Mortes e ataques contra Pataxó na Bahia se
conectam ao lobby do cacau em Brasília
No dia 21 de janeiro,
véspera da estreia do remake de Renascer, na Rede Globo, o assassinato de uma
líder indígena no sul da Bahia trouxe à tona o lado sangrento da indústria do
cacau. Na novela, as lavouras são o cenário de cenas de romance, disputas amorosas
e rivalidades entre fazendeiros. Na vida real, a região é palco de uma ofensiva
violenta promovida por empresários do setor contra comunidades tradicionais, em
especial do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe.
Ali nasceu o embrião
do que hoje é o Movimento Invasão Zero, investigado pela Polícia Civil da Bahia
por ter organizado a ação armada que vitimou a pajé Maria Fátima Muniz de
Andrade — a Nega Pataxó — durante uma tentativa de desintrusão da Fazenda Inhuma,
no município de Pau Brasil (BA). Durante o ataque, seu irmão, o cacique Nailton
Pataxó, foi baleado no abdômen.
Nos dias seguintes ao
crime, veículos da imprensa local e nacional destacaram a capilaridade do
Invasão Zero e suas conexões em Brasília, mas pouco foi falado sobre a ligação
intrínseca do movimento com o lobby do cacau.
A coordenadora
nacional do movimento, a advogada Renilda Maria Vitória de Souza é filha do
ex-deputado estadual Osvaldo Souza. Suas conexões familiares passam pelo
presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Lavoura Cacaueira, o
deputado federal Félix Mendonça Júnior (PDT-BA), e pelo ex-senador Fernando
Bezerra Coelho (União-PE), líder do governo Bolsonaro no Senado entre 2019 e
2021.
Dona de 8.321,52
hectares em fazendas, a família de Dida Souza fez fortuna com a produção do
cacau. O irmão mais velho da advogada, Ruy Carlos dos Santos Souza, chegou a
ocupar a presidência do Conselho Municipal do Cacau em Wenceslau Guimarães,
município onde se encontram 22 das 37 propriedades identificadas pelo De Olho
nos Ruralistas em nome da família. Desde o dia 21, o observatório vem
publicando uma série de reportagens sobre os conflitos fundiários da família
Souza: da tentativa de homicídio de
um ex-funcionário à sobreposição em assentamentos no
sul da Bahia.
ARISTOCRACIA BAIANA SE
PERPETUA NA POLÍTICA E NA ECONOMIA
A filha de Ruy Carlos
Souza, Milla Garcez, é casada com Carlos Alberto Coelho Oliveira Neto, sobrinho
de Fernando Bezerra Coelho. Imagens de um blog local mostram o
ex-senador confraternizando com a família Oliveira Neto, do genro de Ruy Souza,
em Vitória da Conquista (BA), durante o Festival de Inverno, em 2019.
A proximidade entre as
famílias Souza e Coelho foi exposta pela Folha. Segundo o jornal, a Liga Engenharia,
empresa registrada em nome de Pedro Garcez de Souza — filho de Ruy e sobrinho
da coordenadora do Invasão Zero —, ganhou um contrato milionário, em 2021,
junto à sede regional da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco
e do Parnaíba (Codevasf) em Pernambuco, localizada no município de Petrolina,
reduto eleitoral do ex-senador.
O genro de Ruy Carlos,
por sua vez, é herdeiro de uma família de empresários do ramo imobiliário em
Vitória da Conquista (BA), os Oliveira Neto. Carlos foi sócio de Alberto
Abubakir, que é casado com uma sobrinha do deputado federal Félix Mendonça
Júnior (PDT), o principal representante do setor cacaueiro no Congresso. Além
da sociedade empresarial na empresa Caex Comercializadora de Produtos
Agropecuários, Alberto Abubakir teve um filho com Paula Coelho Oliveira Neto,
irmã de Carlos Oliveira Neto.
MENDONÇA JÚNIOR, DE
FAMÍLIA CACAUEIRA, DEFENDE O SETOR NO CONGRESSO
A conveniência da
relação familiar e empresarial entre Oliveira Neto, casado com uma sobrinha de
Dida Souza, e Alberto Abubakir, casado com uma sobrinha de Félix Mendonça
Júnior, representa uma teia de interesses que se reflete na atuação do
parlamentar em Brasília.
