terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Mortes e ataques contra Pataxó na Bahia se conectam ao lobby do cacau em Brasília

No dia 21 de janeiro, véspera da estreia do remake de Renascer, na Rede Globo, o assassinato de uma líder indígena no sul da Bahia trouxe à tona o lado sangrento da indústria do cacau. Na novela, as lavouras são o cenário de cenas de romance, disputas amorosas e rivalidades entre fazendeiros. Na vida real, a região é palco de uma ofensiva violenta promovida por empresários do setor contra comunidades tradicionais, em especial do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe.

Ali nasceu o embrião do que hoje é o Movimento Invasão Zero, investigado pela Polícia Civil da Bahia por ter organizado a ação armada que vitimou a pajé Maria Fátima Muniz de Andrade — a Nega Pataxó — durante uma tentativa de desintrusão da Fazenda Inhuma, no município de Pau Brasil (BA). Durante o ataque, seu irmão, o cacique Nailton Pataxó, foi baleado no abdômen.

Nos dias seguintes ao crime, veículos da imprensa local e nacional destacaram a capilaridade do Invasão Zero e suas conexões em Brasília, mas pouco foi falado sobre a ligação intrínseca do movimento com o lobby do cacau.

A coordenadora nacional do movimento, a advogada Renilda Maria Vitória de Souza é filha do ex-deputado estadual Osvaldo Souza. Suas conexões familiares passam pelo presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Lavoura Cacaueira, o deputado federal Félix Mendonça Júnior (PDT-BA), e pelo ex-senador Fernando Bezerra Coelho (União-PE), líder do governo Bolsonaro no Senado entre 2019 e 2021.

Dona de 8.321,52 hectares em fazendas, a família de Dida Souza fez fortuna com a produção do cacau. O irmão mais velho da advogada, Ruy Carlos dos Santos Souza, chegou a ocupar a presidência do Conselho Municipal do Cacau em Wenceslau Guimarães, município onde se encontram 22 das 37 propriedades identificadas pelo De Olho nos Ruralistas em nome da família. Desde o dia 21, o observatório vem publicando uma série de reportagens sobre os conflitos fundiários da família Souza: da tentativa de homicídio de um ex-funcionário à sobreposição em assentamentos no sul da Bahia.

ARISTOCRACIA BAIANA SE PERPETUA NA POLÍTICA E NA ECONOMIA

A filha de Ruy Carlos Souza, Milla Garcez, é casada com Carlos Alberto Coelho Oliveira Neto, sobrinho de Fernando Bezerra Coelho. Imagens de um blog local mostram o ex-senador confraternizando com a família Oliveira Neto, do genro de Ruy Souza, em Vitória da Conquista (BA), durante o Festival de Inverno, em 2019.

A proximidade entre as famílias Souza e Coelho foi exposta pela Folha. Segundo o jornal, a Liga Engenharia, empresa registrada em nome de Pedro Garcez de Souza — filho de Ruy e sobrinho da coordenadora do Invasão Zero —, ganhou um contrato milionário, em 2021, junto à sede regional da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) em Pernambuco, localizada no município de Petrolina, reduto eleitoral do ex-senador.

O genro de Ruy Carlos, por sua vez, é herdeiro de uma família de empresários do ramo imobiliário em Vitória da Conquista (BA), os Oliveira Neto. Carlos foi sócio de Alberto Abubakir, que é casado com uma sobrinha do deputado federal Félix Mendonça Júnior (PDT), o principal representante do setor cacaueiro no Congresso. Além da sociedade empresarial na empresa Caex Comercializadora de Produtos Agropecuários, Alberto Abubakir teve um filho com Paula Coelho Oliveira Neto, irmã de Carlos Oliveira Neto.

MENDONÇA JÚNIOR, DE FAMÍLIA CACAUEIRA, DEFENDE O SETOR NO CONGRESSO

A conveniência da relação familiar e empresarial entre Oliveira Neto, casado com uma sobrinha de Dida Souza, e Alberto Abubakir, casado com uma sobrinha de Félix Mendonça Júnior, representa uma teia de interesses que se reflete na atuação do parlamentar em Brasília.

