Por que Nicarágua virou refúgio para
ex-presidentes acusados de corrupção
Desde o início de
fevereiro, a embaixada da Nicarágua na Cidade
do Panamá tem um novo hóspede.
Trata-se do
ex-presidente panamenho Ricardo Martinelli, que recebeu asilo do governo nicaraguense e
buscou refúgio na sede diplomática do país após ter sido condenado a mais de
dez anos de prisão por lavagem de dinheiro no Panamá.
O ex-presidente alegou
ser um perseguido político e denunciou um suposto plano do governo do Panamá para assassiná-lo e
assim evitar seu retorno ao poder nas eleições de 5 de maio.
Apesar de pesquisas o
indicarem como provável vencedor, o Tribunal Eleitoral do Panamá já anunciou
que a sentença "está em processo de execução" e ele ficará
inelegível.
O atual presidente do
país, Laurentino Cortizo, negou categoricamente a acusação de Martinelli.
Mas o asilo concedido
pela Nicarágua levou a um tensionamento das relações diplomáticas entre os dois
países, com declarações de ambos os lados.
A Chancelaria
nicaraguense anunciou sua decisão de conceder asilo a Martinelli em 7 de
fevereiro e solicitou ao Panamá um salvo-conduto para que o ex-presidente
pudesse viajar a Manágua para se refugiar.
O governo panamenho
rejeitou a petição dois dias depois, no entanto, considerando que a situação
jurídica de Martinelli, condenado, impede que ele possa se beneficiar de um
asilo desse tipo.
O governo panamenho
advertiu com "consequências diplomáticas" caso Martinelli use a
embaixada nicaraguense para realizar ações ou declarações que impactem a
política doméstica panamenha, já que seriam consideradas "uma
interferência nos assuntos internos" do país.
Martinelli concedeu
entrevistas criticando abertamente o governo panamenho direto de seu refúgio.
A Nicarágua respondeu
que o asilo político "deve ser respeitado como um direito
humanitário", e que o Panamá deve agir de acordo com as convenções
internacionais e permitir a saída de Martinelli.
Esta não é a primeira
vez que Manágua se dispõe a receber e proteger ex-líderes estrangeiros que têm
pendências com a justiça.
Dois dos exemplos mais
recentes e conhecidos são os ex-presidentes salvadorenhos Mauricio Funes e
Salvador Sánchez Cerén, acusados de corrupção em seu país de origem e que estão
na Nicarágua há anos.
Mas por que o país
centro-americano virou um refúgio para políticos fugitivos da justiça e o que
está por trás dessa política do governo de Ortega?
·
Tradição histórica
O caso de Martinelli é
apenas o mais recente de uma longa tradição da Nicarágua de oferecer refúgio a
estrangeiros perseguidos pela justiça de seus países.
Durante o governo de
Anastasio Somoza, milhares de opositores foram forçados ao exílio. Mas após o
triunfo da Revolução Sandinista em 1979, o país se transformou e começou a
acolher líderes políticos de outras nacionalidades.
"Por razões de
solidariedade e simpatia ideológica, a Nicarágua torna-se então algo como a
'segunda Cuba' da América Latina", compara o historiador nicaraguense
Mateo Jarquín.
"O governo
sandinista recebeu muitas pessoas de movimentos de esquerda que não podiam
voltar a seus países, e passa a ser como um santuário para a esquerda
latino-americana", diz à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, o
acadêmico, que em abril publicará um livro sobre essa época da história
nicaraguense.
Muitos desses
refugiados participaram de fato da construção desse "projeto
revolucionário" inicial trabalhando no governo nicaraguense ou treinando a
polícia, por exemplo.
Depois, durante suas
décadas à frente do governo, Ortega acolheu desde guerrilheiros do grupo
argentino Montoneros até membros das Farc colombianas e da organização basca
ETA.
Na década de 80,
também se refugiaram na Nicarágua o traficante colombiano Pablo Escobar e o
italiano Alessio Casimirri, condenado pelo assassinato do ex-primeiro-ministro
italiano Aldo Moro e que vive no país centro-americano desde então.
E, mais recentemente,
o país ofereceu refúgio e nacionalidade aos ex-presidentes salvadorenhos Funes
e Sánchez Cerén.
·
Por quê?
Alguns dos políticos
acolhidos nos últimos anos por Ortega, no entanto, afastam-se notavelmente do
perfil esquerdista dos refugiados que tradicionalmente chegaram à Nicarágua.
É o caso de dois
funcionários próximos ao ex-presidente hondurenho Juan Orlando Hernández, que
está sendo julgado nos Estados Unidos por tráfico de drogas. Ou o mais recente
de todos, Martinelli, o ex-presidente conservador panamenho.
“Os líderes políticos
das direitas latino-americanas costumam procurar outros países, mais próximos
de seu espectro ideológico. O caso de Martinelli é algo sui géneris",
sublinha Adalberto Santana, pesquisador da Universidade Nacional Autônoma do México
(Unam) e especialista em exílios latino-americanos.
