganado se você tem uma formação consistente
sobre o tema”, avalia Cheila Baião, da rede estadual de ensino de São José dos
Campos (SP), que desenvolveu uma disciplina eletiva de Ensino Médio sobre clima
e desastres.
Para ela, é
fundamental incluir a temática de mudanças climáticas no programa educacional
das escolas. Sua experiência em sala de aula reforça essa visão. “Fora a
negligência estatal e governamental, muitos dos desastres também envolvem a
falta de percepção de risco das pessoas. Quando pergunto aos alunos se eles
conhecem alguém que já sofreu um desastre ou se eles mesmos já sofreram, sempre
surge algum relato. Eles começam a perceber que todos nós, de alguma forma,
estamos vulneráveis”, diz.
Não é um desafio só do
Brasil. Dados de 2021 da Unesco, agência das Nações Unidas para a educação,
apontam que apenas metade dos currículos educacionais de cem países pesquisados
fazmenção às mudanças climáticas e somente 40% dos professores sentem confiança
para ensinar sobre o tema.
Em 1999 foi instituída
no país a Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA), que determina a
obrigatoriedade da inclusão de conteúdos pedagógicos sobre meio ambiente nos
vários níveis da educação formal no país, de forma transversal nas disciplinas
da grade curricular. Porém, especialistas na área enxergam uma falha em
aproximar a educação ambiental do ensino das mudanças climáticas.
“A educação ambiental
dá conta de várias questões e problemas importantes, mas ela está um pouco
distante da temática da emergência climática em si. É importante colocar mais
força nos currículos sobre a educação climática”, defende Thaís Brianezi, professora
de educomunicação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo (ECA-USP).
Brianezi também é
presidente do Fundo Brasileiro de Educação Ambiental (FunBEA), instituição que
lançou o relatório Diretrizes de Educação Ambiental Climática, em setembro de
2023, em conjunto com o Cemaden Educação e o Instituto Clima e Sociedade (iCS).
O documento, que foi entregue à ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima,
Marina Silva, durante a COP28, elenca dez recomendações para o fortalecimento
da educação sobre as alterações climáticas no Brasil, sendo a primeira delas a
estruturação do Programa Nacional de Educação Ambiental Climática.
No texto, as
organizações estabelecem que o objetivo é destinar recursos suficientes para a
implantação de processos de formação à altura da emergência e do desafio que as
mudanças climáticas representam. “Essa questão [a estruturação da educação
climática] entrou no radar do governo federal, em nível estratégico, depois de
quatro anos paralisada. É algo que me anima bastante”, celebra a pesquisadora.
A paralisação a que
Brianezi se refere começou em janeiro de 2019, logo no início da gestão de Jair
Bolsonaro, quando foram extintos o Departamento de Educação Ambiental do
Ministério do Meio Ambiente (MMA) e a Coordenação Geral de Educação Ambiental
do Ministério da Educação (MEC).
Em audiência pública
no Senado em 2021, organizações da sociedade civil apresentaram um dossiê sobre
o Desmonte das Políticas Públicas de Educação Ambiental no Governo Bolsonaro.
Conforme descrito no documento, estava em curso “uma paralisação da quase totalidade
das obrigações, atribuições e demandas do governo federal em relação à Política
Nacional de Educação Ambiental (PNEA)”.
Essa política foi
retomada no governo Lula e houve a recomposição de cargos públicos da área.
Rita Silvana, atual coordenadora de educação ambiental do MEC, explica que as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Ambiental abrangem o ensino
das mudanças climáticas, embora a PNEA não trate explicitamente do assunto.
“Acrescentar o termo
‘mudança do clima’ numa política não é suficiente para garantir a educação
ambiental necessária para que as pessoas entendam a complexidade da mudança do
clima e saibam ter atitudes resilientes diante das situações que estão colocadas”,
diz a coordenadora.
Segundo ela, a 6ª
Conferência Nacional Infantojuvenil pelo Meio Ambiente, prevista para acontecer
entre junho e julho, será focada na justiça climática: “É importante que
qualquer documento ou proposta que trabalhe com a mudança do clima não esqueça
de pensar e atuar com os grupos que mais vivenciam os efeitos da crise
climática e estão em condições piores, não só pela estrutura, mas pelo pouco
espaço de escuta das vozes dessas pessoas”.
“Dizem que são muito
democráticos os desastres e as mudanças climáticas. Mais ou menos. Está todo
mundo no mesmo barco, só que em camarotes completamente diferentes, e tem
camarotes muito mais vulneráveis. É com esses camarotes que temos que
trabalhar, com as pessoas mais vulneráveis. Como a gente faz isso? É não
paralisando, é se sentindo potente”, reforça Rachel Trajber, coordenadora do
Cemaden Educação.