Vanessa de Mendonça Sarti Abubakir, sobrinha do deputado federal, é administradora da empresa da família, a Ankara Engenharia, antiga MRM. Por meio da empresa, os Mendonça são donos de pelo menos duas fazendas de cacau no município de Una (BA), denominadas Duas Barras e Valmonte. Somadas, as propriedades possuem 1.374 hectares.

Em 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decretou a desapropriação para fins de reforma agrária da Fazenda Valmonte, de 691 hectares, considerada improdutiva pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Pouco depois, a família Mendonça conseguiu suspender a desapropriação na Justiça. Em 2005, a área chegou a ser ocupada por centenas de camponeses ligados à Federação dos Trabalhadores na Agricultura da Bahia (Fetag-BA), em represália à decisão judicial. O processo que discute a desapropriação da Fazenda Valmonte ainda corre no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

No Congresso, Félix Mendonça Júnior representa os interesses da indústria do cacau da Bahia. Em 2021, o deputado baiano atuou decisivamente para conter a importação de cacau vindo de países da África. Naquele ano, em apenas uma semana, 16 mil toneladas do produto desembarcaram no Porto de Ilhéus, vindos de Gana. Seis mil toneladas destinadas para processamento na Cargill e 10 mil para a multinacional belga Barry Callebaut. Segundo o portal Toda Bahia, em algumas das cargas importadas teriam sido identificadas larvas e insetos, além de um cadáver humano misturado ao cacau.

Mendonça Júnior foi o autor do Projeto de Lei nº 3472/2021, que zera as alíquotas do PIS/Pasep e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) incidentes sobre a venda de cacau de categoria superior e de suas preparações (manteiga, gordura e óleo). Atualmente, o PL aguarda o parecer do Relator na Comissão de Finanças e Tributação (CFT). No ano passado, o deputado baiano passou a defender junto ao Poder Executivo a criação da “Embrapa Cacau”, uma unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária voltada especificamente para o setor cacaueiro. A localidade sugerida pelo parlamentar para a implantação da sede do projeto é o sul da Bahia, onde ficam as fazendas de sua família.

Além de presidir a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Lavoura Cacaueira, Mendonça Júnior é membro ativo da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Em outubro, ele assinou, em conjunto com outros 203 membros da bancada ruralista, o pedido de criação da Frente Parlamentar Mista Invasão Zero. Criada após a derrota da oposição na Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (CPI do MST), a nova frente possui uma relação umbilical com a ala baiana do Movimento Invasão Zero.

FRENTE PARLAMENTAR AGE EM CONJUNTO COM INVASÃO ZERO DA BAHIA

Iniciada em fevereiro de 2023, a CPI do MST foi um dos primeiros grandes desafios para a base governista na Câmara. Sob a presidência do deputado Tenente-coronel Zucco (Republicanos-RS) e com relatoria de Ricardo Salles (PL-SP), a comissão inaugurou os trabalhos com uma agenda agressiva de audiências públicas e visitas a acampamentos do MST e de outros movimentos sociais.

A ideia de instaurar uma CPI para investigar ocupações de terras pelo país era um sonho antigo da FPA. O grupo tinha como objetivo angariar apoio para aprovar um projeto de lei criminalizando as “invasões”, além de indiciar líderes sem-terra e enfraquecer quaisquer políticas de retomada da reforma agrária no governo Lula.

Um dos principais parceiros da frente ruralista na empreitada foi o Movimento Invasão Zero, criado por fazendeiros do sul da Bahia naquele mesmo ano e formalizado durante os trabalhos da comissão. A articulação com a FPA resultou na convocação dos dois principais líderes do movimento, a presidente Dida Souza e o coordenador nacional Luiz Henrique Uaquim da Silva. Os dois participaram da CPI nos dias 30 e 31 de maio, ao lado do governador de Goiás, Ronaldo Caiado, ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR).