Vanessa de Mendonça
Sarti Abubakir, sobrinha do deputado federal, é administradora da empresa da
família, a Ankara Engenharia, antiga MRM. Por meio da empresa, os Mendonça são
donos de pelo menos duas fazendas de cacau no município de Una (BA), denominadas
Duas Barras e Valmonte. Somadas, as propriedades possuem 1.374 hectares.
Em 2003, o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva decretou a desapropriação para fins de reforma
agrária da Fazenda Valmonte, de 691
hectares, considerada improdutiva pelo Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (Incra). Pouco depois, a família Mendonça conseguiu suspender a
desapropriação na Justiça. Em 2005, a área chegou a ser ocupada por centenas de
camponeses ligados à Federação dos Trabalhadores na Agricultura da Bahia (Fetag-BA),
em represália à decisão judicial. O processo que discute a desapropriação da
Fazenda Valmonte ainda corre no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
No Congresso, Félix
Mendonça Júnior representa os interesses da indústria do cacau da Bahia. Em
2021, o deputado baiano atuou decisivamente para conter a importação de cacau
vindo de países da África. Naquele ano, em apenas uma semana, 16 mil toneladas
do produto desembarcaram no Porto de Ilhéus, vindos de Gana. Seis mil toneladas
destinadas para processamento na Cargill e 10 mil para a multinacional belga
Barry Callebaut. Segundo o portal Toda Bahia, em algumas das
cargas importadas teriam sido identificadas larvas e insetos, além de um
cadáver humano misturado ao cacau.
Mendonça Júnior foi o autor
do Projeto de Lei nº 3472/2021,
que zera as alíquotas do PIS/Pasep e da Contribuição para o Financiamento da
Seguridade Social (Cofins) incidentes sobre a venda de cacau de categoria
superior e de suas preparações (manteiga, gordura e óleo). Atualmente, o PL
aguarda o parecer do Relator na Comissão de Finanças e Tributação (CFT). No ano
passado, o deputado baiano passou a defender junto ao Poder Executivo a criação
da “Embrapa Cacau”, uma
unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária voltada especificamente
para o setor cacaueiro. A localidade sugerida pelo parlamentar para a
implantação da sede do projeto é o sul da Bahia, onde ficam as fazendas de sua
família.
Além de presidir a
Frente Parlamentar Mista em Defesa da Lavoura Cacaueira, Mendonça Júnior é
membro ativo da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Em outubro, ele
assinou, em conjunto com outros 203 membros da bancada ruralista, o pedido de
criação da Frente Parlamentar Mista Invasão Zero. Criada após a derrota da oposição na Comissão Parlamentar de
Inquérito sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (CPI do MST), a nova frente
possui uma relação umbilical com a ala baiana do Movimento Invasão Zero.
FRENTE PARLAMENTAR AGE
EM CONJUNTO COM INVASÃO ZERO DA BAHIA
Iniciada em fevereiro
de 2023, a CPI do MST foi um dos primeiros grandes desafios para a base
governista na Câmara. Sob a presidência do deputado Tenente-coronel Zucco
(Republicanos-RS) e com relatoria de Ricardo Salles (PL-SP), a comissão
inaugurou os trabalhos com uma agenda agressiva de audiências públicas e
visitas a acampamentos do MST e de outros movimentos sociais.
A ideia de instaurar
uma CPI para investigar ocupações de terras pelo país era um sonho antigo da
FPA. O grupo tinha como objetivo angariar apoio para aprovar um projeto de lei
criminalizando as “invasões”, além de indiciar líderes sem-terra e enfraquecer
quaisquer políticas de retomada da reforma agrária no governo Lula.
Um dos principais
parceiros da frente ruralista na empreitada foi o Movimento Invasão Zero,
criado por fazendeiros do sul da Bahia naquele mesmo ano e formalizado durante
os trabalhos da comissão. A articulação com a FPA resultou na convocação dos
dois principais líderes do movimento, a presidente Dida Souza e o coordenador
nacional Luiz Henrique Uaquim da Silva. Os dois participaram da CPI nos dias 30
e 31 de maio, ao lado do governador de Goiás, Ronaldo
Caiado, ex-presidente da União Democrática
Ruralista (UDR).