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Educar para prevenir
Para Jurandy
Clementino, professor de Jaboatão dos Guararapes que ajudou os estudantes a
evitar mortes nas fortes chuvas de 2022, o ensino sobre as mudanças climáticas
e os riscos dos desastres deve ser feito da forma mais lúdica possível, visto
que o medo sempre será um fator presente. “As crianças aprendem brincando, com
marionetes e peças humanas, simbolizando que são eles mesmos em risco.
Desenhos, pinturas, vídeos, tudo para conscientizar a criançada e as famílias
do que é um desastre e de que forma é possível prevenir”, diz o educador.
“Quando aconteceu o
desastre [das chuvas em 2022], as crianças tinham medo, mas sabiam os cuidados
que era necessário ter. Estavam preparadas, da maneira infantil delas, mas
tinham a ciência de como sobreviver a esse evento climático”, complementa.
Logo após um desastre
climático, é comum que as aulas sejam suspensas e as escolas sirvam de abrigo
para a população atingida. “Isso não deveria acontecer sempre, porque as
escolas deixam de ser escolas naquele momento crítico. O planejamento para as
emergências precisa acontecer antes do desastre, a escola deve ser um espaço
protegido, preservado e cuidado, para que outros locais possam servir de
acolhimento em situação extremas”, comenta a professora Rejane Lucena, de
Jaboatão dos Guararapes.
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Projetos de lei para incluir mudanças
climáticas na educação enfrentam dificuldades
Ao menos cinco estados
brasileiros possuem projetos de lei para incluir as temáticas da mudança do
clima no conteúdo programático das escolas: Ceará, Minas Gerais, Rio de
Janeiro, Rio Grande do Norte e São Paulo. Até o momento, apenas dois foram
bem-sucedidos: no Rio de Janeiro, a legislação apresentada pela deputada Monica
Francisco (Psol) foi aprovada em janeiro de 2023 e é válida para todas as
unidades da rede estadual de educação, e em Natal o projeto de inclusão das
mudanças climáticas no currículo das escolas públicas foi aprovado pelos
vereadores em novembro.
Em São Paulo, o
deputado Guilherme Cortez (Psol) apresentou um projeto de lei (PL) sobre o
tema, mas que ainda não avançou na Assembleia Legislativa (Alesp). “Qualquer
política pública que for apresentada nos próximos anos deve levar em conta o
contexto atual de eventos extremos e do aquecimento global. A educação sobre os
efeitos da mudança climática e as causas da emergência que vivemos pode
impulsionar e incentivar que as novas gerações tomem nas suas mãos as decisões
políticas, se mobilizem e atuem na sociedade para mudar esse cenário”,
justifica o deputado.
Em Minas Gerais, o PL
apresentado pelo deputado Elismar Prado (Solidariedade) tem como objetivo
instituir o Programa Estadual de Educação Climática, ficando a cargo da
Secretaria de Educação a implantação das diretrizes para a realização de
palestras e ciclos formativos aos educadores sobre as mudanças climáticas. A
proposta foi anexada a outro projeto de lei que trata da educação ambiental no
estado e aguarda parecer no plenário desde outubro.
No Ceará, o PL do
deputado Renato Roseno (Psol) que institui a educação sobre clima nas escolas
estaduais está parado na Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia
Legislativa e não há previsão de quando será pautado, conforme reportagem de O
Eco.
No Congresso Nacional,
uma proposição tramita na Câmara e outra no Senado. O PL nº 1873/2022, de
autoria da Comissão de Meio Ambiente do Senado, inclui a conscientização sobre
mudanças climáticas na Política Nacional de Educação Ambiental e estabelece a criação,
pelo governo federal, do Programa Nacional de Promoção de Escolas Sustentáveis.
Entretanto, a proposta
tem enfrentado resistência. Em novembro, o senador bolsonarista Zequinha
Marinho (Podemos-PA) solicitou a realização de uma audiência pública com a
finalidade de “aprofundar discussões” sobre o PL. No requerimento, o senador
escreveu: “Apesar de nobre objetivo, entendemos a necessidade de garantir que a
educação ambiental seja objetiva, imparcial e equilibrada, sem permitir que
seja utilizada como uma ferramenta para promover ideologias específicas”.
Na Câmara, o deputado
Pedro Aihara (Patriotas-MG) apresentou o PL nº 1.236/2023, que faz um conjunto
de ajustes na PNEA ao adicionar as mudanças climáticas nos objetivos do
documento. “A PNEA possui várias virtudes na sua base, porém entendemos a
necessidade de aperfeiçoamentos constantes, em especial na conscientização das
pessoas e na elaboração de pesquisas e estudos avançados sobre o clima”,
afirmou Aihara à Pública. Em dezembro, a relatora da proposta, deputada Socorro
Neri, deu parecer favorável ao PL, que aguarda o prazo de apresentação de
emendas.
Fonte: Por Gabriel
Gama, da Agencia Pública
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