Empresário e cacauicultor, Uaquim é dono de uma fazenda sobreposta à Terra Indígena Tupinambá de Olivença, em Ilhéus (BA), conforme revelado em reportagem da Repórter Brasil. O fazendeiro ganhou notoriedade ao capitanear diversas iniciativas contra demarcações de terras indígenas na Bahia. Na política, Uaquim candidatou-se a vice-prefeito de Ilhéus em 2016, pelo PSB, e a deputado federal em 2018 pelo MDB, sem sucesso. Em 2017, Uaquim fundou a União em Defesa da Propriedade (UDP), movimento com sigla similar à da UDR que serviu de embrião para o Invasão Zero.

Além dele, a diretoria do Invasão Zero conta com o empresário José Simões e Silva Neto, dono da Simões Consultoria Agrícola e Pecuária, que possui como uma das atividades econômicas o comércio atacadista de cacau.

Nos meses seguintes, o movimento passou a trabalhar diretamente com Zucco e Salles, desenvolvendo um relatório sobre “os crimes do MST, seus financiadores e propósitos”. A entrega do documento, em 08 de agosto, foi comemorada por Dida Souza em sua conta no Instagram: “O Movimento Invasão Zero tem trabalhado incansavelmente com documentos e elaboração de provas que possam auxiliar os trabalhos dos deputados na CPI contra o MST”.

A empreitada não teve resultado. Após uma manobra do governo, a CPI foi esvaziada e o relatório de Salles não surtiu efeito. Para manter o engajamento no tema, a FPA lançou, no mês seguinte ao encerramento da comissão, uma nova frente parlamentar batizada em homenagem ao Movimento Invasão Zero. O ato de lançamento contou com Dida Souza e de Uaquim, além das presença do ex-presidente Jair Bolsonaro e do governador de São Paulo Tarcísio de Freitas.

PRODUTORES DE CACAU PROTAGONIZAM VIOLÊNCIA CONTRA OS PATAXÓ HÃ-HÃ-HÃE

O histórico de violência relacionado ao cacau no sul da Bahia se estende através do tempo. Na década de 80, a região era a mais violenta do país. “Morreu muita gente, muitos trabalhadores”, lembra Valderly Casais do Anjos, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) na região de Itabuna (BA).

Segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entre 2020 e 2021 ocorreram nove assassinatos de indígenas da etnia Pataxó Hã-Hã-Hãe na Terra Indígena (TI) Caramuru/Paraguaçu. Todas as vítimas foram mortas a tiros. Os atos de violência historicamente envolvem grandes fazendeiros do cacau, entre eles figuras influentes na política local.

Em Pau Brasil (BA), o assassinato de um indígena em 2002 teve como principal suspeito o ex-prefeito Durval José de Santana (DEM). À época, testemunhas acusaram o político de empregar capangas armados com o objetivo de garantir a segurança de sua fazenda, localizada dentro da TI. Um desses homens teria sido o autor do disparo que vitimou o indígena Raimundo Rosa Neres.

Em 2007, outro Pataxó foi encontrado morto com ferimento de arma de fogo nas imediações da Fazenda Letícia, também de propriedade do ex-prefeito. Segundo o jornal Metrópole, Santana usava o imóvel para criação de gado e plantio de cacau.

Em 2012, uma terceira ocorrência. O indígena Ivanildo dos Santos, de 29 anos, foi baleado na coxa, à margem do Rio Pardo, em Pau Brasil, mesma região onde Nega Pataxó foi morta. Uma equipe de reportagem da Folha foi ao local e constatou a “existência de homens armados em uma espécie de bunker para proteger a fazenda Santa Rita”. Assim como nos dois outros casos, o imóvel pertencia ao ex-prefeito Durval Santana.

Falecido em 2018, o político era um autêntico “coronel” do cacau. Em uma entrevista concedida ao Estadão em 2007, o ex-prefeito negava a existência de indígenas no sul da Bahia: “Índio só vi nas margens do Rio Negro. Esses aqui são mestiços, mas mestiços somos todos nós”.

Após sua morte, sua filha Antonia Sony Amaral de Santana se tornou presidente do Sindicato Rural de Pau Brasil. A viúva Delza Amaral Pereira é secretária da instituição. No município, o sindicato promove cavalgadas em homenagem ao ex-prefeito, agraciado com a criação de uma comenda batizada em seu nome.

 

Fonte: De Olho nos Ruralistas

 

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