Empresário e
cacauicultor, Uaquim é dono de uma fazenda sobreposta à Terra Indígena
Tupinambá de Olivença, em Ilhéus (BA), conforme revelado em reportagem da Repórter Brasil. O
fazendeiro ganhou notoriedade ao capitanear diversas iniciativas contra
demarcações de terras indígenas na Bahia. Na política, Uaquim candidatou-se a
vice-prefeito de Ilhéus em 2016, pelo PSB, e a deputado federal em 2018 pelo
MDB, sem sucesso. Em 2017, Uaquim fundou a União em Defesa da Propriedade
(UDP), movimento com sigla similar à da UDR que serviu de embrião para o
Invasão Zero.
Além dele, a diretoria
do Invasão Zero conta com o empresário José Simões e Silva Neto, dono da Simões
Consultoria Agrícola e Pecuária, que possui como uma das atividades econômicas
o comércio atacadista de cacau.
Nos meses seguintes, o
movimento passou a trabalhar diretamente com Zucco e Salles, desenvolvendo um
relatório sobre “os crimes do MST, seus financiadores e propósitos”. A entrega
do documento, em 08 de agosto, foi comemorada por Dida Souza em sua conta no
Instagram: “O Movimento Invasão Zero tem trabalhado incansavelmente com
documentos e elaboração de provas que possam auxiliar os trabalhos dos
deputados na CPI contra o MST”.
A empreitada não teve
resultado. Após uma manobra do governo, a CPI foi esvaziada e o relatório de
Salles não surtiu efeito. Para manter o engajamento no tema, a FPA lançou, no
mês seguinte ao encerramento da comissão, uma nova frente parlamentar batizada
em homenagem ao Movimento Invasão Zero. O ato de lançamento contou com Dida
Souza e de Uaquim, além das presença do ex-presidente Jair Bolsonaro e do
governador de São Paulo Tarcísio de Freitas.
PRODUTORES DE CACAU
PROTAGONIZAM VIOLÊNCIA CONTRA OS PATAXÓ HÃ-HÃ-HÃE
O histórico de
violência relacionado ao cacau no sul da Bahia se estende através do tempo. Na
década de 80, a região era a mais violenta do país. “Morreu muita gente, muitos
trabalhadores”, lembra Valderly Casais do Anjos, agente da Comissão Pastoral da
Terra (CPT) na região de Itabuna (BA).
Segundo dados do
Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entre 2020 e 2021 ocorreram nove
assassinatos de indígenas da etnia Pataxó Hã-Hã-Hãe na Terra Indígena (TI)
Caramuru/Paraguaçu. Todas as vítimas foram mortas a tiros. Os atos de violência
historicamente envolvem grandes fazendeiros do cacau, entre eles figuras
influentes na política local.
Em Pau Brasil (BA), o
assassinato de um indígena em 2002 teve como principal suspeito o
ex-prefeito Durval José de Santana (DEM).
À época, testemunhas acusaram o político de empregar capangas armados com o
objetivo de garantir a segurança de sua fazenda, localizada dentro da TI. Um
desses homens teria sido o autor do disparo que vitimou o indígena Raimundo
Rosa Neres.
Em 2007, outro Pataxó
foi encontrado morto com ferimento de arma de fogo nas imediações da Fazenda Letícia, também
de propriedade do ex-prefeito. Segundo o jornal Metrópole, Santana usava o imóvel para criação de gado e plantio de
cacau.
Em 2012, uma terceira
ocorrência. O indígena Ivanildo dos Santos, de 29 anos, foi baleado na coxa, à
margem do Rio Pardo, em Pau Brasil, mesma região onde Nega Pataxó foi morta.
Uma equipe de reportagem da Folha foi ao local e constatou a
“existência de homens armados em uma espécie de bunker para proteger a fazenda
Santa Rita”. Assim como nos dois outros casos, o imóvel pertencia ao
ex-prefeito Durval Santana.
Falecido em 2018, o
político era um autêntico “coronel” do cacau. Em uma entrevista concedida ao
Estadão em 2007, o ex-prefeito negava a existência de indígenas no sul da
Bahia: “Índio só vi nas margens do Rio Negro. Esses aqui são mestiços, mas
mestiços somos todos nós”.
Após sua morte, sua
filha Antonia Sony Amaral de Santana se tornou presidente do Sindicato Rural de
Pau Brasil. A viúva Delza Amaral Pereira é secretária da instituição. No
município, o sindicato promove cavalgadas em homenagem ao ex-prefeito,
agraciado com a criação de uma comenda batizada em seu nome.
Fonte: De Olho nos
Ruralistas
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