A doença confundida com dengue que é mais
mortífera do que se imaginava
A epidemia de dengue em curso no Brasil tem chamado muita
atenção da imprensa em geral, mas pouco tem se falado sobre a febre
chikungunya, que está causando epidemias em várias regiões do país.
Nos últimos anos, o
avanço da chikungunya nas
Américas, e em particular no Brasil, tem suscitado preocupação crescente entre
as autoridades sanitárias de diferentes países.
Os documentos oficiais
da Organização Mundial de Saúde (OMS) destacam apenas as "fortes dores nas
articulações, que muitas vezes são debilitantes", afirmando que
"sintomas graves e mortes por chikungunya são raros e geralmente estão
relacionados a outros problemas de saúde coexistentes".
No entanto, um
conjunto de estudos feitos nos últimos anos mostram que esses conceitos estão
superados e precisam ser revistos, principalmente para adequação das
prioridades de investimento em pesquisa e incorporação de vacinas contra
arbovírus.
Originalmente, a
chikungunya foi reconhecida como uma doença pouco letal. Compilamos estudos
realizados na última década em países de diversas regiões do mundo e vimos que
o vírus CHIKV, causador da febre chikungunya, leva a uma mortalidade muito
maior que o vírus da dengue, inclusive em pacientes jovens e previamente
saudáveis.
·
A disseminação do
vírus
O CHIVK foi isolado
pela primeira vez no Distrito de Newala, atual Tanzânia, na África.
Desde sua primeira
descrição, os autores relatavam que "era clinicamente indistinguível da
dengue, se levarmos em conta a variabilidade inerente dessa doença".
Essa semelhança pode
ser um dos motivos para que haja dificuldade de diagnóstico dos casos, em
especial quando há circulação simultânea dos dois vírus.
Os primeiros óbitos
por chikungunya foram descritos na Índia durante as epidemias de 1963 em
Calcutá e em 1964 em Madras (atual Chennai). Mais recentemente um número grande
de óbitos pode ser bem documentado durante a epidemia da Ilha da Reunião em
2006, departamento francês ultramarino localizado no Oceano Índico.
Naquela ocasião, o
enfrentamento à epidemia envolveu o envio de equipes especializadas da França
Metropolitana, o que pode ter favorecido a identificação e melhor diagnóstico
dos casos.
Houve relato de 255
óbitos tendo a febre chikungunya como causa básica ou associada, um número
extremamente alto para uma população de cerca 785 mil habitantes (taxa de
mortalidade = 33,8/100.000 hab.). Alguns relatos detalhados sobre esses óbitos
foram publicados em diferentes artigos científicos.
Ainda em 2006, na
cidade de Ahmedabad (Índia), houve uma grande epidemia de chikungunya. Porém,
nenhum óbito por este vírus foi registrado oficialmente, mesmo a localidade
tendo uma população de 1,1 milhão de pessoas. Essa discrepância levou os
pesquisadores a analisar o excesso de mortes ocorrido naquela cidade durante a
epidemia. O trabalho mostrou que morreram 2.944 pessoas além do que era
esperado.
·
Mortes demais
Excesso de mortes
corresponde a um número de mortes que excede o esperado para um determinado
período de tempo e localidade, com base em dados históricos e padrões de
mortalidade típicos.
Ou seja, avalia a
quantidade a mais de pessoas que morreram num determinado lugar durante uma
epidemia ou catástrofes naturais.
Esse conceito tem sido
muito usado para avaliar a mortalidade por COVID-19 em países cuja vigilância
não teve capacidade para diagnosticar todos os casos da doença.
Com a introdução do
chikungunya nas Américas, o mesmo fenômeno pode ser observado. Em várias
localidades do Caribe houve mortalidade elevada associada à ocorrência de
chikungunya, sem que as vigilâncias epidemiológicas locais conseguissem
diagnosticar a maioria destas mortes.
Na República
Dominicana, com base em analise de dados oficiais, nosso grupo de pesquisadores
identificou um excesso de 4.925 de mortes durante a epidemia de chikungunya em
2014. No entanto, a vigilância epidemiológica local diagnosticou apenas 6
mortes por chikungunya.