“No caso dele, é
provável que não queira ficar longe da região. Além disso, na Nicarágua ele
pode ter a proteção de um regime que não poderá receber fortes pressões do
atual governo do Panamá", diz em entrevista à BBC Mundo.
Para o historiador
Jarquín, a variedade de pensamentos desses refugiados "mostra como o
sandinismo mudou, em relação a sua mutação ideológica, e como as divisões de
'esquerda e direita' na América Central são hoje em dia superficiais e
irrelevantes".
Sobre os motivos por
trás desta abertura de Ortega para acolher líderes estrangeiros, Jarquín
acredita que o presidente busca "entender-se com todos os setores da elite
política centro-americana, o que é muito importante para a estabilidade de seu
governo e para uma eventual sucessão dinástica".
"O que Ortega
quer é ficar bem com todo mundo. Para o seu futuro e pelo acesso de seu governo
ao sistema centro-americano, que é uma importante via de financiamento para o
regime (através do Banco Centro-Americano de Integração Econômica, o BCIE)."
Já o ex-embaixador da
Nicarágua na Organização dos Estados Americanos (OEA), Arturo McFields, diz que
"essas pessoas refugiadas têm capital político e conexões dentro e fora de
seus países, o que seria útil para Ortega e para lhe abrir portas que foram
fechadas".
"Ela também quer
garantir opções para o seu futuro e o da sua família, caso chegue o momento em
que possam precisar de asilo pelos crimes contra a humanidade cometidos (...).
Realmente são fichas que ele poderia usar para se beneficiar", diz o ex-diplomata,
que em 2022 denunciou que considera uma "ditadura" no país
centro-americano e pediu a libertação dos opositores presos.
·
Nacionalidade
nicaraguense
O fato de a Nicarágua
não permitir a extradição de seus cidadãos é outra das chaves do interesse pelo
país para essas pessoas. Depois de conseguir o asilo político, elas costumam
receber a nacionalidade nicaraguense para evitar sua expulsão para outros Estados
onde seriam julgados ou deveriam cumprir sua pena.
O jornal nicaraguense
Confidencial publicou em 2023 que, nos dois anos anteriores, o governo havia
concedido nacionalidade a 130 estrangeiros, entre os quais estavam fugitivos da
justiça, acusados de corrupção e aliados políticos de Ortega.
Vários desses
processos foram feitos "violando as leis migratórias", denunciou o
artigo.
Diante dessa política
de abertura para os estrangeiros, o veículo de imprensa nicaraguense questionou
o paradoxo que é o mesmo presidente ter retirado a nacionalidade e tornado
apátridas, no ano passado, mais de 300 nicaraguenses críticos ao governo, entre
os quais há escritores, jornalistas, políticos e líderes sociais.
A BBC News Mundo
solicitou uma entrevista com o Ministério do Interior nicaraguense, dentro do
qual está a Direção Geral de Migração e Estrangeiros, para saber mais detalhes
sobre esses processos de concessão de asilo e nacionalidade, mas não obteve
resposta.
A vice-presidente do
país e esposa de Ortega, Rosario Murillo, em agosto passado defendeu, no
entanto, a nacionalização dessas pessoas e atacou novamente os nicaraguenses
apátridas e forçados ao exílio.
"Há irmãos de
outros países que defenderam o povo e que hoje são família nicaraguense. E nós
(ficamos) orgulhosos de que tantos irmãos do mundo queiram fazer parte desta
família (...)"
"As pessoas que
faltaram à Nicarágua estão fora, graças a Deus, porque eles mesmos se foram e
porque o povo também decidiu que não pertencem à família deste país",
disse Murillo.
Tanto McFields como
Félix Maradiaga, cientista político e pré-candidato às eleições presidenciais
de 2021, respectivamente, fazem parte do grupo de nicaraguenses destituídos de
sua nacionalidade.
Do exílio forçado,
eles criticam com indignação o tratamento diferente do governo quando se trata
de conceder ou retirar a cidadania do país.
"É um ato de
dupla moral que destitui de nacionalidade personalidades proeminentes e
decentes e que ao mesmo tempo oferece refúgio e até nacionalidade a pessoas com
históricos criminais comprovados", questiona Maradiaga, acadêmico e
ex-diretor do Instituto de Estudos Estratégicos e Políticas Públicas da
Nicarágua.
"Dói quando este
governo fala de direitos humanos, porque muitas pessoas estão morrendo fora da
Nicarágua,no exílio, sem poder ver sua pátria ou se despedir de seus
familiares", concorda McFields.
"Nós, que somos
nicaraguenses e não cometemos crimes, não podemos voltar. E uma pessoa que
cometeu, é convidada para a Nicarágua e protegida. É um ato cruel",
concluiu.
Fonte: BBC News Brasi
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