Identificamos também
em Porto Rico, na América Central, um excesso de 1.310 mortes contra apenas 24
mortes diagnosticadas pela vigilância epidemiológica como provocadas pelo vírus
CHIKV.
Na Jamaica, observamos
um excesso de 2.499 mortes durante a epidemia de 2014, mas a vigilância local
não diagnosticou nenhuma morte por chikungunya.
No Brasil,
identificamos um excesso de 6.346 mortes durante as epidemias de chikungunya de
2015 e 2016 em Pernambuco, Bahia e Rio Grande no Norte. Contudo, a vigilância
oficial diagnosticou apenas 69 óbitos por chikungunya nestes estados.
Para efeito de
comparação, em uma das piores epidemias de dengue já vista nesses estados, em
2011, foram notificadas 95 mortes por dengue. Em meio a esses casos,
encontramos evidências das formas graves e fatais em necrópsias realizadas em
pacientes que morreram com chikungunya, em estudos de casos controle e também
em estudos com dados secundários (obtidos de diversos bancos de dados oficiais
e agrupados).
A fim de investigar o
impacto dessa doença no organismo, nosso grupo também avaliou pacientes que
morreram de chikungunya no Ceará. Nós examinamos o material obtido em
necrópsias e constatamos a presença do vírus CHIVK em tecidos de órgãos vitais,
como cérebro, coração, pulmões e fígado. Isso mostra que esse vírus afeta
vários locais vitais e pode levar o paciente à morte.
Um estudo com dados
secundários de 100 milhões de brasileiros publicado recentemente na revista The
Lancet Infectious Diseases, também enfatiza aspectos ligados a mortalidade por
chikungunya
Outro trabalho feito
com dados secundários de 100 milhões de brasileiros para identificar fatores de
risco que podem ter contribuído para a morte dos pacientes com chikungunya,
publicado recentemente na revista The Lancet Infectious Diseases, destacou que
os principais órgãos afetados por esse vírus são o pulmão, cérebro e sistema
circulatório.
·
Mudança para salvar
vidas
Diante dessas
descobertas, podemos afirmar que é essencial reconhecer a chikungunya como uma
ameaça à vida das pessoas e reforçar as medidas adequadas para vigilância,
prevenção e tratamento desta doença.
Isso inclui
investimentos em pesquisa para conhecer melhor, quantificar as formas graves da
doença e desenvolver vacinas eficazes, bem como campanhas de conscientização
pública para educar a população sobre os riscos associados à doença.
Os vários estudos
mencionados mostram que há uma dificuldade dos órgãos de vigilância em
quantificar o poder dessa doença de levar o paciente à morte. Essas
dificuldades podem estar relacionadas à falta de recursos, dificuldade de
diagnósticos, de notificação da causa de morte e à percepção generalizada de
que a febre chikungunya é ainda vista como ameaçadora à vida.
A percepção equivocada
sobre a baixa letalidade dessa doença ainda é propagada por organismos oficiais
como o ECDC (Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças) e a Organização
Mundial da Saúde (OMS). A mudança de paradigma do chikungunya de uma doença não
fatal para uma causa de morte excessiva é fundamental para proteger a saúde
pública e salvar vidas.
Ainda não existe
tratamento específico contra a doença. O cuidado com o paciente é focado no uso
de medicamentos para alívio dos sintomas e suporte clínico para as
complicações.
O reconhecimento das
formas graves e fatais é fundamental inclusive para que a primeira vacina
contra chikungunya, aprovada em novembro do ano passado pela agência reguladora
dos Estados Unidos, a Food and Drug Administration (FDA), possa ser dada prioritariamente
aos grupos de maior disco e incluída no nosso Programa Nacional de Imunizações
(PNI).
A vacina foi
desenvolvida pelo Instituo Butantan em parceria com a farmacêutica franco-suíça
Valneva.
No Brasil, o pedido de
aprovação definitivo do imunizante foi enviado pelo Butantan à Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 12 de dezembro.
Fonte: Por Andre
Ricardo Ribas Freitas, The Conversation
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